Chuva no Sertão escrita por Nobody


Capítulo 1
Um




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Santos-Drummond é um santuário no meio do sertão. O piso de mármore, as colunas que se erguem a três metros do chão e as salas de aula superequipadas com tudo o que há de mais moderno são contrastantes à realidade de milhares de pessoas que vivem com menos de cinco reais por dia e enfrentam a longa estiagem. 

 

Apesar da escola estar a menos de cem metros do teto que chamo de casa, sempre foi inalcançável para nós. Garotas como eu que começam a trabalhar antes de sequer aprender a escrever o próprio nome não devem ter esperanças de participar desse outro mundo. 

 

Eu comecei a frequentar a escola aos doze anos de idade, mas tive que deixá-la quando a minha mãe ficou acamada e muito doente. Alguém precisava passar as roupas que chegavam por encomenda para ganhar algum dinheiro e botar comida na mesa, além de manter a casa em ordem e cuidar das outras crianças — éramos cinco ao todo. 

 

A minha mãe e os meus irmãos sempre precisaram de mim e eu nunca medi esforços para ajudá-los, nunca sequer pensei em mim mesma. Esperança é algo perigoso para quem vive com tão pouco como eu, sempre soube disso, mas passei a questionar após as visitas da Madame Beaumont. Ela me ensinou um pouco de tudo sobre todas as coisas, aprendi somar, subtrair, dividir e multiplicar, foi muito útil pois nunca deixei que me tomassem por tola na hora do pagamento pelas roupas e pelo leite e queijo que vendíamos na feira aos domingos. 

 

Ela me ensinou a falar corretamente. M antes de P e B: Campo, Comboia, Samba, Tempo. Mas concessão e mais somatória. Aprendi a classificar as palavras em diferentes sentidos: o morfológico e sintático. 

 

Todas as quartas ela me trazia uma folha em branco e pedia que eu anotasse tudo o que eu aprendi ao longo da semana, ao anoitecer eu espremia os olhos à luz da lua para conseguir escrever pois estivera ocupada durante o dia e gastar querosene para ascender uma lamparina era um luxo que não podíamos pagar. 

 

Madame Beaumont me fez acreditar que com isso eu poderia me inscrever para o exame de seleção da Escola Santos-Drummond e tirar eu e a minha família da miséria que vivíamos. Os esforços de estudar à noite sem luz acabaram me causando miopia e um dia eu fiquei tão ansiosa com uma questão que envolvia raiz quadrada que acabei queimando uma blusa muito delicada e perdemos sete reais porque a mulher se recusou a pagar. 

 

Sete reais. É muito dinheiro desperdiçado e o meu irmão mais novo acabou ficando sem o seu leite, se ao menos ainda tivéssemos uma vaca não estaríamos tão desesperados mas Esperança morreu de sede na seca do ano passado. 

 

No mês seguinte eu participei do exame de seleção e havia muitas pessoas que acreditavam em mim, mas eu não fui aprovada. Nem sequer fiquei entre os dez suplentes e desde então prometi a mim mesma que nunca mais desperdiçaria meu tempo com esses sonhos absurdos. 

 

Meu irmão de três anos morreu de desinteira após uma noite difícil. Minha irmã de onze anos se mudou para a cidade pra trabalhar como faxineira. Minha mãe se recuperou e voltou a passar as roupas, ensinei o meu irmão de oito anos a ir fazer as entregas sozinho e eu ficava responsável pelas tarefas domésticas. 

 

As coisas melhoraram um pouco quando o meu irmão mais velho se juntou ao exército e passou a nos enviar uma mesada de cem reais por mês, instalamos energia elétrica e compramos um fogão e uma galinha. 

 

No ano seguinte a minha mãe faleceu, a suspeita era de febre amarela mas o governo do estado não queria causar tumulto sobre a doença e por isso registraram como gripe. Eu tinha apenas dezesseis anos quando fui às ruas pedir esmola pela primeira vez, fingi que havia uma tia cuidando de mim e do meu irmão para que não nos levassem para um orfanato e tentei nos manter vivos. 

 

Um dia, depois de famintas quarenta e oito horas e um surto de loucura, entreguei tudo o que me restava e encarei o exame seletivo pela segunda vez. Estava cansada demais para continuar a levar aquela vida e, se o meu destino não me reservasse algo melhor então que eu caísse morta no chão, não me importaria. Os resultados saíram e, para a minha surpresa, eu passei. 

 

Comecei a estudar no primeiro semestre do ano que se seguiu determinada a não deixar o meu passado interferir negativamente no meu futuro. 

 

 

 


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