Carabosse escrita por Nat King


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal! Tudo bem? :D Chegando aqui hoje com mais uma fanfic, dessa vez uma short-fic centrada nesse personagem que eu gostaria que tivesse mais amor dentro do fandom :'D Espero mesmo, de todo coração, conseguir terminar de postar até a virada do ano! Torçam por mim! xD

Antes de irmos para o capítulo em si, cola aqui nas minhas palavrinhas melosas de agradecimentos, hehe xD

Primeiramente, quero agradecer ao meu irmão, por toda paciência nesses últimos dois meses de pesquisa insana e por me ouvir tagarelar sobre a União Soviética e bolo de cenoura por uma semana INTEIRA. Quem diria que um bolinho renderia tanta encheção de saco, não é verdade? xD

Mil agradecimento à Ângela, essa pessoa maravilhosa que não somente chorou e gritou junto comigo enquanto eu descascava todo o plot de Carabosse, como tem me cobrado essa história desde então haha xD Angel, me perdoe a demora e muito obrigada pela confiança e apoio! Taí o primeiro capítulo, espero de coração que você goste! *-*

E por último, mas não menos importante, quero agradecer à autora CowardMontblanc e à amiga Diandra. Eu poderia dizer que essa fic é uma presente para a primeira e principal mãe de Georgi Popovich, mas essa história é mais do que isso; é um agradecimento por uma das mais importantes pessoas que eu tive nesse ano, pela amizade verdadeira, pelo apoio sincero e pelo incentivo genuíno, que, junto com outras pessoas igualmente importantes (especialmente às inclusas logo acima), tem me impulsionado sempre em frente. Di, você é uma pessoa espetacular, eu te admiro de tantas formas que palavra nenhuma, muito menos história, seria capaz de dizer. Não sei como transmitir o tamanho amor e carinho que sinto por ti e no desejo que tenho de ter sua amizade por ainda mais tempo, o suficiente para que eu possa de fato retribuir o que significa para mim. Sua amizade vale ouro, porque seu coração todo vale por ele. Obrigada pelo ano que eu posso dizer, pela primeira vez, não ter sido tão ruim quanto eu esperava. Obrigada por fazer parte da exceção à regra. ♥

Agora, sem me alongar ainda mais, façam uma boa leitura! ♥



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Prólogo

Georgi sempre teve o sono leve, até demais para a preocupação de sua mãe. Margosha temia que as noites parcialmente insones pudessem prejudicar seu amado garotinho, mas contrário à preocupação materna, saúde era algo que ele esbanjava, tal como uma disposição invejável, fosse para crianças tão pequenas quanto Georgi, quanto para adultos.

Todavia, até a mais disposta alma encontrava seus dias preguiçosos e aquela certamente era uma das raras ocasiões onde Georgi reclamou ter seus sonhos perturbados. O aquecedor do pequeno apartamento onde vivia mantinha a temperatura ambiente oscilante, o fazendo arrepiar com o frio entrando pelas brechas do grosso cobertor dividido com Margosha. Desconfortável, esticou uma mãozinha para fora dos limites da sua cama em busca do auxílio de quem pudesse lhe cobrir melhor, tateando o colchão de solteiro logo ao lado para percebê-lo vazio, deixado apenas com um rastro ainda quente no amontoado de cobertores onde deveria estar a outra moradora do apartamento.

Curioso sobre onde poderia estar a bailarina, Georgi forçou os olhos a abrirem, buscando por ela com a visão ainda um pouco embaçada. Ele não sabia que horas poderiam ser, mas, pela escuridão parcial daquele cômodo, parecia cedo demais até mesmo para eles, acostumados com aquela rotina que tanto cobrava cada vez mais horas de dedicação.

Finalmente localizando a silhueta esguia na escuridão, Georgi coçou os olhinhos e manteve-se em silêncio, enquanto sua visão acostumava-se com a falta de luz e sua consciência sonolenta tentava buscar uma explicação para todo aquele cenário. Talvez pela idade e inocência, sua atenção logo dissipou-se, distraída pelos ruidosos detalhes que faziam daquele apartamento o lugar que chamava de lar; sem mais sentir sono, Georgi fixou os olhos azuis no teto, observando atentamente as manchas de infiltração e bolor que volta e meia sua mãe estava tentando limpar. As sombras da manhã ajudavam-no a identificar onde ela havia passado os produtos de limpeza, por destoarem, em manchas mais claras, do restante da pintura antiga. Às vezes ele ouvia as duas adultas discutindo sobre pintarem o apartamento e elas sempre o encorajavam a escolher uma nova cor. Bocejando, Georgi lembrou-se da razão pela qual não queria que nada mudasse naquele mundinho apertado onde os três viviam — gostava do fato de, não somente o teto ser manchado, mas o piso de madeira irregular, o rangido da janela ao abrir, o estalo do aquecedor nas estações mais frias e o vento assobiando entre as frestas mal fechadas pela deformidade dos vitrôs… Feliz com sua pequena lista de prazeres, Georgi sorriu.

Viver naquele lugar, ao contrário do que o resto de sua família podia pensar, sempre lhe dava muito o que ver. Ele adorava observar as adultas conversando, oscilando entre dialetos — uns por ele compreendido, outros nem tanto —, em como suas expressões acompanhavam a alteração de voz, na diferença de seus traços, suas alturas e em como, por mais diferentes que fossem em aparência e comportamento, elas conseguiam ser parecidas. Era até um pouco engraçado pensar em como cada uma dessas afirmações anulava a outra, mas ele era muito pequeno para entender aquele tipo de sutileza, embora adorasse.

No silêncio do apartamento, apenas o suave som das cerdas da escova de Minako se fazia ouvir, enroscando e deslizando pelos longos fios castanhos. Tinha algo encantador, quase mágico, naqueles gestos, em observar os dedos magros puxando os fios para trás, torcendo todo o comprimento para formar um coque. Ela era sempre caprichosa e com poucos grampos, transformava o brilhante cabelo naquele penteado que sozinho parecia transformá-la na bailarina que era.

Sentada no piso desgastado, Minako tentava seu melhor para conseguir arrumar-se, tendo a visão limitada pelo pequeno espelho sem moldura apoiando contra a parede. Vê-la dobrando-se de um lado para o outro na tentativa de se fazer mais visível no reflexo manchado, divertiu Georgi e ele exteriorizou sua diversão em um sorriso contido.

“Acordado, Gosha?” murmurou ela, finalmente se dando conta da solitária plateia daquele fim de madrugada. Sem respondê-la em palavras, Georgi escondeu o nariz dentro dos cobertores e diante daquela reação tão adorável, ela foi incapaz de chamar sua atenção. “Deveria estar dormindo, mocinho.”

Margosha, alheia em seus sonhos, respirou pesadamente, estreitando o filho nos braços. Temerosos em acordá-la, ambos se calaram. Com um dedo na frente dos lábios, a bailarina pediu o silêncio do menino, que respondeu em um curto aceno. Sorrindo para ele, Minako lhe piscou antes de pegar seus pertences e destrancar a porta, despedindo-se jogando-lhe um beijo, que Georgi imaginou voando em círculos pelo ar até gravar-se na ponta de seu nariz gelado. Sua doce imaginação acabou por fazê-lo rir sozinho mais uma vez.

Em outro gesto inconsciente, Margosha trouxe o filho para mais perto e a respiração profunda tão próxima de sua nuca, provocou arrepios engraçados, obrigando Georgi a se encolher aos risos. Lembrando dever manter o silêncio para não perturbar o descanso de sua mãe, procurou distrair-se novamente com algum outro detalhe especial daquele apartamento.

O mais especial detalhe com toda certeza era Margosha. Ele adorava observá-la, principalmente quando estava dormindo, visto que acordada ela nunca parava de se mexer; sempre limpando, sempre costurando, sempre trabalhando. Era unicamente daquela forma que Georgi podia admirar os traços de sua mãe com calma, tão diferentes aos dele, tendo como única semelhança o tom negro dos cabelos

Levou a ponta de um de seus dedinhos ao rosto redondo, contornando-o cuidadosamente, atrevendo-se apenas a afundar a ponta de seu indicador nas bochechas rosadas — tão macias quanto um travesseiro fofo — que Georgi adorava beijar. As pálpebras fechadas marcavam ainda mais os grandes e amendoados olhos da costureira e parecia tão bonito que ele não conteve a admiração e repetiu o gesto, encantado, contornando também as sobrancelhas arqueadas e o nariz arrebitado. Linda! Ele com certeza a desenharia com seus lápis coloridos mais tarde.

Pegando-o de surpresa, as pálpebras abriram-se, revelando todo o amor e sono nos olhos castanhos. Georgi ficou esperando alguma reação para saber o que fazer a partir daquilo, rindo baixo quando a mão rechonchuda de sua mãe saiu debaixo do cobertor e acariciou o rosto pequeno, contornando seus olhos antes de sugerir:

“Volte a dormir, Gosha…”

Georgi adorava quando a mãe o chamava pelo apelido, por ser tão parecido com Margosha. Era como se essa semelhança garantisse que nada no mundo pudesse separar mãe e filho, dando a ele uma reconfortante segurança, reforçada naquele abraço apertado.

“Eu te amo, mamãe” declarou, no auge de seu sentimentalismo. Uma suave risada escapou dos lábios de Margosha, curvando-os no que Georgi pensava ser o mais belo sorriso do mundo.

“Eu também amo você, Gosha.” Alisando os cabelos do filho, ela o observou com carinho. Aquelas palavras, embora sinceras, eram incapazes de mensurar quão grande era seu amor por Georgi. “Está com fome?’ Balançando a cabeça, ele negou. “Bem, precisa comer da mesma forma, mocinho.”

Preguiçosamente ela esticou braços e pernas, ainda embaixo das cobertas, criando coragem para deixar o conforto da cama. Ser mãe era dispor de seu tempo em função de outra pessoa, limitando suas escolhas pelo bem e conforto de quem dependeria de si por muitos anos, talvez toda uma vida. Todavia, isso não era algo que incomodava Margosha Popovevna, que vinha dedicando os últimos cinco anos de sua vida ao sorriso do filho.

Deixou o conforto dos cobertores, sendo seguida por Georgi, agitado já de manhã. De sorriso fácil, ele andava aos pulos, não contendo a animação com aquele dia tão aguardado. As roupas a serem usadas naquela noite já estavam separadas desde a semana anterior, acumulando pó em uma cadeira ao lado da entrada do apertado banheiro e nem Margosha ou Minako ousaram tocar nas peças infantis.

“Que tal kasha para o café da manhã?” ofereceu sorrindo, já aguardando a reação positiva do pequeno.

“Sim!!” E, tal como ela havia imaginado, Georgi gritou e saltou, animado com a sugestão. Ele adorava o mingau e teria toda sua refeição feita à base de arroz se a mãe deixasse.

Obediente, Georgi sentou na estreita mesa ocupando parte do cômodo que definia a cozinha, aguardando sua refeição com uma empolgação que se fazia refletir em seus olhos brilhantes e nas pernas balançando inquietamente. Já havia experimentado kashas dos mais diversos tipos de preparo e grãos, mas a receita de sua mãe era imbatível! Por vezes, Minako recebia não somente cartas e fotos de sua terra natal, bem como um pacote de gohan, um arroz de nome engraçado que ficava ótimo na receita de Margosha, racionado para situações especiais como aquela.

Não demorou muito para o cheiro de leite fervido ganhar os ares e preencher o apartamento. Encantado, Georgi respirou fundo, tentando trazer tanto quanto possível daquele aroma que sempre reforçava a boa sensação de estar em casa. Quando tivesse tamanho o bastante, também queria aprender aquela receita e fazê-la para a mãe.

Entre uma mexida e outra na panela, Margosha voltava a atenção ao filho, reagindo sempre com um sorriso bondoso. Georgi, contrariando toda a turbulenta fase final de sua gravidez, era a criatura mais gentil e obediente que já havia conhecido. Ela seria capaz de morrer por aquela criança.

“Gosha, pode pegar o pote de manteiga para mim, por favor?”

Feliz em ajudar, Georgi deixou sua cadeira e correu cumprir com o pedido de sua mãe. Existiam dois acompanhamentos que ele adorava comer com kasha: favos de baunilha e uma generosa colherada de manteiga. Em dias frios como aquele, a segunda opção era a mais bem-vinda delas.

“Quer me ajudar a arrumar a mesa?” perguntou Popovevna, tirando a panela do fogo. Gostava de incluir o filho em pequenas tarefas de sua rotina e, mesmo tão novo, Georgi adorava contribuir com pequenos detalhes que enriqueciam a organização da casa, sentindo-se muito importante quando era elogiado por sua ajuda.

As mãozinhas prontamente ajudaram a esticar a toalha limpa, marcada pelos vincos do longo tempo guardado. Aquela era uma das peças preferidas de sua mãe, com desenhos feitos por linhas coloridas e as iniciais de alguém bordados na barra caprichosamente arrematada por crochê. Tão preciosa toalha só tinha lugar fora do armário em raríssimas ocasiões festivas, uma das formas que a criança tinha de medir a passagem de tempo. Se estavam a usando hoje, então isso significava que aquele dia provavelmente era especial. Mesmo sem saber o motivo, Georgi ficou feliz por isso.

Mesa devidamente posta, dois pratos de mingau fumegante foram colocados à disposição com pedaços de pão preto, encantando o pequeno com o que parecia ser a melhor refeição do mundo. Como se estivesse hipnotizado, Georgi ficou encarando a colher prateada aos cuidados de Margosha afundar no pote de manteiga, trazendo um pedaço generoso da pasta amarelada para seu kasha-gohan — o nome, dado por Minako, sempre o fazia rir.

Cuidadoso, ele aproximou o rosto do vapor quente, rindo do calor que subia do prato. Por alguma razão, fazer aquilo era engraçado.

Em posse da colher, começou a comer pelas beiradas, puxando os grãos macios com a ponta do talher, em um infantil ritual visando preservar a manteiga para último consumo. Sua mãe gostava de misturar logo que servida a refeição, aproveitando o calor dos grãos para encorpar o acompanhamento, mas Georgi não via muita graça nisso. Ele gostava de observar a manteiga dissolver lentamente, ser absorvida por apenas um punhado de arroz, concentrando ali o sabor levemente salgado que lhe serviria apenas uma colherada ou duas. Era um prazer passageiro e embora soubesse que tanta espera não seria compensada no final, não perdia a oportunidade de fazer sempre as mesmas escolhas.

“Está bom, Gosha?” Ele assentiu com a colher dentro de sua boca. “Fico feliz.”

Se Margosha estava feliz, Georgi também estava.

Terminada a refeição, o menino foi liberado para ocupar o tempo com seus próprios interesses infantis, enquanto a mãe ocupava-se do figurino a ser usado por Minako naquela noite. Geralmente, os tutus usados nas apresentações não saíam do acervo do teatro, mas Lilia apenas sufocava a vontade de sorrir e fingia não ver quando Popovevna colocava a saia plana embaixo de um braço e tentava sair discretamente do camarim de costura. Ela também fingia não saber que Minako comprava pedrarias extras com o dinheiro do próprio bolso para que pudesse brilhar até mesmo mais do que os protagonistas, fazendo as roupas reformadas parecerem como novas. Não, Lilia não diria nada para repreender Margosha e a jovem sentia-se até mesmo um pouco culpada por abusar da boa vontade que poucos conheciam vir de Baranovskaya.

