Noite Vermelha escrita por MicheleBran


Capítulo 4
Capítulo 4




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/750282/chapter/4

4

Um Par de Olhos no Escuro

 

Sara acordou suando frio e prendeu os cabelos em um coque com os dedos trêmulos. Respirou fundo e tentou caminhar sem fazer barulho até a cozinha simples para pegar um copo de água.

Seu sono fora perturbado durante quase toda a madrugada por vozes sussurrantes e imagens confusas de olhos que a espreitavam das sombras, de garras que se precipitavam do meio da mata para agarrá-la e levá-la embora. Para onde? Não sabia.

E, sinceramente, não fazia nenhuma questão de saber.

Voltou para a sala um pouco mais calma após olhar pela janela e analisar o ambiente a seu redor. Tudo continuava tão calmo quanto deveria ser. Nenhum som ou visão estranha, nenhum visitante macabro. Aquela paz típica de residências mais isoladas estava espalhada por toda parte.

Sentou-se no sofá que lhe servia de cama e viu Thiago dormindo na poltrona onde deveria estar vigiando. Pensou em que tipo de bronca poderia dar, desistindo com um sorriso. Ele estava exausto, já ela perdera o sono com os pesadelos. Nada mais justo que ela ficasse de tocaia esperando o que quer que fosse.

Para passar o tempo, pegou o celular. Primeiro checou as mensagens em busca de alguma atualização do caso ou novo informe da Sociedade, porém ainda não havia nada. Depois se permitiu alguns breves minutos de lazer enquanto checava as redes sociais.

Pensou se poderia pegar os fones de ouvido para ouvir música ou ver algum vídeo, e resolveu que aquilo a distrairia e impediria de ouvir alguma ocorrência estranha.

Afinal, estava ali trabalhando, não passando férias.

Levantou-se mais uma vez para esticar as pernas e, para não relembrar as imagens que vira enquanto estava dormindo, tentou prestar atenção aos detalhes do interior da residência.

A maioria dos casos que precisavam resolver se davam mesmo no interior ou em localidades distantes de centros urbanos. Era de se esperar que muitas das criaturas fossem preferir locais menos habitados, onde ficariam longe de todo o aparato midiático que poderia revelá-los e, ainda por cima, próximos de pessoas que os mais preconceituosos chamariam de simplórias e supersticiosas.

Não à toa qualquer relato de locais mais distantes, especialmente de zonas rurais, era visto como mera crendice e recebia pouco crédito. Piorava se quem contava eram pessoas de mais idade: virava, automaticamente, sinal de que a pessoa estava senil.

Por outro lado, cidades menores, vilarejos e bairros afastados do centro traziam uma séria desvantagem para as atividades daqueles que planejavam se manter eternamente nas sombras: era praticamente impossível permanecer fora do radar por muito tempo. Em tais lugares, todos se conheciam e qualquer forasteiro com um comportamento muito diferente era visto com maus olhos. Além disso, as ações suspeitas eram notadas e se espalhavam rápido.

Sara nunca imaginou ficar tão feliz por existirem fofoqueiros em certos lugares.

Abafou uma risadinha e se aproximou novamente da janela do corredor. O vento frio soprou seus cabelos quando ela resolveu fechar o trinco. Passou direto para usar o pequeno banheiro, tomando o cuidado de dar duas batidinhas da porta para não precisar dar de cara com ninguém da família e gerar uma situação constrangedora.

Depois, voltou para seu posto de observação e bocejou longamente enquanto se recostava ao sofá. Fechou os olhos e respirou fundo. Seria um péssimo momento para dormir, então resolveu voltar a se concentrar em algo para se manter desperta. Pegou o celular mais uma vez, mas antes que pudesse escolher qual atividade levaria adiante pelos próximos minutos, um som estridente cortou a noite.

Um grito.

E não vinha de dentro da residência.

Sara levou apenas um segundo para reagir perante o susto e Thiago também se levantou de um salto. Não foram os únicos. A casa inteira pareceu despertar como em um passe de mágica.

— O que é que foi isso? — perguntou dona Anália segurando um xale ao redor dos ombros e impedindo as duas crianças de irem muito adiante no corredor.

Márcio, por sua vez, avançou e espiou pela janela.

— Alguém se machucou. Certeza.

— Vamos lá dar uma olhada. — Thiago lançou um olhar para a irmã.

