Notas de solidão escrita por João Pedro Sanches Dovichi


Capítulo 1
Capítulo único - Notas de solidão




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            Na véspera do final do ano, a neve começa a cair. O ambiente vai ficando cada vez mais cinzento, até que a solidão da neve tome conta do tão especial natal. Espalham luzes festivas, preparam banquetes, tudo para um único dia, uma única ocasião, um único sentimento de prosperidade.

            Mas nem isso ela podia ver. Era só mais uma, no meio de uma multidão, no meio de um metrô. As noites não eram escuras, e os dias não eram claros. Tudo havia um único tom: sua solidão. Pessoas iam e vinham. Algumas buscando seu rumo, outras chegando, e outras partindo. Para ela, o metrô era uma metáfora de mal gosto de como a vida de alguém terminaria.

            Sua vida também era uma metáfora abominável. Ela não tinha rosto. Não era uma pessoa. Não passava de uma emoção do que restara de alguém que um dia já foi: a solidão. A cada segundo que se passava, ela encaixava uma nova nota. Estaria presa para sempre naquele tempo de ¾, em seu único refúgio. Um sustenido pra cá, duas notas pra lá. As vezes segurava uma corda com um pouco mais de força, e tentava fazer seu som alcançar alguém, mas os olhos negros ao seu redor não lhe contentariam.

            Não importava quantas vezes ela tocasse a mesma música, seus sentimentos continuavam intactos. A cada nota, uma paixão diferente. A cada passagem de tempo, seu delicado pé nu tocava o chão com a precisão de um arqueiro mirando sua presa. A cada sustenido, seus dedos deslizavam pelo violino velho, já abatido pelo tempo. Um dia, ele iria se esfarelar como todo pedaço de madeira.

            Com o tempo, foi se tornando uma como uma pintura. Sempre naquele mesmo lugar, na mesma nota, no mesmo tempo. Não importa qual estação ela estivesse, jamais perderia o ritmo. Nunca iria se esquecer de qualquer nota que estava cravada em sua mente, cada uma, ligada a outra formando uma rede sem fim de emoções intermináveis.

            Como uma estátua, ela se tornou uma mera representação de seu ser original. Com o tempo, algumas notas foram ficando abafadas, alguns sustenidos atrasados, e seus dedos devagares. Com o tempo, a bela melodia tornou-se macabra e tenebrosa, encarnando toda a solidão e desespero que um metrônomo humano poderia acumular. Tornou-se um relógio que não mais servia para ver as horas, uma nota que não poderia mais ser ouvida, uma emoção que não poderia mais ser sentida.


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