Já Georgi, certo do que queria fazer, apressou os pezinhos até uma pequena caixa de madeira, ao lado do colchão ocupado por Minako. Seu nome havia sido escrito pela mãe com grandes e caprichadas letras cursivas em tons de roxo, decorado com sua ajuda e a da bailarina, onde círculos, estrelas, borrões indecifráveis e muito brilho podiam identificar aquele tipo único de estampa. Georgi achava sua caixa o objeto de decoração mais lindo do mundo, um grande baú mágico onde guardava suas maiores relíquias.

Buscando entre sua coleção pessoal de cartões postais, livros de contos de fada, um bloco de folhas brancas e lápis de todas as cores, Georgi encontrou a mais brilhante joia dentre tantos tesouros, uma simples fita cassete, tendo um único nome identificando que tipo de filme ela guardava:

Никифоров

Georgi não sabia ler aquelas letras, mas sabia a quem o nome pertencia. Sorrindo para sua escolha certeira, correu com a fita escura em mãos, envolvendo-a com todo cuidado do mundo. Naquele objeto de tamanho médio havia duas horas e meia onde estavam gravados inúmeros programas de patinação artística os quais ele já conhecia todos, sendo seu preferido justamente o último, uma performance emocionante que havia garantido ao patinador protagonista de todas aquelas performances, o topo do pódio.

Antes de empurrá-la para dentro do aparelho, Georgi percebeu de soslaio o olhar preocupado de Margosha. Ele não entendia muito bem, mas sua mãe, sempre amável e sorridente, parecia murchar como uma flor doente, encolhendo-se de tal modo que parecia carregar o peso do mundo inteiro nos ombros. Era como Georgi ficava quando aprontava algo e sabia ter cometido um erro; culpa. Mas do que Margosha — justamente Margosha! — poderia ser culpada? Não, era algo mais complicado para a pouca idade de Georgi e suas comparações infantis entenderem. De todo modo, era visível o incômodo de sua mãe, principalmente quando ela parecia até mesmo sentir dor quando o via com o filme em mãos.

Parecia triste.

Hesitante, Georgi voltou sua atenção à mãe, esperando descobrir o que estava fazendo de errado para não mais ver aquele tipo de olhar entristecer os olhos que tanto amava. Dando-se conta da impressão errada passada ao filho, Margosha sorriu, fingindo prestar atenção no tutu em seu colo.

“Vai assistir aos programas de novo?” Sem resposta, a única reação do menino foi a de se aproximar, muito preocupado com o que a mãe tentava esconder nos olhos baixos. “Gosha?”

“Tudo bem, mamãe?”

Apenas a preocupação de criança tão pequena já era o bastante para provocar o emocional de Margosha.

“Apenas uma dor de estômago, comi muito rápido.” Mascarando a mentira com um sorriso, a costureira tentou amenizar qualquer preocupação de seu filho. “Prometo que até a hora da apresentação eu estarei bem.”

Georgi estava desconfiado, mas preferiu acreditar. Ainda com a fita em mãos, ele envolveu os bracinhos no pescoço da mãe e ela retribuiu o abraço com força. Georgi adorava os abraços de Margosha, como tudo o que vinha dela.

Enfim ele ligou o aparelho televisor, tendo decorado todo o processo para fazer funcionar o leitor da fita cassete, quase um ritual. Canal e botões sintonizados, deslizou com cuidado a fita para dentro do aparelho, ouvindo o baixo chiado das engrenagens reconhecerem o filme enrolado, reproduzindo a imagem quadriculada na tela do visor.

As filmagens eram antigas, algumas inclusive sem cor, mas a experiência era sempre encantadora. A música dos programas sobressaia-se ao chiado de filme tão velho e, com um pouco de imaginação, Georgi conseguia sentir o frio da pista gelada alcançar suas bochechas. Sem conseguir piscar, acompanhava as apresentações com adoração, deixando o queixo cair sem perceber, tamanho encantamento. Os saltos, as aberturas totais feitas pelo patinador em pleno ar e seu retorno sem falhas ao gelo, tudo era tão incrível que deixava de ser real para ser o tipo de acontecimento preferido de Georgi: o mágico.

As expressões emocionais do patinador, sua interpretação que parecia sempre contar uma história sem usar de palavras, os figurinos repletos de detalhes, tudo isso arrematava com perfeição aquele que parecia um vivo livro de contos fantásticos. Ser capaz de narrar mudamente uma ficção, de saltar alturas inimagináveis, erguer-se do gelo e com isso erguer a plateia, inspirar como também era inspirado... Georgi queria tanto ser como ele.

Georgi queria ser como Oleg Nikiforov.

Com as duas mãos apoiadas na tela, ele tentava prender aquele momento entre seus dedos e levar uma parte daquela coreografia consigo, vestir aquela cena como uma roupa e tornar-se, mesmo que por alguns segundos, o medalhista de ouro.

“Posso ser ele?” A pergunta havia saído sem perceber, não esperando exatamente uma resposta. Ainda assim, acabou pegando Margosha de surpresa.

A costureira olhou para a televisão e sentiu o estômago revirar com o close dado no rosto sorridente. Assistindo ao programa com enorme fascínio, seu filho sorria extasiado igual.

Igual…

“Qual o problema em ser Georgi Popovich?” perguntou, retomando a atenção no figurino.

O garoto, no entanto, não compreendeu e também não se atentou ao tom levemente melancólico da mãe, ocupado em continuar revendo todas as apresentações de Oleg. Um dia, quem sabe, ele encontraria Nikiforov no gelo? Em sua mente fazia muito sentido, mesmo que o patinador já tivesse se aposentado.

Mas quem poderia culpá-lo? Georgi estava apenas fazendo o que sabia de melhor; estava sonhando.

Ao fim da fita, tendo os últimos minutos registrados na distribuição de medalhas, os presentes apresentavam faces tristonhas, que não diziam respeito apenas aos adversários do patinador. Juízes, fotógrafos, câmeras, plateia, todos tinham traços sofridos em seus semblantes baixos, rastros secos de lágrimas que lamentavam alguma coisa. Georgi nunca havia parado para pensar no motivo, não quando Oleg sorria por cima das próprias lágrimas vitoriosas, radiante com a conquista do ouro. Era uma mistura inusitada de emoções, mas a única coisa estranhada pela criança era o inchaço na altura dos olhos azuis, acompanhado de uma coloração roxa ainda mais evidenciada pelo com a palidez da pele. Talvez pudesse ser o filme antigo, a inconstância na tela do televisor que não sustentava direito todas as cores, mas ele tinha quase certeza se tratar de um hematoma.

Ocupada com o bordado do figurino, Margosha dispensou a cozinha naquele dia e tomou a liberdade de levar o filho para almoçar em um restaurante perto de onde moravam. O estabelecimento não era luxuoso, mas era suficientemente equipado e decorado para tornar sua tabela de preços não muito atrativa. Era um pequeno regalo que raramente eles se davam ao luxo, mas por alguma razão, aquele dia era uma exceção.

De todas as opções que não conseguia ler do cardápio, optou pelo de sempre, borsch com creme de leite. Margosha tentou encorajar o filho a pedir algum outro prato, mas ele estava mais do que satisfeito com ensopado de beterraba, prato que ele poderia comer rápido o suficiente para voltar logo para casa e ainda ter tempo de rever alguns programas de sua fita. Desistindo de persuadi-lo com alguma outra receita, Popovevna o acompanhou na sopa.

Foi um almoço agradável, onde Georgi teve muito o que observar, desde a média rotatividade de pessoas, talvez desencorajadas pelo frio, até o som dos talheres batendo levemente na louça dos pratos e tigelas que serviam os alimentos. Também tinha o arrastar das cadeiras, a tosse de alguém resfriado logo mais, a televisão chiando perto do balcão, cochichos e risadas, uma sinfonia descoordenada de sons que o entretinham por si só.

Ao fim da refeição, Margosha deixou os talheres de lado, encarando o filho com um olhar brincalhão. Confuso, Georgi tombou o rostinho para o lado, tentando decifrar o que aquele sorriso miúdo significava, quando, de repente, Margosha colocou a língua para fora da boca, fazendo todo o silêncio de Georgi explodir em uma gargalhada. Tomar borsch era a certeza de ficar com língua e lábios manchados por um tempo e esse detalhe geralmente o fazia perder longos minutos em frente ao espelho.

Imitando-a, Georgi repetiu o mesmo gesto, rindo sozinho com aquela inocente brincadeira. Mãe e filho permaneceram com a piada, tentando abafar a risada, até alguns olhares tortos por parte dos garçons, avisar Margosha de que seu tempo no restaurante já havia passado. Pagando a conta, ela deixou a mesa, tendo o filho agarrando sua mão com os dedos pequenos escondidos pela grossa luva forrada. Georgi, em sua pequeneza, perdia-se dentro do casaco grosso, reforçado em camadas de tecido e lã para suportar o inverno que tanto castigava Moscou, mas não se incomodava com o quão limitado ficavam seus movimentos naqueles trajes, ao menos não era o que deixava transparecer. Sempre radiante, independente do tempo, raras eram as ocasiões em que ele deixava de sorrir e Margosha esperava ser capaz de proteger aquele sorriso enquanto pudesse.

Uma das maiores qualidades de Gosha, também notado por Minako, era sua sensibilidade, que vinha a ser também uma de suas fraquezas. Na parte prejudicial dessa característica morava sua extrema empatia, uma capacidade de tomar a alegria de quem amava e também as dores alheias, sofrendo infinitamente quando alguém próximo a si demonstrava tristeza. Se fazê-lo sorrir era fácil, tirar lágrimas de seus olhos azuis dispensava grandes maldades, o que acabava exigindo maior atenção de Margosha. Novamente culpa de sua sensibilidade, Georgi evitava reclamar alguma coisa para as adultas com quem vivia, guardando para si tanto as queixas de uma febre ou dor de garganta durante todo o tempo de recuperação exigido, quanto suas vontades. Sorte de Margosha que os olhos do filho fossem tão sinceros.

Embora profundo apreciador do exagero em histórias e cores, Georgi era um garotinho de gostos muito simples; gostava de Kasha no café da manhã, contentava-se com borsch simples e tinha grande apreço por uma fatia de bolo de cenoura, cometendo a única extravagância de comer um terço da assadeira certa vez. Seus pedidos não eram exagerados — isso quando não os escondia —, razão que a fazia tentar atender os desejos do filho sempre que possível, como agora, onde os olhos de Georgi observavam muito atentamente um recém-assado bolo de cenoura, exibido em uma plataforma giratória entre outras opções de doces na cafeteria local.

“Você gostaria que levássemos um pedaço para casa, Gosha?” perguntou a costureira, embora já soubesse da resposta.

“Não precisa, mamãe.”

Georgi nunca precisava de nada.

“Tudo bem, hoje nós podemos comprar o que você quiser, meu amor!” Desconfiado, ele olhou para a mãe, metade do rosto escondido pelo cachecol que o envolvia. Por que aquela data estava sendo assim tão especial? O que ele estava perdendo? “Podemos também levar um Poliot para comer com Minako na volta do teatro, o que acha? Convidamos Yulia e Nikolai, também, se quiser!”

A ideia de comprar um bolo caro daqueles para dividir na volta da apresentação parecia muito com um arranjo festivo e Georgi adorava poder comemorar alguma coisa. Pensava se talvez o motivo daquele dia ser assim tão especial não fosse pelo balé que assistiriam de noite. Embora a peça já estivesse em cartaz há cerca de duas semanas, fazia sentido para Georgi e, se o bolo de merengue era para essa comemoração coletiva, então estava tudo bem ver a mãe deixar seus rublos para trás.

Café preto acompanhou o bolo de cenoura no lanche da tarde, enquanto Georgi comentava sobre seu colorido sonho como patinador, tentando lembrar de todos os detalhes com música ao vivo e medalhas brilhantes a serem narrados. A sequência de suas aventuras sonolentas não fazia muito sentido, mas Margosha adorava como seus olhos brilhavam de animação quando falava sobre seus interesses.

“Um dia, tenho certeza de que receberá todos esses prêmios, meu amor” Margosha o incentivou, como sempre o fizera. “E eu estarei lá, junto com Minako, para torcer por você!” Georgi sorriu com o cenário que imaginou. “Mas hoje seremos você e eu a torcer por ela e por Yulia!” Verificando as horas no relógio preso acima da porta, Margosha definiu: “Melhor começarmos a nos arrumar, não?”

Aquela sugestão foi mais do que bem-vinda. Georgi estava ansioso para usar as peças de roupas separadas especialmente para aquela ocasião. O água quente foi muito bem recebida no meio do inverno rigoroso e para a criança era sempre uma alegria poder brincar com a espuma formada pelo shampoo de cheiro frutado. Margosha sempre arrepiava os fios finos para cima, moldando-os em moicanos e topetes, penteados que ele tentava repetir no cabelo da mãe, com frustrante insucesso. Sua chateação pelas madeixas de fios grossos não obedecerem as formas que tinha em mente nunca durava muito; Margosha enchia seu rosto molhado de beijinhos e todo e qualquer aborrecimento era dissipado e esquecido, incapazes de se manter em sua memória de criança de cinco anos.

Georgi, sem dúvidas, seria o primeiro a se arrumar, mas essa disposição não pertencia apenas à sua agitação; assistir Margosha se arrumando era, acima de qualquer coisa — inclusive de Oleg Nikiforov —, o seu programa preferido.

Azul combinava com Popovevna e por isso Gosha amava aquela cor. A camisa de gola fechada, cheia de botões em sua frente e punhos, era discreta e elegante, como ela. A grossa meia-calça de lã preta cobria suas pernas roliças, protegendo-as do frio externo. Os pequenos pés eram protegidos por sapatos sóbrios e fechados, cobertos pela comprida e pesada saia de veludo escuro complementando o figurino, além do sobretudo. No pescoço, que carregava uma medalhinha dourada de algo desconhecido por Georgi, Margosha fazia questão de espirrar um pouco de perfume antes de cobri-lo com uma echarpe azul-marinho com espaçados pontos brilhantes, que evidenciavam o faiscar apenas em certos tipos de iluminação — Georgi queria muito poder usá-lo algum dia.

Mas era quando Margosha dispunha atenção para seu rosto que ele definitivamente parava e atentava-se ao ritual que ali começava; uma grande e larga escova de dentes espaçados corriam pelas madeixas negras, desembaraçando as ondas bem marcadas que lhe batiam na altura do queixo. Os olhos, um poucos saltados, eram grandes e amendoados, num tom quente de castanho que parecia aquecer todo o interior do apartamento. Eles eram geralmente contornados de preto e esfumados em tons de roxo, os cílios esticados em negro, destacando ainda mais o belo formato dos olhos que Georgi não havia puxado. As bochechas, proeminentes e macias, eram coloridas com tons de rosa, tão bonitas e coradas que o menino podia compará-las com rosas frescas, fechadas em um botão. Por fim, os finos lábios eram tratados com o que parecia ser um batom sem cor alguma, mas que deixava a pele pálida brilhante e bem cuidada. Margosha era linda, mais do que todas as donzelas e heroínas dos contos russos que ouvia antes de dormir; era por isso que Georgi não conseguia imaginar seu rosto em nenhuma delas. Nem mesmo a fantasia era capaz de sobrepor-se à Margosha.