Ela correu na bolsa e pegou uma das armas.

— Vamos, pega isso. — Esticou uma das pistolas para ele, então se virou para o casal. — Por favor, fiquem aqui e se mantenham seguros. Fiquem de olho nas crianças também.

— De jeito nenhum! — Márcio contestou. — Vou junto.

E como se não desse espaço para qualquer tentativa de convencimento por parte dos dois, abriu a porta e lançou um olhar examinador para fora antes de avançar para a varanda.

Como se assistisse a um filme de terror, Sara esperou que alguma mão monstruosa o puxasse para as trevas ou garras surgissem de lugar nenhum para retalhá-lo. Apressou o passo na tentativa de evitar que tal coisa acontecesse, porém apenas o vento a recepcionou. Os sons típicos da noite eram os únicos presentes, como se o que ouviram pouco antes não tivesse acontecido.

Thiago veio por último e fechou a porta, instigando-os a prosseguir. Virou-se para o dono da casa:

— O senhor, que conhece melhor o lugar, acha que pode nos indicar onde foi?

— Talvez pra lá. — O mais velho apontou. — Vamos ver.

O trio seguiu unido e prestando atenção a cada parte em que conseguiam colocar os olhos. A essa altura, a adrenalina de se depararem com um monstro ansioso por sangue e morte deixou Sara completamente desperta. Os olhos pareciam capazes de ver tudo ao mesmo tempo e seu coração batia rápido, ribombando em seus ouvidos.

Ao alcançarem o ponto indicado por Márcio, encontraram-se em uma clareira coberta de grama, troncos caídos e parcialmente iluminada pela luz da lua e das estrelas. O silêncio dominava tudo e trazia uma sensação de tranquilidade.

Talvez por isso a visão do corpo caído em meio ao verde tenha sido tão estranha, mais do que o normal. Thiago correu para verificar a mais nova vítima, que estava bem diferente dos outros casos. Os primeiros corpos pareciam destroçados e, exceto pelos ataques não completados, todos haviam sido mortos.

Sara percebeu, mesmo à distância, que daquela vez o monstro deixara alguém vivo. Provavelmente porque ela gritou e chamou a atenção, o que queria dizer que havia consciência naquela criatura misteriosa.

Teriantropo, provavelmente. Restava saber de que tipo.

— Alô? Sou eu. Por favor, mandem uma equipe médica — pedia Thiago ao telefone. — Temos uma vítima. Pode ser grave. — Pausa. — Certo. Até logo.

E desligou.

Márcio tentava acordar a mulher — que ele disse ser Ana Maria, filha de um dos vizinhos que morava mais abaixo das colinas —, e Sara avançou tentando impedi-lo de piorar o estado de saúde dela. O quadro era delicado e inspirava cuidados.

Quando chegou perto, Sara também reparou que a mulher não tinha maiores ferimentos visíveis, embora a parte da frente de seu vestido estivesse suja de sangue. Por sorte, Thiago andava sempre preparado e tirou do bolso de trás do jeans uma atadura, que usou para tentar diminuir o sangramento.

Sara se acomodou ao lado dele para ajudá-lo na tarefa e, ao fazer isso, ela finalmente percebeu de onde vinha, então descobriu exatamente com o quê estavam lidando. E com quem.

Dois pequenos buracos na lateral do pescoço.

Talvez não tivessem conseguido chegar a tempo no ritual dias antes e a bruxa tivesse conseguido seu intento. Então ela pôs os olhos na faixa em seu braço, suja por uma pequena mancha carmesim, e se deu conta.

Talvez seu sangue tivesse ressuscitado a ameaça.

Sara ergueu os olhos, ainda atônita com a descoberta, e precisou de todo o seu esforço para não gritar e permanecer impassível quando notou, mais ao longe, no limite das árvores, dois olhos vermelhos a espreitá-la sorrateiramente.

Ficaram ali, apenas a encarando, por não mais que um segundo ou dois, então desapareceram.

Mas se esqueceram de levar junto com eles o pânico que começava a dominá-la.

Precisava fazer alguma coisa, qualquer coisa, antes que fosse tarde. E o que mais a angustiava não era o fato de não saber o que fazer, antes fosse. Era porque ela sabia exatamente o que devia ser feito.

Apenas não tinha coragem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Noite Vermelha" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.