Tirada do fundo de uma gaveta, ela puxou uma caixinha de aparência muito simples, porém preenchida por um par de brincos muito conhecido pelo pequeno. Popovevna quase nunca usava aquela jóia, duas pérolas bem polidas, pálidas como ela, presente de alguém que, ela dizia para Georgi, ser “tão especial e amado quanto ele”. Se essa pessoa amava sua mãe da mesma forma que ele, Gosha ficaria muito feliz em conhecê-lo.

“Estou pronta!” anunciou, erguendo-se de onde estava. “Como estou, Gosha?”

“Linda!” ele gritou, mas aquele elogio não era capaz de expressar tamanha devoção e isso o chateou um pouco.

“Ora, muito obrigada!” Contudo, a gratidão de sua mãe com tal elogio foi o suficiente para fazê-lo esquecer do incômodo. “Vamos?”

De mãos dadas, eles seguiram para a estação de metrô, onde, também, sempre havia algo a ser notado. Cheio de pessoas, cheiros, sons e a própria decoração local, Georgi perdia-se nas paredes enfeitadas e pessoas bem agasalhadas, tentando registrar todos os detalhes para depois recordá-los em suas noites insones. Todos ali andavam tão rápido! Curioso, ele escolhia uma pessoa aleatória e começava a imaginar para ela uma história; por que corria tanto? Estava atrasada para algum compromisso importante? Quem estaria a esperando? Essa pessoa a ajudaria a tirar aquele pesado casaco? Ou viveria sozinha? Quando chegasse em sua casa — ou seria um apartamento como o dele? —, comeria alguma coisa? E seria seu prato preferido? Assistiria alguma coisa? Leria algum livro? Será que Georgi e esse desconhecido teriam algum assunto em comum?!

Sem aviso, Margosha abaixou-se à altura do filho e o trouxe no colo, apressando uma curta corrida até a plataforma onde pegariam o trem, fazendo Georgi perder o estranho de vista e sua linha de pensamento com todos os detalhes que jamais saberia. Ele quase ficou triste por isso.

A entrada do Bolshoi sempre se fazia visível e imponente, não importando a distância da qual era vista. Fazendo jus ao nome, o teatro era grande e majestoso, parecendo pronto para receber a realeza a qualquer momento e o menino com toda certeza sentia-se parte da nobreza quando punha seus pés nos degraus que levavam para sua entrada. Sua presença naquele lugar era diária, mas as luzes iluminando o prédio nas noites de apresentação pareciam transformá-lo em algo totalmente diferente; mágico — e de mágica, Georgi era profundo conhecedor.

Tirando dois ingressos do bolso do casaco, Margosha entregou ao filho os pedaços de papel que garantiriam suas entradas, embora eles não fossem obrigatórios para a costureira, principal membro do grupo de dança. Os porteiros liberaram a entrada da família com sorrisos discretos e, tão logo o interior do teatro os recebeu, Popovevna estava correndo com filho e saiotes embaixo dos braços, fazendo ecoar seu salto quadrado por todo pavimento. Faltava pouco menos de uma hora para a apresentação e ela não queria atrasar ainda mais a preparação de Minako.

A bagunça dos bastidores era como sempre, uma festa para Popovich. Era ali que ele também tinha inúmeros detalhes para admirar e decorar, coisas que lhe renderiam dias e dias de assunto a ser comentado com suas responsáveis. Nos camarins e por detrás das cortinas fechadas, ele podia ouvir a ponta das sapatilhas batendo contra o assoalho e medir a diferença na intensidade dos saltos pelo impacto causado quando os bailarinos terminavam de aterrissar no solo. Sussurros, conversas, gritos dos coreógrafos, instrumentos sendo afinados ao fundo enquanto alguns músicos treinavam algumas passagens da composição de Tchaikovsky… Aquilo tudo era tão incrível que Georgi só fazia sorrir.

Passando pelos corredores às salas dos camarins, Margosha foi cumprimentada por alguns e ignorada por outros, muito preocupados com a própria pressa, algo pelo qual ela não se importou, igualmente apressada. Foi com um suspiro de alívio que avistou a porta de uma das salas abertas, entrando no ambiente que era preenchido pelos risos altos de Minako Okukawa.

“Veja se não são minhas pessoas preferidas!” exclamou ela, abandonando as madeixas loiras que trançava, para recepcionar Margosha e Georgi. Segurando o rosto pequeno entre as mãos, ela logo estalou um beijo nas bochechas macias, tirando risadas do menor.

“São as minhas pessoas preferidas, também!” a bailarina com meio penteado feito, deixou o banco no qual estava sentada, para atravessar a frente de Minako.  “Margosha…” implorou em voz manhosa, agitando os braços em direção a Georgi. “Me deixe pegar essa miniatura de gente!” Rindo, ela autorizou, não demorando muito para Yulia tomar seu filho e abraçá-lo com força, como um ursinho de pelúcia. Georgi, é claro, adorava aquele tipo de atenção afetuosa. “Você é tão fofo, Gora!!”

Confiando nos cuidados da garota, ela voltou-se para Minako, que tinha ambos os olhos presos no figurino trazido por Popovevna. A curiosidade certamente a estava matando.

“Consegui terminar a tempo” informou a costureira estendendo o vestido, emocionada com o próprio feito.

“Você sempre consegue!” piscou-lhe a bailarina, certa do bom desempenho de sua amiga. Ansiosa, ela tirou o tutu da grande sacola e, àquela altura, a outra bailarina com quem dividia o camarim também havia se aproximado para conferir o trabalho de Margosha.

O bordado no corpo do figurino levava o dobro de pedrarias que o desenho original, um investimento feito por Minako e que ela com toda certeza recuperaria ao fim daquela temporada — ela jamais deixaria outra bailarina fazer uso de um figurino especialmente melhorado para sua apresentação. A saia reta do tutu havia ganhado uma sutil cobertura de tules lilases, onde pedrarias haviam sido costuradas de forma espaçadas, de modo a faiscar apenas no palco. Ela duvidava passar despercebida naquela noite e pouco se importava se não era uma estreia.

“Por que seu tutu é tão lindo e meu vestido é a coisa mais escrota e sem graça do mundo?” reclamou Yulia e por pouco Georgi não se ofendeu. Já trajada para a apresentação, ele podia ver que o vestido dourado da garota era de fato mais simples, porém não via nele motivos para reclamação. Não se importaria em vestir algo tão bonito…

“Yulenka, cuidado com esse palavreado na frente do Georgi-” Margosha tentou pedir, não conseguindo fazer sua voz sobressair à reclamação de Minako.

“Porque tiramos o tutu daqui escondidas, Yulia…” Okukawa revelou o segredo sem nenhuma vergonha, ao contrário do rosto corado de Margosha. “Porque se dependesse dos nossos maravilhosos superiores, eu dançaria enrolada em um lençol!”

A adolescente abriu a boca, chocada com a ousadia de Minako em reclamar e assim também reagiu Popovevna. Georgi não entendia porque entregariam lençóis para Minako vestir, mas uma vez liberado dos braços de Yulia, preferiu abaixar-se para onde estavam as sapatilhas e distrair-se com elas.

“E se eles te ouvirem, dançará na calçada!” em voz baixa, Margosha repreendeu a amiga. “Cuidado com o que fala, Minako…”

“É, sabe como essa gente é, podem foder com sua carreira” Yulia aproveitou a deixa para somar ao sermão. “Dispensaram sete meninas da minha turma antes das apresentações sem a porra de um motivo convincente, eles não pegam leve nem conosco, imagine se teriam pena de uma estrangeira asiática.”

A garota estava certa. Bailarina ainda em formação, Yulia era uma das poucas remanescentes de sua idade a sobreviver ao duro treinamento do Bolshoi, tendo visto uma a uma suas colegas caírem na avaliação sazonal providenciada pelos instrutores. Ela não sabia dizer se ainda permanecia ali por ser muito boa ou muito sortuda, mas precisava manter-se mentalmente forte se quisesse fazer parte dos principais solistas e garantir uma renda extra em sua casa.

Os professores do Bolshoi não poupavam nem mesmo seus conterrâneos, que dirá Minako Okukawa, encarada como intrusa desde sua aprovação no corpo de baile do balé Mariinski, quando o próprio ainda atendia pelo nome de Kirov, na falecida União Soviética. Minako havia calçado seu caminho até ali com muita dedicação e persistência; se dependesse de reconhecimento para continuar naquele emprego, teria sofrido com o descaso.

“Yulia tem razão, Minako…” Margosha lamentou. “Tenha cuidado, por favor…”

“Tá bom…” tentou disfarçar a culpa por preocupar a amiga com um resmungo, começando a substituir o collant escuro pelo tutu decorado. “Mas você também Yulia, se continuar com essa língua afiada, Lilia jamais te dará um papel grande!”

A menina quase se esqueceu de ajeitar as polainas quando ouviu aquilo. Margosha, por sua vez, já antecipava as risadas.

“Isso é um absurdo!! Como se as merdas que eu dissesse pudessem refletir na minha dança! Se me dissessem para fazer a porra do cisne morrendo, hoje, eu faria todos aqueles bostas chorarem!!”

“Yulia, não na frente do Georgi!” a costureira implorou mais uma vez, novamente ignorada.

“Eu estou cansada de ser subestimada por esses filhos da puta, quando eu for a próxima prima ballerina dessa porra aqui, vou exigir que beijem minha joanete!” esbravejou, maldizendo todos os produtores. Seus ataques raivosos eram engraçados, com direito a saltos, socos no ar e ranger de dentes, Georgi sempre se divertia.

“Porra…” o menino não se conteve e balbuciou aquela palavra engraçada, tão engraçada que ele riu em seguida, para horror de sua mãe e pavor de Yulia e Minako.

“Georgi, não!” disseram as três em coro. Estavam tão aflitas que o sorriso de Gosha calou no mesmo instante e ele sentiu os olhinhos arderem com lágrimas culpadas.

Margosha o pegou novamente no colo, mas ele não conseguiu distinguir os atropelados pedidos de desculpa de Yulia por cima da bronca que a menina recebia de Minako, ou as palavras amáveis da mãe explicando o porquê daquele linguajar não ser apropriado, lamentando com lábios trêmulos ter causado aquela exaltação. Georgi apenas se calou quando uma imponente presença feminina se fez no camarim, calando também as outras três mulheres.

Os olhos verdes de Baranovskaya estavam cerrados em um semblante que sempre parecia expressar chateação, profundo cansaço de todas as pessoas que a faziam perder a paciência. Coberta de vermelho dos pés ao pescoço esguio, Georgi pensava que ela estava pronta para algo muito importante — talvez a mesma comemoração que ele teria depois da apresentação? —, mas deixou a curiosidade dentro dos limites de sua imaginação, apenas.

Virando o rosto minimamente para Margosha, a costureira respondeu o cumprimento recebido muito discretamente com um sorriso e leve curvar de cabeça. Calada, Lilia esticou as mãos de dedos longos e finos para a echarpe enfeitando o pescoço de Popovevna, sorrindo ao alisá-lo e arrumar a gola. Logo depois, voltou a atenção para Georgi e sua feição endureceu um pouco antes de relaxar novamente, quando ela disse:

“Seu menino está cada dia mais parecido com você, Margosha.”

Maravilhado com aquela comparação, Georgi sorriu abertamente, expondo todos os seus dentinhos, inclusive os de trás. Daquela vez, Lilia sorriu de forma mais sincera.

Sorriso esse que morreu assim que sua atenção voltou-se para Yulia, quase engolindo a garota. Por mais irritadiça e de temperamento explosivo que pudesse ser, ela sabia dever abaixar a empolgação e a cabeça perto da ex-bailarina. Não precisava necessariamente incomodar a diretoria para ser chutada do Bolshoi, bastava irritar os sensíveis ouvidos de Baranovskaya para a própria providenciar sua saída e uma barra de sabão que serviria de almoço.

“Plisetskaya” começou Lilia, em um tom blasé que muito confundia quem escutava seus sermões. “Posso ouvir essa sua língua suja da Praça Vermelha.” Calada, Yulia não ousou nem mesmo pedir desculpas. “Concordo que, se eu te desse Odette hoje, você estaria pronta para matar toda uma plateia” aquela declaração a fez saltar, incrédula com um elogio tão direto. “Matar de desgosto com seu palavreado vulgar e decadente.”

A garota bufou ruidosamente, desmanchando a postura impecável de bailarina para uma condizente com seus quinze anos.

“Tenha modos, menina… Te dei Clara como uma oportunidade para você desenvolver melhor sua expressão artística, deveria estar grata, não resmungando e praguejando como uma delinquente.”

“Clara é uma criança!” reclamou.

“E você o que é?”

A ironia arrancou uma risada de Minako.

“Não está sendo muito dura com ela, senpai? Yulia tem muito talento, é muito forte na dança.”

Lilia cerrou ainda mais os olhos, em uma careta duvidosa. Ela nunca soube muito bem o que aquele senpai queria dizer e não lhe passava pela cabeça perguntar, mas aceitava as palavras japonesas da bailarina desde o começo de sua carreira no Mariinski, onde as duas se conheceram.

“A força não significa nada sem beleza, Okukawa.” Virando-se novamente para Yulia, Lilia continuou seu discurso. “Sabe quantas bailarinas em processo de formação têm a oportunidade de dançar o pas de quatre do Lago dos Cisnes, Plisetskaya? Nenhuma.” Reconhecendo ser exceção à regra, a garota voltou a abaixar a cabeça. “Tem oportunidades e reconhecimento que dificilmente dou a quem não tem talento, mas se para você personagens como Clara, uma protagonista, são insignificantes, talvez eu possa substituir seu pequeno cisne por outra veterana.”

“Não será necessário” afirmou em voz quase sumida. Minako e Margosha sabiam muito bem que por dentro ela deveria estar gritando.

“Termine de se arrumar e prenda bem esses cabelos. Quero ver um sorriso deslumbrante no palco.”

Acenando em silêncio para as outras duas e o pequeno Georgi, Lilia despediu-se e saiu do camarim, fechando a porta atrás de si. Popovich, atento às trêmulas mãos de Yulia, já estava preparando-se para perguntar se ela estava bem, quando a garota ergueu os olhos castanhos para a porta fechada e levantou os dois dedos médios, praguejando logo em seguida.

Baba!

“Tudo bem, garotinha, já passou…” Minako apoiou as mãos no topo de sua cabeça, forçando-a a sentar em frente ao espelho novamente. “Vamos terminar de te arrumar e de me arrumar, e mostrar para todo mundo como somos as melhores desse Bolshoi.”

“Sim!” Georgi, a seu modo, torceu por elas, batendo palminhas solitárias que em sua imaginação era uma enorme ovação. Yulia ainda parecia chateada, mas contrária à careta infantil, ela ergueu as mãos e pinçou o nariz da criança entre seus dedos, o fazendo rir.

“Aplauda bem alto quando eu estiver lá, Gora” pediu, a tensão deixando seus ombros aos poucos. “Eu saberei se não aplaudir, então é bom que o faça!”

“Eu vou!” para ele, era uma alegria garantir aquele apoio. “Para a Minako também!”

Tocada, a bailarina sênior soltou um grunhido e novamente segurou seu rosto, o apertando e beijando com carinho e empolgação.

“Obrigada meu amor… Seus aplausos serão a melhor parte da noite!” envergonhado, ele virou a cabecinha para o lado, escondendo no pescoço da mãe. “E os seus também, Margosha, quero ouvir seus gritos da fileira de trás!”

“Eu ganhei ingressos para a plateia central!”

“Você me entendeu…” riu ela, já tirando o collant preto para substituir pelo figurino de fada.

“Deixarei que se arrumem, agora, vejo vocês mais tarde!” despediu-se, fazendo o mesmo caminho que Lilia pouco antes. “Merde!” desejou e Georgi não entendeu.

“Que quebre a perna!” foi a resposta conjunta que ele também não entendeu.

Pelo jeito, apenas adultos poderiam xingar.

Com o filho no colo, Margosha fez o caminho para fora dos bastidores, passando por algumas salas já conhecidas até dobrar alguns corredores e chegar ao espaço da plateia, saindo pela lateral do palco. No fosso, os instrumentos mais pesados já estavam a postos, onde poucos músicos treinavam sozinhos. Georgi gostava especialmente da harpa, de ver os dedos da musicista responsável pelo instrumento correr pelos fios metálicos, conseguindo tirar música daquela estrutura tão diferente…

Poucas pessoas aguardavam em seus lugares, estando a maior parte do lado de fora, apenas esperando poucos minutos antes das cortinas abrirem para enfim acomodarem-se. Era sempre assim, mas geralmente Georgi espiava aquela agitação estando na ribalta. Chegava a ser divertido tomar um daqueles assentos, por mais desconfortáveis que fossem.

Desviando de alguns pés e joelhos dobrados, Margosha abriu caminho até os bancos numerados, onde o acompanhante da noite já os esperava com seus programas em mãos.

“Boa noite, Margosha” sorriu o homem por trás do grosso bigode. Ele usava uma boina de aba baixa, que sombreava seus olhos pequenos e o dava um semblante pesado, quase mau... “Boa noite, Georgi. Quer uma bala?”

Contudo, apenas o cenho era franzido. Nikolai Plisetsky era um homem muito bondoso que sempre tinha alguma bala de caramelo ou qualquer outro doce popular de embalagem colorida para oferecer. Grato, Georgi aceitou a oferta de bom grado, como sempre fora ensinado a fazer.

“Obrigado.”

“Obrigada, Nikolai…” Sorrindo mais abertamente do que o filho, Popovevna acomodou a criança antes de sentar-se enfim, já puxando assunto com o pai de Yulia. “Como está?”

“Morrendo de frio e sono” reclamou em tom ameno, confundindo Georgi sobre ele estar ou não chateado em estar ali. “Meus joelhos doem e o espaço entre as fileiras não me deixa esticá-los.” A costureira riu, embora lamentasse o inconveniente.  “Yulia passou a noite inteira nervosa e não me deixou dormir.”

“Mas hoje nem mesmo é a estreia!”

“Eu sei!”

“Talvez ela estivesse ansiosa porque o pai tenha vindo assisti-la?” sugeriu Popovevna. “Yulia adora o senhor e é a primeira vez que vem vê-la, não?”

Plisetsky acabou por concordar em silêncio. A razão pela qual não comparecia às apresentações do Bolshoi desde a entrada de sua filha na escola, era pelo protocolo local exigir um tipo de vestimenta que ele não possuía em seu modesto guarda-roupa. Yulia sempre lhe garantiu brigar e chutar todos que inventassem de implicar com seu pai por um motivo tão pequeno e fútil, e Nikolai sabia ser verdade. Por essa razão, não poderia confiar no temperamento difícil de sua filha e com isso colocar o sonho de uma carreira sequer começada em risco, não enquanto sua menina estivesse em formação. Ele teria dispensado O Quebra-Nozes também, se ela não tivesse sido escalada para o papel principal; se fosse para ver Yulia em destaque no palco, Nikolai não se importaria em deixar uma conta pendurada no alfaiate.

“Ela está linda, não está?” perguntou, ouvindo a própria voz embargar de emoção. Margosha entendia perfeitamente a sensação.

“Perfeita! O senhor poderá ver daqui a pouco!” Sem encarar a moça, Nikolai lia e relia o nome de sua filha na programação. Era surpreendente o quão longe Yulia estava conseguindo chegar, com um rendimento que ele jamais imaginaria. Ela era tão jovem, mas continuava impressionando, como um monstro que não para de crescer. Se aos quinze anos já era Clara, imaginava depois de formada. Apenas os solos, turnês onde seu nome seria destaque, viagens ao redor do mundo… Essa última parte o deixava triste.

“Estou perdendo minha menininha” lamentou quase aos prantos. Rindo baixo, Margosha inclinou-se ao lado de Nikolai e segurou-lhe o braço, tentando passar conforto.

“Yulia será sempre sua menininha…”

“Mantenha esse rapazinho por perto enquanto puder” aconselhou Plisetsky, retomando aos poucos a postura. Confuso com a frase, embora soubesse ser sobre ele, Georgi continuou atento às palavras saídas por detrás do bigode. “Quando se der conta, ele estará te deixando.”

“Eu não quero deixar a mamãe…” Georgi lamentou com o semblante baixo, pronto para chorar. Ele não gostava da ideia de abandonar sua mãe e seria muito triste viver sem Margosha. Aquelas ideias desoladoras não duraram muito, dissipando assim que ele sentiu os dedos da mãe alisando seus cabelos.

“Ninguém vai para lugar nenhum” sua voz doce lhe passou certeza. “Muito menos Yulia.” O fim da frase serviu de alerta para Nikolai. Ele não reclamou o resto da noite, desviando o assunto para falar sobre seu trabalho com soldas e metalurgia, nada que Georgi entendesse ou se interessasse, muito menos quando tinha todo o interior do teatro o qual se atentar.

Por todos os lados e acima de sua cabeça, o Bolshoi não deixava a desejar em detalhes. Os tons vibrantes de vermelho forravam cadeiras e estendiam-se nas cortinas do camarote real, cercado em dourado. Embora bonito como um pequeno palco decorado, Georgi pensava que estava muito afastado, preferindo bem mais seu assento na plateia, onde poderia ter uma visão mais privilegiada dos bailarinos.

Em destaque, centralizado no teto enfeitado, o candelabro brilhava, cercado pelas pinturas que poderiam ser pessoas ou anjos, ele não sabia muito bem, mas achava bonito. Tudo ali era muito bonito, principalmente as cortinas douradas, que fechadas, escondiam o mundo mágico de seu palco encantado. A orquestra sequer estava totalmente posicionada e ele já estava agitado.

Quando o primeiro sinal soou por trás das cortinas, Georgi saltou. Ele sabia que ao final do terceiro aviso a peça começaria, portanto sua animação já estava alta. Avisados pelo som da campainha, aos poucos as pessoas começaram a se aproximar, ocupando os assentos e enchendo a plateia e os camarotes, conversas paralelas baixas que juntas se tornavam um burburinho de expectativa. Popovich perguntava-se se aquelas pessoas estavam tão empolgadas quanto ele, empolgação essa reduzida com a presença massiva de pessoas que começou a atrapalhar sua visão das cortinas. Agora ele entendia porque o camarote real era tão requisitado.

Mesmo sem reclamar, Margosha percebeu o incômodo do filho, muito evidente no quanto ele se remexia na cabeça e tentava esticar o pescoço para ter um melhor vislumbre do tablado. Gentil, ela esticou os braços e o envolveu em um abraço, puxando-o para cima de suas pernas dobradas. Elevado no colo da mãe, Georgi conseguia ver a frente com muito mais clareza e as poucas cabeças ligeiramente mais altas que sua linha de visão, não incomodavam tanto. Com a empolgação retomada, o segundo sinal tocou.

“Nikolai” chamou Margosha, atraindo a atenção de Plisetsky. “, é melhor retirar a boina, ou daqui a pouco mandarão alguém para chamar sua atenção.”

Mostrando a quem Yulia havia puxado, o homem resmungou, retirando a boina e alisando os cabelos castanho-acinzentados para trás, tentando ajeitá-los da melhor forma possível. Contendo o sorriso, a costureira abaixou o rosto na altura da cabeça do filho e lhe beijou os fios negros, disfarçando o rosto risonho; Plisetsky estava hilário praguejando em voz baixa. Bolshoi e aquela porcaria de protocolos…

Agitado, Georgi mantinha os olhos presos na cortina fechada, as perninhas balançando no mesmo ritmo de seu coração ansioso. Quando o terceiro sinal foi dado, ele quase gritou de empolgação. Lentamente, as luzes foram descendo junto com as vozes que ainda conversavam e não somente Gosha, mas também Nikolai, se encantaram com todo aquele efeito quase encantado promovido por um apagar de luzes.

O maestro foi recebido com vibrante ovação, uma energia tão genuína que fez Georgi aplaudir também, embora não entendesse a razão. Tão logo havia sido finalizada a recepção entusiasmada, ele deu as costas para a plateia e ergueu a batuta, um bastão fino e comprido que muito se assemelhava a uma varinha encantada, como a da Fada Madrinha de Cinderela. Quando ele fez o primeiro gesto, Georgi podia jurar ter visto um punhado de brilho mágico riscar o ar.

A curta introdução calou a plateia em definitivo, sendo o único som ouvido no parcial breu do teatro. Preparando os ouvidos dos espectadores, a composição tratava de trazer a plateia para dentro de seu universo lúdico antes mesmo dos bailarinos poderem interpretá-lo. Dessa forma, quando as cortinas abriram para revelar o cenário natalino, Georgi já se sentia parte daquela festa.

No canto do palco, enfeitando o cenário que retratava uma grande e suntuosa sala, um enorme e decorado pinheiro reforçava o festejo natalino, com festões brilhantes, laços prateados e enfeites decorados com renas, bonecos de neve, pirulitos listrados e a máxima representação do festejo, réplicas plásticas de um Papai Noel redondo e vermelho, sempre sorridente para com aqueles que festejavam aquela data.

Muito bem vestidos com as cores típicas da ocasião, os convidados conversavam e dançavam, quando enfim um dos maiores destaques da festa — e da noite — fez sua primeira aparição, arrancando aplausos modestos das pessoas na sala e uma encantada ovação por parte da plateia: Clara.

Os cabelos loiros haviam sido puxados para trás em duas tranças laterais arrematadas por um exagerado laço brilhante, deixando visível o rosto delicado e evidente os olhos castanhos, que brilhavam ainda mais em contraste com o dourado de seu vestido de festa. Piscando os cílios claros de forma adorável, Yulia sorria e dançava com graça e delicadeza, de modo que não parecia ser ninguém menos do que a própria Clara.

“Nem parece a Yulia, mamãe!” Georgi cochichou encantado em como a interpretação da garota parecia fazê-la desaparecer totalmente.

Logo ao lado, tendo ouvido a declaração admirada do pequeno, Nikolai deixou uma lágrima cair, forçando ainda mais os aplausos.

Os presentes juntaram-se para ricas danças em pares, onde crianças e adultos dividiam espaço em uma coreografia que uniam todos em um grande círculo. Uma festa tão bonita que Popovich também queria participar, principalmente quando entrou em cena um homem de divertido exibicionismo, brincando com os convidados e destoando dos demais com as peças que mais destacavam em suas vestes, a longa e esvoaçante capa e uma comprida cartola, como um mágico. E, de fato, o padrinho da jovem Clara assim se comportava; tirando flores de suas mangas e moedas de trás das orelhas dos mais novos, Herr Drosselmeyer presenteou todas as crianças com brinquedos maravilhosos, deixando por último o presente da afilhada; um belo e ricamente decorado Quebra-Nozes.

O brinquedo não era somente responsável por intitular a peça de Tchaikovsky, como também tinha a função — boba para os adultos, maravilhosa para as crianças — de abrir nozes quando essas eram colocadas na abertura onde sua boca era pintada com grandes e marcados dentes brancos. Georgi achava maravilhoso como aquele boneco, mesmo trabalhando com as castanhas, conseguia manter-se sempre sorrindo. Não era preciso nenhuma mágica para tornar aquele brinquedo incrível.

Clara também pensava dessa forma. Ela havia ficado tão maravilhada com seu brinquedo, que o abraçou como se fosse gente, rodopiando na ponta das sapatilhas e valsando no espaço aberto pelos convidados daquela ceia. A menina saltou, girou e transbordou do palco à plateia, todo amor sentido por aquele brinquedo, de tal forma que a inveja de seu irmão Fritz, resultando na quebra do Quebra-Nozes, colocou não somente ela, como toda uma fileira de pessoas aos prantos. Pobre brinquedo! Pobre Clara!

Drosselmeyer, no entanto, não deixaria sua afilhada triste muito tempo. Assumindo o cuidado do boneco, ele o consertou como se fosse mágica — e talvez fosse! —, recuperando o braço partido e o sorriso da jovem Clara. Superprotetora de seu mais novo boneco preferido, ela o guardou com cuidado, onde julgou ser mais seguro e, tendo o feito, a noite correu magicamente, chegando o fim da festa e a hora de todos irem deitar. Despedindo-se do Quebra-Nozes com um abraço apertado, Clara recolheu-se com as outras crianças, embalada pela suave composição regida pela já esquecida orquestra. Tudo parecia em paz.

Parecia.

Clara não conseguia conter a saudade de sua mais nova aquisição, não demorando para abandonar seu quarto e se esgueirar pela noite, indo atrás do brinquedo. Qual não havia sido sua surpresa e a de todos os expectadores, ao encontrar a sala de sua casa repleta de enormes e horrendas ratazanas, muitas inclusive mais altas do que ela? Um deles estava até mesmo coroado como um rei! Clara entrou em desespero e Georgi também, principalmente depois de perceber que seu amado brinquedo não estava guardado na segurança de seu esconderijo. Oh, o que teria acontecido com seu Quebra-Nozes?

Sua dúvida não teve muito tempo de duração. Do tamanho de um homem e com a cabeça circular exibindo o largo sorriso característico, o Quebra-Nozes surgiu heróico, empunhando uma espada de aparência perigosa, com vários soldados como ele logo atrás. E testemunhando aquela batalha entre soldados de brinquedo e ratos gigantescos, estava Clara. O horror era perceptível em seus olhos, reforçado pela coreografia que evidenciava seu medo em assistir tal cena e a incapacidade de desviar sua atenção do embate entre os dois inimigos. Contudo, ao perceber a ofensiva dos ratos para cima do exército liderado pelo brinquedo e em como mesmo manuseando heroicamente sua espada, o Quebra-Nozes encontrava-se acuado, Clara bravamente desfez os laços de uma de suas sapatilhas e a arremessou com precisão e fatalidade; o sapatinho revestido de cetim quicou na cabeça do grande Rei Rato e levou sua coroa para longe. Afligido pela dor, o rei girou, girou, agonizou e por fim caiu no chão, completamente derrotado. Sem terem mais um soberano o qual seguir, os ratos se agitaram em uma bagunça que pareceu não ter fim, até os soldados do Quebra-Nozes terminarem de assustá-los e, apavorados, recolherem seu rei caído antes de fugirem de uma só vez.

A comemoração dos soldados e Clara não teve tempo de começar. Antes que se dessem conta, o Quebra-Nozes estava cercado por fadas de tutu e glitter, pequenos flocos de neve que circulavam o soldado e livravam-no daquela enorme cabeça caricata, revelando não se tratar de um brinquedo crescido, mas um belo e encantador príncipe. Georgi deixou o queixo cair com a revelação e assim fez Clara. Seu presente estava encantado! Ela havia salvado alguém da realeza! E o príncipe estava tão grato que os dois dançaram, sorriram e se divertiram, até o cenário abrir-se em branco e neve… Aquele era o convite feito à menina, chamando-a para conhecer o reino do Quebra-Nozes liberto de sua maldição, o Reino das Neves. Feliz em acompanhá-lo, Clara aceitou o convite e pegou em sua mão, deixando o centro do palco conforme fechavam-se as cortinas, rumo ao mundo nevado que a esperava…

“Lindo o primeiro ato, não achou, Nikolai?” perguntou Margosha, voltando-se para o pai de Yulia. Flagrado em lágrimas, Plisetsky fingiu não estar abalado e o mesmo fez Popovevna, ciente de sua relutância em expressar os sentimentos. Preferiu então atentar-se ao filho, que mantinha os olhos azuis presos no palco escondido, extasiado com o que acabara de ver. “Está gostando, Gosha?”

“É lindo!” vibrou, quicando de empolgação. Ele também já se imaginava lutando contra ratazanas e derrotando o rei malvado, se não com sapatilhas, com patins de lâminas afiadas. Eles eram bem mais pesados, certamente venceria o vilão com mais facilidade que Clara!

Margosha aproveitou o curto intervalo para levar o filho ao banheiro e o mesmo fez Nikolai, lavando o rosto para se livrar de qualquer sinal de seu choro. Os três só foram se reencontrar novamente faltando pouco para as cortinas voltarem a abrir, com mais uma nova oferta por parte de Plisetsky e seus caramelos. Novamente Georgi aceitou, mas optando por deixar a apreciação do doce para depois. Ele só conseguia ter olhos para o palco, naquele momento.

O começo do segundo ato foi uma nova experiência visual, com o cenário remontado naquele caminho mágico ao reino gelado do príncipe. Juntos, ele e Clara percorreram estradas confeitadas, dançaram com personificações de todos os doces do mundo, torrões de açúcar e balas azedas, até o rei e a rainha do Reino das Neves aparecerem e recepcionarem Clara como um membro de sua família.

À heroína daquela noite, foi oferecido um trono branco, que poderia ser neve ou açúcar, um lugar exclusivo e de visão privilegiada para o show organizado como forma de agradecimento. Sorrindo abertamente, Clara aceitou a gentileza e acomodou-se ao lado da família real, aguardando para ver quantas maravilhas mais aquele universo guardava.

Um a um, representantes de todos os lugares possíveis e impossíveis se apresentaram, em uma gratidão pela ajuda de Clara que não tinha tamanho. Realezas dos quatro cantos se concentraram ali, onde também flocos de neve bailaram e flores valsaram em agradecimento. Quando o anúncio de uma fada foi feito, Clara mal pôde acreditar e também Georgi se emocionou quando ela apareceu:

Vestida em branco e lilás, Minako brilhava desde os cabelos castanhos à ponta da sapatilha — e isso literalmente. Não somente seu figurino cintilava com a aplicação de cristais providenciada por Margosha, como o rosto da bailarina carregava brilho em excesso, o suficiente para provocar o desgosto dos produtores da peça e o encantamento da plateia. Seus pontos fortes haviam sido realçados pela maquiagem em tons delicados, o suficiente para não sobressair ao glitter aplicado nas pálpebras, maçãs do rosto, estendendo-se ao colo, ombros e ponta dos dedos, ofuscando seu parceiro de dança, o igualmente doce Cavalheiro. De onde estava, Georgi podia ver em Minako um doce confeitado, inteiramente salpicado de açúcar, uma Fada Açucarada como ela.

O Grand Pas de Deux dançado ao lado de Rurik, parceiro de Okukawa na maioria das variações e também um affair de longa data da bailarina, foi mais esperado pela plateia do que o restante do balé em si. A Fada Açucarada era mais protagonista daquela peça do que a heroína Clara ou o próprio príncipe intitulando o bailado, aguardada e amada por todas as gerações e em todas as aparições. Erguida para o alto pelo Cavalheiro, acompanhando-o na variação romântica e fazendo todos acreditarem naquele romance, Minako Okukawa era um suspiro, um fôlego que intencionava falar algo, mas que morria pela falta de palavras que pudessem traduzi-la como bailarina e mulher. Se em par ela era capaz de apagar a existência do corpo de baile e fazer daquele palco casa unicamente dela, como solista, sua apresentação já poderia dar a noite por encerrado;

Quando a celesta e o clarinete começaram a protagonizar o tema da fada doce, as pessoas suspenderam suas respirações. A composição era mágica por si só, mas com a interpretação de Okukawa, atingia um nível totalmente novo de encantamento. Vê-la dançando fazia valer o ingresso e todo o deslocamento que muitos faziam de longe, apenas para conhecer o Bolshoi e seus lendários bailarinos. Seu trabalho na ponta era diferente de tudo o que já haviam visto, sequer parecendo tocar o chão; Minako flutuava sem precisar de asas e encantaria mesmo se não fosse uma fada seu papel — se duvidassem, ela era a reencarnação da própria Agrippina Vaganova. Se O Quebra-Nozes era a peça da qual Tchaikovsky mais se arrependia em ter criado, com toda certeza a Fada Açucarada da bailarina japonesa o faria reconsiderar.

Antes mesmo de finalizada a variação da Fada Açucarada, a plateia já aplaudia. O bailar de Minako pareceu durar para sempre, mas quando enfim foi concluído, todos estavam de acordo que havia sido muito pouco. Os aplausos que encheram o Bolshoi foram tão intensos quanto a ovação que os bailarinos costumavam receber ao fim de um espetáculo. A pausa feita pela orquestra entre os agradecimentos de um solista e outro, precisou ser aumentada, ou Okukawa não daria conta de agradecer os aplausos, sendo metade em pé. Assistindo tudo aquilo, Yulia desejou poder gargalhar. Ela daria tudo para ver a cara azeda dos produtores assistindo Minako brilhar em todos os sentidos. Para lamento do público, Minako finalizou sua participação da noite, deixando os espectadores na expectativa de sua aparição para os aplausos finais.

Plateia desolada com o fim de todas as variações fantásticas daquele sonho natalino, também Clara percebeu-se triste ao acordar e deparar-se com o fato de tudo aquilo ter sido um maravilhoso sonho. De qualquer forma, ela sempre amaria seu Quebra-Nozes e, abraçando-o, atendeu ao chamado dos pais quando esses a chamaram para recepcionar novamente seu padrinho, que naquele dia trazia um convidado especial, um sobrinho que ninguém sabia ele possuir, cujo rosto era idêntico ao do príncipe do Reino das Neves. Pasma, Clara revezou os olhares entre seu boneco e o rapaz, questionando o que provavelmente todas as suas testemunhas também queriam saber: havia sido tudo, de fato um sonho?

Pela segunda vez naquela noite, a plateia aplaudiu em pé, assoviando e ovacionando a apresentação dos solistas e de todo o corpo de baile. A aparição de Minako causou tamanha comoção que os espectadores gritavam bis, exigindo uma nova oportunidade de aplaudi-la até suas palmas ficarem dormentes. A noite havia sido definitivamente um sucesso.

Do lado de fora, ainda era possível ouvir grupos de pessoas conversando sobre a apresentação, elogios sobre a rica interpretação de Yulia que fazia Nikolai estufar o peito de orgulho, junto com elogios imensuráveis sobre a “solista japonesa”, que muitos pareciam ignorar o nome claramente escrito no programa da noite. Empolgada com a popularidade de sua amiga e da jovem bailarina, Margosha puxou Plisetsky para uma conversa animada, com muitos elogios por parte da costureira e previsões de um futuro brilhante para Yulia, além da esperança de um maior reconhecimento para Minako, depois daquela noite.

Distraídos, só perceberam a aproximação agitada de Plisetskaya, quando a garota já havia se aproximado em uma corrida barulhenta, tomando Georgi nos braços e o girando no ar. O susto não tirou nenhuma exclamação do menino, e sim risadas, provocadas pelas cócegas feitas propositalmente pela garota.

“Você parece uma pelúcia com essa touca felpuda!” brincou ela, referindo-se ao gorro de lã com extensões laterais que serviam para proteger suas orelhas do frio cortante. “Papai, podemos levá-lo para casa?!” Nikolai revirou os olhos verdes, mas não respondeu. “Tenho algo para você, Gora!” avisou, mais animada do que a própria criança ficou com a notícia. Segurando-o com um dos braços, Yulia usou a mão livre para buscar algo no bolso do casaco pesado, que o menino não conseguia enxergar, por mais que tentasse.

Ao colocá-lo na frente dos olhos de Georgi, finalmente ele pode ver do que se tratava o “algo” que Yulia havia falado, uma bailarina transparente de detalhes brancos e brilhantes, presa por um fio prateado, um enfeite natalino. As mãozinhas enluvadas logo pegaram o presente, trazendo-o para perto de seu casaco, onde Georgi pensou poder protegê-la do frio.

“Obrigado!” Estava tão encantado com a pequena bailarina que por pouco esqueceu de agradecer. “Ela é linda!”

“É a Fada Açucarada, aqui” brincou Yulia, apontando para Minako, se aproximando do resto do grupo. “Agora vai poder lembrar desse dia para sempre.”

“Que exagero…” Okukawa provocou. “Georgi vai olhar para esse enfeite daqui uns anos e nem vai saber porque ganhou.”

“Vou sim!” protestou ele, os lábios fechados em um bico manhoso. “Vou lembrar para sempre!” E depois, olhando para a mãe, decidiu perguntar: “Por que vou me lembrar, mamãe?”

Era melhor tirar a dúvida com Margosha, ela sempre sabia de tudo.

A pergunta, contudo, pegou ela de surpresa e isso se fez evidente pelas sobrancelhas arqueadas. Minako reagiu de igual forma, incrédula que Georgi houvesse se esquecido; eles haviam falado sobre isso a semana toda!

“Hoje é seu aniversário, meu amor!” Margosha riu. Aquela informação pareceu totalmente nova a Popovich.

“Verdade?!”

Finalmente aquele dia cheio de exceções comestíveis fazia sentido. Georgi achou tudo aquilo o máximo!

“Yulenka, por que não me contou?” esbravejou Nikolai, esvaziando os bolsos com os últimos caramelos que trazia. “Aqui, Georgi, para adoçar a vida!”

Com as mãos ocupadas, ele precisou se esforçar para segurar todos os presentes. Georgi nunca havia ganhado tantas coisas maravilhosas de uma só vez! Sua felicidade era tamanha, que seus pezinhos não ficaram presos ao solo muito tempo, revezando pulinhos da mais pura empolgação. Não tinha como se esquecer daquele dia, nunca!

“Bem que eu o achei muito calmo, hoje…” Para Margosha, finalmente fazia sentido.

“Parabéns, Georgi, muitas felicidades.” O tom grave de Nikolai era estranhamente acolhedor, fazendo o garoto sorrir. Apegado às tradições, Plisetsky segurou uma das orelhas do menino e as puxou levemente cinco vezes, costume esse que visava apenas o desejo de uma vida longa e feliz. Georgi gostava muito dele. “Vamos, Yulia? Meus joelhos doem e eu trabalho amanhã.”

“Sim, por favor, estou exausta e só quero a minha cama…” escorada no pai, Yulia o abraçou, antes de despedir-se dos demais. “Aproveitem bem o fim da noite.”

“Bom trabalho hoje, Plisetskaya” elogiou Minako, acenando em despedida.

“Você também, Okukawa” sorriu de volta. “Fez todos comerem glitter, estou orgulhosa de você.”

“Tchau, Yulia!” Georgi tentou acenar, balançando suas balas e o enfeite no ar. “Eles não querem comer bolo, mamãe?”

“Oh, é verdade! Yulia, Nikolai!” Pai e filha, que já estavam alguns metros à frente, voltaram-se para Margosha. “Compramos um poliot para comemorar os cinco anos do Georgi, vocês estão convidados para aparecerem amanhã e dividirem um pedaço conosco!”

Yulia pareceu recuperar a disposição na mesma hora. Ela adorava doces e tinha um fraco especial por suspiros, que iam em peso na massa recheada.

“Agradeço o convite, Margosha, mas eu trabalho amanhã… Se Yulia quiser ir, por mim tudo bem.” A autorização fez a garota dar um beijo estalado na bochecha do pai. Não teria melhor forma de aproveitar seu dia de folga.

De volta ao encontro de Minako e Georgi, Margosha trouxe o filho no colo, voltando a rir quando lembrou de toda a tarde que passou ao lado dele sem que o menino se desse conta da data festiva. Pequenas alegrias divertidas que apenas crianças podiam proporcionar.

O trajeto feito nos braços da mãe, tornavam a caminhada tão agradável quanto um passeio. Gostava de ver a respiração condensar no ar e o mesmo acontecer com o ar quente que saía das bocas de Margosha e Minako enquanto as duas conversavam, a bailarina reclamando do glitter incrustado em seus cabelos e Popovevna tentando consolá-la por seus excessos. Aquelas cenas eram sempre familiares. Tudo estava certo.

Com a cabeça repousada no ombro de Margosha, Georgi estava quase pegando no sono, quando a visão da enorme árvore de ano novo decorada o livrou do mundo dos sonhos, o lembrando no mesmo instante de onde teria a visto antes. Erguendo-se, ele quase caiu dos braços da mãe, desejando poder saltar dali e correr todo o espaço da Praça Vermelha até a pista de patinação pública.

As suntuosas construções que cercavam a pista eram sempre enfeitadas durante a noite, suas fachadas envolvidas com um intenso jogo de luzes que sozinhos poderiam iluminar toda Moscou. Muitas pessoas esperavam em filas para entrar e mais ainda deslizavam pela pista gelada, sozinhas ou acompanhadas, pessoas de todas as idades, alturas e rostos dividiam espaço no GUM para aproveitarem como podiam aquele espaço mágico para os olhos do Georgi. Era um dos motivos que o fazia amar o gelo; ele sempre aceitava a tudo e todos.

“Podemos ir?!” implorou. Precisava ter certeza de que sua mãe aprovaria.

“Claro, Gosha, é por isso que estamos aqui.” Como forma de agradecimento, Georgi envolveu o pescoço de Margosha em um abraço apertado. “Eu sabia que iria gostar…”

“Aqui, eu já adiantei as entradas” Informou Minako, estendendo os tickets. Sua saída adiantada naquela manhã havia sido para conseguir acesso ao rinque, sem que precisassem depender da fila depois da apresentação. “Uma hora para cada, aproveitem.”

“Minako, eu disse que não precisava comprar.” Margosha não estava satisfeita com o gasto de sua amiga.

“Só quis poupar tempo…” reclamou em um muxoxo fingido. Ela sabia quão orgulhosa Popovevna podia ser.

“Poderia ter me pedido dinheiro, antes.”

“Eu posso abrir uma exceção de vez em quando, é pelo Georgi!”

“Você sempre abre exceções para o Georgi, já virou uma regra.”

O menino não estava entendendo nada, mas já estava agitado o bastante para não querer mais ficar no colo da mãe.

“Não vamos patinar?”

Diante aos olhinhos pidões, Margosha esqueceu um pouco seu incômodo. Depois ela conversaria direito com Minako e devolveria cada centavo gasto sem sua autorização.

“Vão se divertir! Eu vou beber algo quente e já volto.”

“Você não vem?” Georgi queria que também Minako participasse da brincadeira.

“Talvez outro dia, meu bem, meus pés estão me matando hoje… Mas confio que você vai se divertir o bastante por mim também, não é?” Prontamente ele concordou. “Vejo vocês daqui a pouco.”

Margosha ainda suspirou antes de se afastarem, não tendo mais tempo para reclamar quando Georgi, ansioso, começou a puxá-la pela mão, em direção ao rinque. Ele era sempre comportado e gentil, ela não se importaria daquela vez em deixá-lo decidir os planos do resto da noite.

Georgi foi o primeiro a colocar os patins com ajuda dos funcionários do rinque, e o primeiro a partir para a pista sem esperar pela mãe, atitude rara vinda do pequeno. Era como se ele tivesse encontrado algo de muito valioso no meio da enorme pista e precisasse correr se quisesse alcançar antes daquilo ser pego por outra pessoa, ou desaparecesse sem que tivesse a chance de por suas mãozinhas naquele sonho que era ser Oleg Nikiforov. Se pudesse alcançá-lo, o que diria? Pediria permissão para patinarem juntos? Pediria para ser tão bom quanto ele?

Seus olhos ainda estavam presos no contorno trêmulo e meio apago de Oleg, em um enorme esforço em manter aquela visão intacta, contudo, um grupo de pessoas passou patinando no espaço onde antes a imagem do patinador se projetava, provando quão longínquo e efêmero era a idealização de Georgi. Um pouco decepcionado, ele parou de mover as lâminas pelo gelo e isso possibilitou Margosha se aproximar mais rápido do filho.

“E agora, para a apresentação do nosso programa livre, temos Georgi Popovich, da Rússia!” ela cochichou aquela frase ao abaixar-se à altura do filho, para apenas ele ouvir. Aquela brincadeira sempre tirava sorrisos de sua criança e daquela vez não foi diferente. “Ele prepara-se para mais uma brilhante performance no gelo! Qual será a música que ele apresentará hoje?”

“Romeu e Julieta!” anunciou animado. Estava mesmo imaginando-se pronto para uma apresentação.

“Romeu e Julieta, uma emocionante e romântica composição de Pyotr Ilyich Tchaikovsky!” Popovevna anunciou, emocionada em cada palavra. Com as mãos segurando o filho firmemente, ela o guiava em curvas tímidas, que na imaginação de Georgi pareciam passos elaborados e cheios de técnicas difíceis. “Popovich, a maior estrela de seu país, começou a temporada com as melhores pontuações do placar!” Ouvir aquelas palavras sobre si o faziam rir envergonhado. “Liderando a busca pelo ouro, os demais competidores não terão chance essa noite!”

Confiante na segurança passada pela mãe e no desempenho que imaginava ter, Georgi abriu os braços, pensando se com aquilo poderia abraçar o público o aplaudindo em sua cabeça. A apresentação não deveria ter mais de quatro minutos, mas ele não se importaria em patinar os mais de vinte da composição original e seus espectadores também não.

Erguendo-se, Margosha também trouxe o filho para cima, elevando-o acima de sua cabeça. O sorriso de Georgi congelou junto com o clima, maravilhado com a altura considerada enorme, mesclado com o sentimento de poder de fato ter feito aquele salto sozinho.

“Um lutz perfeito! Que saída brilhante, que finalização limpa! Georgi Popovich é genial, a maior estrela de seu tempo e de todos os outros!” Feliz, ele aplaudiu, aplausos abafados pelas luvas de lã, todavia, sem deixarem de ser ensurdecedoras em sua imaginação. “E agora um duplo axel! Incrível! E qual terá sido o tema a inspirar tamanha apresentação?!”

“Você, mamãe!”

Por um breve momento, Margosha oscilou, quase esquecendo de prosseguir com a brincadeira. Abaixando-o à altura do colo, ela interrompeu um flip imaginário para estreitar o filho nos braços. Georgi não sabia o que aquilo significava, mas adorava poder abraçá-la, retribuindo o gesto com todo amor que podia colocar.

“Eu te amo tanto, Gosha…” declarou ela, seu amor sendo palpável em cada letra.

A encenação de seu programa livre havia acabado, mas dentro daquele abraço, sentia que a plateia continuava a aplaudir.

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As batidas na porta foram o despertador de Margosha e Minako, que a muito contragosto abriram os olhos. Lentas por terem sido arrancadas de seus respectivos sonhos, levaram certo tempo para entenderem onde estavam e de onde vinha o barulho. Olhando para o lado, Margosha foi capaz de ver o espaço de Georgi vago no colchão, enquanto o próprio encontrava-se desenhando na mesa da cozinha improvisada, muito silencioso e atento a cada detalhe colorido de sua criação. Ver a mãe acordada o fez sorrir e acenar em mudo desejo de bom dia.

A segunda tentativa da visita em bater na porta, despertou as duas por completo. Lembrando de repente quem poderia ser, ambas pularam da cama, sendo Okukawa a tomar a iniciativa de se arrastar até a porta, embora o sono a fizesse enxergar a mesma duplicada.

“Que horas são?” Margosha forçou a visão e quase caiu para trás quando percebeu ter passado das onze horas da manhã. “Meu Deus, quando você acordou, Georgi?”

“Faz tempo!” ele informou sorridente, muito orgulhoso de todas as horas que havia dedicado aos seus desenhos. Georgi não podia imaginar como aquela informação quase matou sua mãe do coração.

“E você não comeu até agora…” Margosha só não se descabelava, pois os cabelos já estavam amassados o suficiente.

O apartamento de Popovevna e Okukawa recebeu Yulia com enorme bagunça, nada do que a garota já não estivesse acostumada. Minako ainda tinha laquê e glitter nos cabelos da apresentação anterior e os olhos com maquiagem borrada estavam inchados, assim como os pés, machucados e cobertos de curativos. Os de Plisetskaya estavam do mesmo jeito, reclamando o aperto causado pelas grossas meias de lã e a bota fechada.

“Eu ia pedir desculpa pelo atraso, mas acho que não precisa.” Com uma caixa de doces em mãos, Plisetskaya entrou no apartamento, rindo do pequeno caos.

“Oi, Yulia!” Georgi gritou de onde estava, acenando animadamente.

“Oi, Gora!”

“Seja bem-vinda….” Minako bocejou, fechando a porta assim que a bailarina terminou de entrar. “Não repare a bagunça, acabamos de acordar.”

“Bom dia, Yulia, perdoe estarmos dormindo…” Margosha quase implorou. Ela havia conseguido pelo menos jogar uma água fria no rosto e despertar o bastante para não perambular pelo apartamento como uma morta-viva.

“Sem problemas, Margosha, eu também estaria, não fosse nossa querida ex-prima ballerina Lilia Igorovna Baranovskaya acordar meu pai de manhã, solicitando que me mandasse ao Bolshoi com urgência…” O tom usado pela garota era amargo e seu rosto franzido apenas acentuava o desgosto. “Estava morrendo de medo que me mandasse cobrir Nadia na apresentação de hoje, mas ela queria apenas arrancar minhas orelhas e pendurar na árvore de Natal do cenário, para compensar o enfeite desaparecido que aquela bruxa jura de pés juntos que fui eu que peguei!”

Era muito informação para Minako ou Margosha reagirem, restando a Georgi rir do tom divertido e os trejeitos dramáticos usados por Yulia quando estava irritada.

“Que enfeite?” Haviam tantos naquela árvore, Okukawa queria saber como Lilia havia dado por falta de algum.

“O que eu dei ao Georgi.” Situação irrelevante para ela, Plisetskaya deu de ombros, começando a se livrar da bolsa e excesso de casacos.

“Yulia, você não deveria…” Margosha desistiu do sermão ao ver o filho descendo da cadeira com um amontoado de folhas rabiscadas em mãos. Identificou em um desenho e outro o que deveria ser a apresentação de Quebra-Nozes e, conhecendo o filho como conhecia, ele provavelmente faria daqueles desenhos seu agradecimento ao presente de Plisetskaya.

“Para você, Yulia!” Dito e feito.

Sorrindo, ela apanhou as folhas e as viu uma a uma, desenhos claramente infantis, mas ricos em cores e detalhes. Yulia podia ver a grande árvore natalina na representação do palco e várias pessoas coloridas ocupando a sala da casa de Clara. No meio do palco, maior do que todos eles, destacava-se ela, vestida em uma mistura de amarelo e marrom que tentava copiar o dourado do figurino. Em seu rosto de traços simples, um sorriso enorme pintado de cor-de-rosa representava o destaque que aquele semblante suave teve para Georgi e ver-se na interpretação doce daquela criança chegou a emocionar Yulia. As outras folhas tinham cenas adicionais, como o Quebra-Nozes sendo entregue por um Drosselmeyer de cartola comprida, ratos seguindo uma ratazana enorme de coroa e depois, a mesma ratazana da realeza no chão, com o que deveria ser a sapatilha de Yulia ao lado. Não somente o primeiro ato, como o segundo, onde ela podia contar três folhas dedicadas à retratação da Fada Açucarada, envolvida por rabiscos cruzados que representavam o cintilar do brilho carregado por Minako. Aquilo devia ter dado tanto trabalho… Respondendo a expectativa da criança com gestos, Yulia o puxou para um abraço. O mundo não merecia a bondade de Georgi Popovich.

“Margosha, o seu filho é um anjinho e eu vou pendurar ele na árvore de Ano Novo da Praça Vermelha.”

Se aquela era a forma de Yulia dizer que havia gostado do presente, o garoto se dava por satisfeito.

“Eu prefiro ter meu anjinho por perto, mas obrigada pelo carinho com ele.” Devidamente recuperada do sono, Margosha tirava pratos e talheres do pequeno armário, organizando a mesa com ajuda de Minako, ainda muito calada, tentando entender estar acordada. “Vou substituir o café da manhã por bolo, hoje, já que acordamos tarde.”

Tanto Yulia quanto Georgi comemoraram e naquela hora Margosha não soube medir qual dos dois era mais infantil. Se não tomasse cuidado, a criança com toda certeza roubaria os suspiros da cobertura com creme e ela não estava referindo-se ao filho.

Sentados à mesa, as três começaram a bater palmas, celebrando o aniversariante que, muito envergonhado, tentou esconder o rostinho nas mãos ainda menores. O bolo não tinha nenhuma vela, mas aquilo não impediu Margosha de encorajar o filho a completar o ritual daquele tipo de data festiva:

“Vamos, Gosha, faça um pedido!”

Não foi difícil escolher. Georgi tinha quase tudo o que amava por perto, sua mãe, Minako, Yulia com seu jeito engraçado, os caramelos de Nikolai, rinques de patinação, histórias e muitos detalhes para registrar com seus lápis coloridos. Ele podia até se dizer completo, porém ainda havia uma coisa, uma que Georgi podia até dizer que possuía, mas não era o suficiente.

Lembrou-se da fita guardada com suas coisas e logo o pódio veio em mente, a maior estrela de seu país recebendo o merecido ouro. Sim, era aquilo o que ele desejava em seu aniversário;

Quero ser Oleg Nikiforov.

“O que desejou, Georgi?” perguntou Minako, curiosa em saber o que tanto fazia os olhos azuis do menino brilharem.

“Ele não pode contar, Minako, senão não realiza o desejo!” Margosha lembrou a amiga e Georgi ficou muito feliz em poder contar com a ajuda da mãe. Queria poder contar seu desejo, mas temia a não realização do mesmo. Quem sabe quando finalmente fosse grande e coberto de medalhas, ele contasse?

“Ah, antes que eu me esqueça” Yulia atravessou o corte do bolo, correndo até a bolsa largada sobre o colchão de Okukawa. “Estavam na recepção, me pediram para aproveitar a viagem e trazer.” Ela balançou os envelopes lacrados no ar, os anunciando como em um comercial. “Carta para Margosha Popovevna, direto de São Petersburgo e carta para Minako Okukawa, com um monte de rabiscos que eu acho que deve ser japonês…” Plisetskaya provocou e Minako quase arrancou os dedos da menina na hora de pegar o papel a ela endereçado. “E um extra para nossa ilustríssima bailarina importada, um recado que Rurik me pediu para te entregar, algo sobre estar morrendo por precisar dançar com Laura hoje, e você estar uma delícia ontem como Fada Açucarada e ele querer te lamber todinha, não que eu tenha lido o bilhete nem nada disso…”

Escandalizada, Minako pulou em Yulia e tomou o papel dobrado. Se Lilia não tinha arrancado as orelhas dela antes, Okukawa o faria agora!

Margosha terminou de servir as fatias do poliot, embora sua felicidade com o remetente da carta tivesse conseguido deixar o protagonismo do bolo de lado. Com a empolgação de uma criança, ela abriu o envelope de papel claro e a primeira coisa que tirou dele, foi um cartão postal com a imagem de uma igreja de cúpula colorida. Curioso, Georgi permaneceu olhando para o cartão em posse de sua mãe, perguntando-se se aquele também iria para sua coleção.

“É para você, Gosha!” Feliz em confirmar seus desejos, o garotinho se aproximou para ouvir melhor o que a mãe tinha a dizer sobre o cartão. “Essa é a Catedral do Sangue Derramado. Aqui atrás diz que os mosaicos que enfeitam o interior dessa igreja ainda estão sendo restaurados. O processo de restauração começou em 1980, muito antes de você nascer!”

Georgi achou aquilo incrível.

“Como são lerdos!” Yulia brincou, com a boca cheia de creme.

“Sabia que a mamãe cresceu perto dessa igreja?” Impressionado, Georgi apenas balançou a cabeça em negativo. “Eu te levei lá quando era um bebezinho.” Aquilo foi uma surpresa para Popovich, pois sempre imaginou ter vivido toda sua curta vida em Moscou. “Aqui, é seu.”

Contente, Georgi pegou o cartão, observando a foto colorida e as letras incompreensíveis em seu verso. Era um ótimo cartão e completaria perfeitamente sua coleção!

Antes que pudesse correr à caixa e somá-lo aos demais guardados, Minako o chamou; em sua mão ela também segurava um cartão postal, o que o fez rir. Seu dia estava cheio de presentes e ele estava adorando.

“Olha só o que te mandaram!” Curioso, Georgi esticou o pescoço para conseguir enxergar melhor qual era a imagem que sua coleção ganharia. Ele já tinha tantos cartões vindos do Japão, era sempre uma alegria ganhar novos! “Essa é a foto de um castelo tradicional que existe na minha cidade e aqui no verso escreveram que era o abrigo de antigos ninjas.” Conferindo aquele amontoado de tracinhos que compunham as letras do alfabeto japonês, Georgi prestava atenção. “Aqui na frente está escrito em kanji o nome dessa cidade, vê?” Pegando um dos dedos de Georgi, ela guiou a pequena digital pelas linhas impressas, pronunciando conforme as lia. “Hasetsu.

“Como é meu nome nisso?” questionou. Existia uma forma de escrever seu nome em um alfabeto que não fosse o cirílico ou o romano?

“Eu vou precisar pesquisar, meu bem, mas a pronúncia acho que soaria engraçada para você: Guioruguii.”

Estupefato, ele suspendeu a respiração antes de gargalhar. Com os lábios fechados naquele bico que Minako fazia para falar seu idioma natal, ele ficou repetindo seu nome engraçado.

“Eu não acredito!!” Assustando inclusive Margosha, até então compenetrada e sorrindo largo para a carta vinda de São Petersburgo, Okukawa vibrou com tamanha intensidade que poderia ter feito as paredes do apartamento tremerem. “Finalmente Hiroko-chan mandou fotos do filhinho dela!!”

Yulia foi a primeira a se levantar de onde estava para se aproximar, sem deixar de lado o prato com o segundo pedaço de bolo servido por ela mesma. A garota adorava crianças, embora detestasse ser comparada com uma. Assim que seus olhos castanhos viram o registro de um bebê cheio de dobrinhas e bochechas coradas, ela deu risinhos constrangedores e grunhidos de quem está tendo um ataque.

“Esse bebê é tão fofo, queria poder apertar ele inteiro!!”

“Não é?!”

“Também quero ver!” Margosha pediu. Ela sentia tanta saudade de quando Georgi ainda cabia dormindo em um de seus braços, que ver imagens de bebês a remetia às boas e insones noites onde ficava velando pelo sono do filho. ‘Oh, meu Deus, ele é uma graça!”

Curioso, Georgi se pôs na pontinha dos pés, querendo também enxergar o bebê. Notando o interesse, Margosha o pegou no colo e, empilhados lado a lado, todos dividiram espaço para admirar a miniatura asiática.

“Foi para ele que você escolheu um nome?” perguntou Popovevna.

“Sim… Hiroko-chan era minha kouhai, nos dávamos muito bem, eu era babá dela quando não tinha nenhum ensaio… Cheguei a estudar com o garoto que veio se tornar marido dela, vejam só como esse mundo é pequeno!” riu, saudosa de sua adolescência com uniforme de marinheira e visitas ao onsen. “Bem, Hasetsu é pequeno, não que lá tivesse muita opção…” riu novamente, resgatando na memória todas as recordações que tinha do Japão, e em como, mesmo treze anos longe dele, a saudade não havia amenizado. “Quando brincávamos de boneca, Hiroko-chan vivia me dizendo que eu escolheria o nome de seu primeiro filho e eu nunca achei que fosse verdade, ela era muito criança! Mas então, eu recebo uma carta em um dia qualquer e ela me conta da segunda gravidez, reforçando o convite que teria me feito quando tinha sete anos…”

Relembrar seus amigos e sua casa a deixavam emotiva e Margosha o sabia bem. Yulia, por sua vez, não entendia o que era para significar o “kouhai” e o “chan” no fim do nome da tal Hiroko. Deveria ser seu sobrenome? Ou patronímico, talvez, visto que era algo recorrente em todos os “chan” e “kun” que ela já havia ouvido vindo da japonesa?

“Qual o nome dele?” Georgi perguntou, querendo por um fim em suas dúvidas.

“É Yuuri.”

“Eu amo esse nome!!” Por Yulia, o pequeno Yuuri Katsuki estava mais do que aprovado. “Não acredito que no Japão também seja usado!”

“Acho que Yuri é um nome comum no mundo todo, apenas a pronúncia é um pouco diferente” riu Minako, lendo os dizeres atrás da foto. “Aqui diz que é uma foto dele aos cem dias…” Levando a imagem ao peito, ela tentou acalmar o coração agitado. “Eu queria tanto poder vê-lo pessoalmente...”

Dentro do envelope, além da carta, haviam mais outras quatro fotos, uma de Yuuri com completado um ano de vida, datando o final de novembro, Hiroko com os dois filhos, Mari segurando o irmãozinho e, por fim, toda a família Katsuki na frente do onsen coordenado por eles. Hasetsu fazia tanta falta…

“Poderá vê-los antes do que imagina, Minako” consolou Margosha, alisando os cabelos ainda duros de laquê.

“É, não fica assim, sua cabeçuda…” Do próprio modo, Yulia usou as melhores palavras de conforto que sabia, abraçando a colega de palco. Georgi não entendi a razão daquela nostalgia dolorosa, mas fez seu melhor para abraçá-la também.

“Certo, podem me soltar, eu ainda preciso tomar um banho e me livrar dessa crosta de glitter que colou até meus antepassados, com licença…” Se afastando, Okukawa pegou uma toalha limpa e seu grosso roupão de frio, indo para o banheiro. Margosha sabia que ela usava aquela desculpa para poder chorar no chuveiro, sem ninguém ver.

O tempo para Popovevna ler sua carta, foi o bastante para Yulia terminar a terceira fatia de poliot e retirar a mesa, mas não o suficiente para Georgi admirar sua coleção de cartões postais. Entre um cartão e outro, a voz de sua mãe sobressaiu-se em um grito mais uma vez, uma agitação tamanha que até mesmo seu filho ficou confuso, não reconhecendo-a na mulher saltitante a sua frente.

“Por Deus, Margosha, não nos mate do coração!’ Yulia, lavando os pratos, bronqueou.

“Ouvi um grito daqui de dentro, está tudo bem?” Colocando a cabeça para fora do banheiro, Minako também quis saber do que se tratava.

“Tudo bem, mamãe?”

Empolgada, parecendo guardar dentro de si uma alegria que a fazia tremer, Margosha anunciou como se o próprio Ded Moroz tivesse lhe dado a notícia, o melhor presente que o bom velhinho russo poderia ter dado;

“Minako, você não vai acreditar! Yasha virá passar o feriado conosco!”

Sem saber como reagir àquela notícia, Minako voltou a trancar-se no banheiro.

“E quem é Yasha?” Plisetskaya ainda não havia entendido a graça daquela notícia.

“O meu pai!”

Aquela sim era uma enorme novidade para Georgi. Se sua mãe tinha um pai, isso significava que ele tinha um avô. Por que ninguém nunca havia lhe contado?

“E precisa mandar uma carta para avisar isso? Por que simplesmente não ligou, estamos nas portas de 1993, o futuro já chegou!” Yulia estava tão indignada com quão antiquado era o homem, que nem se interessou em perguntar detalhes daquele familiar que ela também não conhecia.

“Por que eu não me lembro?”

A pergunta do pequeno acertou Margosha de tal forma que a costureira ficou sem reação por um momento. O desentendimento com Yasha anos antes, não o fez muito presente na vida dos dois e ela não culpava a confusão do filho por problemas que não deviam lhe dizer respeito, não com aquela idade.

Calmamente, Margosha se aproximou, fazendo questão de sua atenção à concentrar apenas no filho.

“Ele vive muito ocupado trabalhando em São Petersburgo e por isso não podia nos visitar. Mas é ele quem sempre escreve para a mamãe e te manda esses cartões postais que você tanto gosta, Gosha!” O garotinho continuava concentrado, entendendo cada explicação dada.

“Ele se parece com você?” Georgi gostaria de poder imaginar o estranho, para dar a ele pelo menos um rosto o qual pudesse se familiarizar.

“Não exatamente... Yasha e eu somos como a família que temos aqui, lembra o que eu disse? Minako não é minha irmã de sangue, mas é minha irmã…”

“… de coração” completou sorrindo. Georgi adorava como pessoas diferentes podiam formar uma família, apenas com o poder do amor; se esse homem podia amar sua mãe o suficiente para ser seu pai, ele imaginava ser uma boa pessoa. Se esse estranho deixava Margosha tão feliz, então ele ficaria feliz também e para expressar isso, abraçou a mãe com força, que retribuiu com muito mais vivacidade que as outras vezes.

“E eu, sou o quê?!” da cozinha, Yulia cobrou parte naquela família sem relação sanguínea e ficaria extremamente machucada se não tivesse espaço entre eles.

“Você é a caçula da família, Yulenka!” riu Margosha, ainda com o filho nos braços.

“É, tipo o mascote da família!” dentro do banheiro, Minako fez questão de provocar.

Pela data de partida informada na carta que havia sido mandada e sabendo que ele pegaria a passagem mais barata de São Petersburgo até Moscou, a chegada de Yasha estava para acontecer no dia seguinte a qualquer horário possível, fazendo Margosha planejar mentalmente todo o passo-a-passo a ser realizado para limpeza minuciosa do apartamento. Onde seu pai dormiria era um problema a ser resolvido depois.

Minako deixou o banheiro com uma nuvem de vapor atrás de si. Devidamente limpa e sem nenhum rastro purpurinado sobre a pele, ela tinha os cabelos enrolados na toalha branca e um olhar um tanto incômodo, que começava a incomodar Georgi de igual forma. Yulia era a única sortuda a não se preocupar com nada ou suspeitar de algo a ser incomodado.

“Se Yasha não disse onde dormirá, suponho que seja aqui?” Ela não esperou resposta àquela pergunta retórica, achando uma solução sozinha. “Usem meu colchão, passarei o feriado fora.”

“Por quê?” lamentou Georgi. Ele sabia que tinha algo de estranho naquilo.

“E onde você vai passar onze dias de folga?” Yulia queria saber, mais pelo benefício da fofoca que preocupação propriamente dita.

“Com Rurik, vou deixar ele me lamber todinha” rebateu, mostrando-lhe a língua.

“Que horror!” a adolescente corou, arrependida de ter perguntado. “Seus pervertidos imundos!”

Olhando para a carta, Margosha lia e relia a parte onde o pai dizia ir visitá-la para o ano novo, permanecendo até o Natal ortodoxo. Há tantos anos ela insistia para que ele fosse visitá-la, que mal podia acreditar estar acontecendo! Finalmente poderia apresentar Georgi a ele! E esperava, de todo coração, que Yasha também quisesse conhecê-lo.

“Só não esqueçam que passarão o Ano Novo lá em casa, hein, papai já comprou um milhão de beterrabas para as saladas!” avisou Yulia, exagerando na quantidade.

“Não se preocupe que homem nenhum no mundo me faria perder as saladas do seu pai!” garantiu Okukawa. Como se um homem pudesse falar mais alto que sua vontade de comer.

“Vai ter piroshki?!” Lembrar dos festejos a serem comemorados ao lado de Yulia e seu pai, fez Georgi também lembrar na especialidade de Nikolai.

“É claro que vai ter, o que é uma festa promovida por Nikolai Plisetsky sem seus famosos piroshki?”

Georgi estava tão feliz! Precisaria fazer desenhos em dobro para poder presentear Nikolai, também!

“Seu pai não se importará se eu levar um convidado extra, Yulia?”

“Claro que não, acho até bom que ele tenha alguém diferente para conversar, deve ser um saco só ter mulher por perto.” Georgi não achava que era um problema, pois ele próprio adorava todas as mulheres que conhecia.

“Meu pai vai adorar o seu, tenho certeza!” Margosha continuava empolgada, dobrando cobertores e antecipando a organização do apartamento.

“Será?” Minako duvidou. “Tenho certeza que Nikolai é mais agradável que Yasha…”

“Minako!”

Okukawa não disse mais nada sobre o homem e, depois de se arrumar, ajudou Margosha na arrumação da casa, com auxílio de Yulia e Georgi, que em sua pequeneza, dava seu melhor para organizar a caixinha repleta de relíquias. Não demorou muito para terem o apartamento de peça única todo arrumado e cheirando a produto de limpeza, de modo que puderam aproveitar o resto da tarde com conversas e risadas. Com a noite começando a aparecer, Minako apanhou a mala feita para os dias seguintes e despediu-se, levando Yulia consigo, se responsabilizando por levar a garota até sua casa antes de partir para a curta folga que aproveitaria com Rurik. Embora parcialmente vazio, Georgi conseguia sentir a alegria preencher a quitinete como o próprio ar que respirava e isso o empolgava bastante. Seriam as energias projetadas pela visita surpresa do pai de sua mãe?

Pela primeira vez, Georgi teve Margosha o acompanhando em seu sono curto. O garotinho se lembrava de ter dormido vendo ela de olhos bem abertos e acordado com a mãe já de olhos estalados. Ele nem imaginava que ela mal pudera dormir, tamanha ansiedade.

O café da manhã seria grénki, escolha feita por Popovevna pela praticidade em apenas cortar as baguetes amanhecidas e tostá-las na manteiga. Além de ser mais fácil e tomar menos tempo no preparo, Georgi sempre se divertia umedecendo as fatias em ovo e açúcar, sentindo-se muito prestativo e responsável pelo sucesso da refeição. Margosha se lembraria de guardar um generoso pedaço de pão, para o caso de Yasha chegar faminto da longa viagem.

Ela estava terminando de dourar um dos lados da primeira fatia doce, quando batidas fortes na porta ecoaram para dentro do apartamento. Com o cabo da frigideira em uma mão e a espátula metálica na outra, Margosha estava impedida de atender, sabendo, pela intensidade das batidas, se tratar de Minako. Ela teria muita pena de Rurik se o retorno da bailarina estava se dando por algo que ele havia feito ou dito — ou esquecido de dizer e fazer.

“Gosha, pode abrir a porta para mim?”

Se prontificando em atender, Georgi correu até a porta e virou a chave duas vezes antes de girar a maçaneta, sorrindo seu melhor para recepcionar Okukawa. Ela nunca ficava triste muito tempo quando ele fazia isso, o garoto até já tinha um jeito próprio de animar a amiga.

No entanto, a figura parada em frente a soleira, tampando toda a passagem dada a largura de seus ombros e a grossura do sobretudo cinza, era totalmente desconhecida a Georgi e parecia crescer como uma enorme sombra prestes a engoli-lo. A parte superior do rosto, coberta por um chapéu de mesmo tom neutro, não o ajudava a soar mais simpático.

“Gosha? Minako?” chamou Popovevna, desligando o fogo ao estranhar a ligeira demora na manifestação dos dois em gritos e risadas. “Por que esse silêncio?”

A face de traços tensos relaxou ao ouvir a voz de Margosha. Erguendo o queixo para cima e farejando o ar, o homem deu um sorriso contido, mas que Georgi sentiu ser uma grande manifestação de alegria, antes de falar alto o bastante para a costureira ouvi-lo da cozinha;

“Isso é grénki?”

O barulho de algo caindo pode ser ouvido no cômodo ao lado, um bater metálico deixado para trás quando Margosha abandonou a cozinha e correu até a porta, com os olhos castanhos estalados e os lábios entreabertos de pura incredulidade.

Em um breve momento de hesitação, Margosha trocou olhares com o visitante, deixando o filho ainda mais confuso quando ela correu aos prantos até a porta, em uma animação semelhante a de Georgi quando patinava, e abraçou aquele homem desconhecido com força, concentrando toda saudade naquele contato.

“Se eu soubesse que você morava tão longe da Praça Komsomolskaya, não teria arrastado a mala até aqui.” O que parecia ser uma reclamação, saiu em tom ameno, enquanto ele devolvia o abraço.

“Você veio andando desde lá?!” ela estava alarmada. “Por que não me ligou? Georgi e eu teríamos te buscado!”

Àquela altura, o menino já havia entendido que o homem de rosto bravo era o precioso amigo de sua mãe, o que a teria criado como filha e que por alguma razão ele nunca havia conhecido. Era meio difícil, mesmo assim, olhar para ele com menos desconfiança. Como sua mãe, tão alegre e ativa, tinha sido criada por uma pessoa tão carrancuda?

Notando o acanhamento do filho, Margosha desfez o abraço e o trouxe mais a frente, encorajando o primeiro contato das pessoas que ela mais amava no mundo.

“Pai, esse é o meu filho, Georgi.” Confirmando ter entendido a apresentação, ele acenou brevemente. “Gosha, essa é aquela pessoa que a mamãe te disse, meu pai de criação Yakov Feltsman.” Preocupado em decorar aquele nome, Georgi permaneceu em silêncio, tentando ver melhor o rosto parcialmente coberto pelo chapéu.

“É um prazer finalmente conhecê-lo, Georgi, sua mãe escreve muito sobre você.”

A informação o fez sorrir miúdo, repentinamente constrangido com a descoberta.

“Pai, tire esse chapéu, vai assustar meu menino!” pediu Margosha, empurrando Yakov para o interior do apartamento e tomando responsabilidade pela mala trazida por ele.

“Esconde minhas entradas, já estou ficando careca!” Ela riu com a reclamação.

“Que exagero!”

Desfazendo-se do casaco e do chapéu, Georgi podia ver que Feltsman não era exatamente assustador, apenas muito sério. Tinha a postura muito alinhada e o cenho e lateral dos lábios marcados pela idade acabavam deixando seu semblante pesado, mas diferente da expressão taciturna, Yakov parecia extremamente afável com Margosha, tanto que não lhe negou um segundo abraço, ainda mais forte e emocional.

“Está me constrangendo, Margosha.”

“Deixe-me matar a saudade, faz cinco anos…”

Georgi olhou para a própria mãozinha e contou nos dedos; aquela era sua idade também. Sua mãe sempre dizia que ele era muito jovem, mas pelo jeito, aquela quantidade de anos também poderia ser muita coisa, dependendo da situação.

“Sabia que Yasha já foi patinador, Gosha?”

Parte de seu estranhamento passou e Georgi se percebeu bem mais interessado por aquele homem, a ponto de imaginá-lo em roupas enfeitadas e lutz perfeitos com Bach ao fundo. Como seria vê-lo no gelo? Como ele pareceria interpretando um programa livre com aquela cara amarrada? Mas, ainda mais importante…

“Você conhece Oleg Nikiforov?!”

Georgi não sabia qual era a diferença entre a expressão enfezada e a neutra de Feltsman, portanto não percebeu que seu inocente questionamento incomodou o visitante. Tentando apaziguar o mal estar recém-começado, Margosha tomou a mão de Yakov e Georgi, os levando para a cozinha. A frigideira untada de manteiga ainda estava quente e ela poderia facilmente contornar aquele primeiro encontro com pão tostado polvilhado com açúcar.

“Vou preparar grénki para nós!” informou festiva. Vê-lo depois de tanto tempo a deixava mais empolgada que o filho ao patinar. “E depois você pode ir descansar, eu arrumarei a cama para você!”

“Não será necessário” relutou à sugestão, incomodado com a impressão de estar cansado. Sua boa disposição sempre fora um orgulho pessoal e permanecer ativo depois dos quarenta anos, era uma forma de afirmar não estar envelhecendo. “Estive pensando em dar uma volta em Moscou depois disso, patinar um pouco na Praça Vermelha.” Se faltava alguma coisa para o coração de Georgi ser conquistado, aquela sugestão terminou de arrematá-lo. “Aceita nos acompanhar?”

A felicidade do menino não cabia dentro dele e Gosha sentia-se incapaz de exteriorizar em palavras sua disposição para aquele passeio, aceitando com um aceno agitado e pulinhos empolgados. Margosha riu da reação do filho e pôde ver o canto dos lábios de Yakov erguerem levemente na lateral, em um sorriso contido que ela sabia muito bem o que significava.

“Gosha, por que não mostra para Yasha a sua coleção de cartões postais?”

Atencioso à sugestão, Georgi saiu correndo da cozinha e de dentro dela, Margosha e Yakov puderam ouvi-lo revirando sua caixa colorida em busca daquela coleção tão valiosa.

Sozinhos, perceberam não ter muito o que falar, acostumados com os anos em que suas palavras foram limitadas à escrita. A culpa e arrependimento que envolvia os dois também contribuía para a escassez de comunicação, embora não fosse o bastante para ser um empecilho para os abraços pedidos por Margosha anteriormente. Ainda faltava o mais importante, ainda faltava ter a aprovação de seu pai. Ele teria…?

“Desculpe a demora.” O pedido veio baixo, atravessando os pensamentos de Popovevna com constrangimento. Feltsman, levemente ruborizado e ainda mais carrancudo, não conseguia olhá-la diretamente, mantendo os olhos azuis presos na porta, esperando o regresso de Georgi.

Antes de respondê-lo, de declarar o quanto ainda amava seu pai, independente de quanto tempo havia passado ou dos dissabores que haviam vivido no passado, Georgi retornou com um único cartão exibido com alegria, tendo o modelo separado sendo mostrado com orgulho.

“Esse é meu preferido!” anunciou, balançando a imagem de um canal cortando uma cidade. “O que está escrito?” perguntou, apontando para as letras em vermelho, nomeando aquele ponto turístico.

“Leningrado. Você sabe o que isso significa?” Curioso e impressionado com o que não sabia, Georgi negou. “Essa é uma longa história… Por que não me mostra o resto da sua coleção, antes?”

Ver seu filho superando o constrangimento e se aproximar melhor de Yakov, aceitando suas sugestões, emocionou Margosha mais uma vez e ela suspeitava continuar sensível daquela forma todos os dias posteriores. Nada poderia recuperar os cinco anos passados, mas ela estava feliz por conseguir enxergar naquela cozinha, o que poderia ser o futuro.

Antes de seguir o menino para o cômodo vizinho, Yakov se aproximou dela e disse, em voz baixa como de costume, a melhor aprovação que ela poderia esperar:

“Ele é muito parecido com você.”

Mordendo os lábios, Margosha segurou a vontade de chorar, recebendo um beijo carinhoso no topo da cabeça antes de Feltsman deixá-la enfim. Sorrindo, ela voltou-se para a frigideira e reacendeu o fogo, ouvindo ao fundo as vozes de seu pai e filho envolvidas em uma conversa sobre São Petersburgo e nomes de catedrais. O baixo chiado do pão dourando na manteiga não poderia ser mais familiar.


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Notas finais do capítulo

"ISSO é um prólogo??" você pergunta. Sim, isso é um prólogo xD Mas vocês entenderão o motivo desse formato conforme a história avançar :3

Gostaria de trazer logo abaixo, algumas curiosidades mostradas nesse prólogo! :D Mas, eu juro, não estou fazendo isso por duvidar da inteligência do leitor, é que alguns detalhes têm significados e curiosidades que vão além da história, por isso eu deixei para colocar essas curiosidades aqui! Mas se quiserem dispensar essa parte, é só pular para o próximo capítulo que tá tudo certo haha O conhecimento ou não dessas informações não altera a compreensão da fic :3

~Curiosidades~

— Embora Minako seja citada como uma das solistas do Bolshoi, a União Soviética teve fim em 1991 (a história começa no fim de 1992) e, por ser um fim tão recente, dificilmente as pessoas confiariam em uma estrangeira, estabelecida - na história -, há mais de uma década. No entanto, a gente finge que ela sempre dançou na Rússia, para benefício do plot, combinado? xD

— Para quem não sabe, sobrenomes russos variam de acordo com o gênero feminino e masculino; é por isso que Yulia, OC filha de Nikolai, responde por Plisetskaya e Margosha, OC mãe de Georgi, atende por Popovevna ao invés de Popovich.

— Kasha, um dos cafés da manhã mais comuns na Rússia e citado nesse capítulo, é um mingau a base de grãos. Ele tem diversos preparos, dos mais elaborados aos mais simples, como o feito por Margosha, e pode também ser feito de arroz e grão de trigo, adocicado ou mais salgado.

— Pão é alimento quase obrigatório na mesa da população russa, um apego e respeito muito grande pelo alimento, por ter sido em tempos de escassez, de difícil consumo pela população mais pobre.

— Falando em pobreza, nem sempre o açúcar esteve à disposição de todas as pessoas, o que as levava a improvisar o cozimento de alguns alimentos com raízes que apresentassem sabor mais adocicado, como beterrabas e cenouras, por isso o bolo de cenoura é também popular na cozinha deles (depois do pão francês, você já pode dizer que come bolo russo :v).

— Borsch é o ensopado russo a base de beterraba, acho que todo mundo aqui lembra do Yurio tendo uma crise raivosa enquanto comia um xD

— Poliot é um bolo confeitado, que leva muito creme e suspiro e deve matar diabéticos só de dar uma olhada lol

— As breves descrições do metrô de Moscou não fazem jus à realidade. Quando tiverem um tempo, pesquisem pelas fotos, é um museu público e de uma arquitetura maravilhosa!! O mesmo vale para o interior do Bolshoi!

— Os apelidos de Georgi. Sim, por mais confuso que soe, são todas variações do nome dele, diminutivos carinhosos usados geralmente por pessoas próximas da família e amigos mais íntimos, como Gosha, Gora e... Yuri. Sim, Yuri é uma variação de Georgi e olha só, parece que não temos apenas dois Yuris on Ice... *emoji de olhinhos*

— Se fui muito exagerada colocando Yulia comentando sobre a dispensa massiva de bailarinas? Nem tanto... Os próprios professores do instituto disseram abertamente que os estudantes que não atendem às expectativas, mantendo-se abaixo da evolução esperada, são cortados. Nada assim tão alarmante, acontece em todo lugar, mas mesmo assim dói o coração, né? :')

— Relacionado ao salário dos bailarinos, principal motivo que mantém Yulia no Bolshoi, não sei dizer exatamente o piso salarial de hoje, mas na época Soviética (ainda recente nessa história), os bailarinos do teatro eram os mais bem pagos da Rússia.

— Clara (ou Marie/Masha, dependendo da adaptação), é a protagonista do balé O Quebra-Nozes, mas sua interpretação depende muito da montagem da peça. Às vezes, a personagem é uma jovem que aparenta estar entrando na fase adulta (uns dezoito, dezenove anos?) e o romance entre ela e o Príncipe Quebra-Nozes é bem mais explícito. Outras, a escolha de Clara pode ser uma criança mais novinha, de uns doze anos, onde cria-se uma maior distância entre ela e o Príncipe. Aqui, Yulia reclama de estar interpretando "uma criança", então sua personagem é mais delicada e brincalhona e isso a incomoda um pouco haha Imagino a interpretação de Yulia como a de Miko Fogarty, que interpretou uma versão muito meiga e bonitinha de Clara com a idade de 12 anos ;w; Outra bailarina que também me inspirou a descrição de Yulia como Clara é Anna Merkulova, na mesma personagem!

— O desejo de "merda" antes das apresentações é muito ligado ao teatro! Como antigamente os desejos de boa sorte eram carregados de intenções contrárias, as pessoas começaram a se cumprimentar com "merda", desejando de uma vez o que seus rivais já esperavam que acontecesse. Responder "que quebre a perna" é não somente ligado ao teatro, como faz parte do costume russo (se não me engano, ligado a superstições) de agradecer desejos de boa sorte dessa forma.

— Caramelos e doces em embalagens coloridas eram muito populares no período soviético, trazendo estampas de contos de fadas e animais locais, como o urso. Ainda hoje são comercializados.

— Os três sinais antes da apresentação são uma espécie de contagem regressiva para o espetáculo. Serve mais para atores e bailarinos, mas a plateia também se orienta por ele.

— Boinas, toucas e chapéus, por questões de protocolos de vestimenta, não são autorizados em muitos teatros do mundo, mesmo hoje em dia, interpretado como má educação. No Bolshoi, o protocolo de vestes é ainda mais rigoroso, exigindo paletós por parte dos homens e saias longas por parte das mulheres (por isso o figurino de Margosha :3).

— A forma como a história de O Quebra-Nozes é contada muda de acordo com o coreógrafo e o arranjo. Aqui eu dei minha versão, mas há várias outras, até a Barbie tem uma lol A participação de Clara ao longo da peça também é definido pelo coreógrafo, tal como a importância da Fada Açucarada (mas toas as montagens valem a pena, eu juro para vocês, é um dos balés mais lindos do mundo ;0;).

— A celesta, principal e mais marcante instrumento no solo da Fada Açucarada (Dance of the Sugarplum Fairy), foi contrabandeado para a Rússia a pedido do próprio Tchaikovsky. Por motivos de conservadorismo, o instrumento relativamente novo era proibido no país. Aff, eu amo demais esse compositor ;w;

— Árvore de Ano Novo. Ué, por que não de Natal? Porque durante o período soviético, manifestações religiosas foram proibidas, embora ainda houvessem celebrações às escondidas. Como o país segue o calendário ortodoxo, o Natal lá acontece dia 7 de janeiro, mas com entrega de presentes na virada do ano. A árvore deve ter permanecido por costume, eles apenas mudaram o nome, haha xD

— Minako ter recebido uma foto de Yuuri aos cem dias de idade é comum no Japão, se não me engano, há um tipo diferente de celebração do que mensal, mais comum aqui no ocidente.

— Ded Moroz: o Papai Noel russo. Sabe como é, na época do comunismo eles não podiam ter um bom velhinho capitalista xD

— A inconstância no horário de chegada dos trens se deve a longa distância entre Moscou e São Petersburgo e variações climáticas que podem acontecer no meio do caminho. A distância total é de oito horas, mas com paradas e interferências, os russos tendem a medir a distância de uma cidade a outra em dias.

— Grénki: é a rabanada russa. Sério. Olha quanta coisa da culinária internacional temos na nossa! xD

— A Praça Komsomolskaya é onde fica a maior e principal estação ferroviária de Moscou, com linhas para São Petersburgo.

E por hoje é só! Ufa! kspaksapoksopaksks Bastante coisa, né? Tem mais para comentar nos próximos, fico no aguardo da sua presença! ♥ Até mais e obrigada pela leitura!



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