Hotel escrita por G S Oliver


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/749865/chapter/1

Quarto 407

Duas horas diante da máquina de escrever, frustrado o suficiente para continuar, voltou a cama ainda desarrumada desde a manhã. O resto do café ainda estava na bandeja ao lado do criado-mudo, havia mordido um pedaço do sanduíche de salame e deixado o resto para mais tarde, infelizmente as formigas tiveram a mesma ideia. Ele precisava continuar acordado até o amanhecer, prometera enviar os rascunhos para a editora até o final de semana, mas ainda possuía um enorme bolo de folhas brancas.

 Estava só, mais uma brindando com a solidão. Acendeu um cigarro e tragou observando o desenho interessante formado pela umidade que vinha do banheiro. Recostado na cabeceira da cama a mancha úmida parecia um coelho, ajeitou a coluna e apertou um pouco mais os olhos, havia quebrado a porcaria de seus óculos no início da viagem. Realmente era um coelho, dava para ver o rabinho fofo perto de uma das lâmpadas na parede.

O chão perto da escrivaninha apertada estava forrado de folhas amassadas, nada parecia ser bom o suficiente. Todas as frases pareciam já ter sido escritas por outros, de uma forma melhor. Há alguns anos diziam que ele tinha um futuro promissor, um homem perfeito, casado, com filhos, dono de uma fortuna invejável e cobiçado por todas as mulheres. Ninguém teria previsto que ele acabaria num quarto de hotel, usando uma cueca rasgada com elástico desfiado, cabelos desgrenhados e dentes sem escovar desde a hora do café.

Eu me perdi, foi em alguma curva por aí, certamente. E eu nem sei dirigir, provavelmente peguei a merda do ônibus errado. Sorriu encarando seu reflexo no espelho. 25 anos, aparelho ortodôntico, alto, não tão magro. Não, ele certamente não seria cobiçado por todas as mulheres, sua mãe era sonhadora demais para uma dona de casa de 50 e alguns anos.

Encarar seu reflexo era um ato de bravura que desenvolvera nos últimos anos, entrevistas de emprego exigem isso. Lembrou da sua primeira entrevista: camisa branca, gravata cinza, terno bege e uns óculos de armação dourada. A promessa era escrever dois romances água-com-açúcar em nome de uma autora famosa que estava ocupada demais sendo famosa para escrever seus próprios livros, foi um verdadeiro sucesso, primeiro lugar no New York Times. Sua mãe ficara tão orgulhosa, assou dois frangos naquela noite e repetiu o futuro brilhante que ele teria.

Voltou a sentar em frente a máquina de escrever e passou o dedo por entre as letras miúdas. Apertou algumas num ato quase automático. Amor. Ele não precisava começar assim, mas talvez devesse encarar seus medos, voltar na noite em que a esperou do lado de fora e ela apareceu. Questionava até hoje se havia dado o melhor de si, se demonstrara o suficiente.

Eu quis fugir, dizer que não poderia e não deveria suportar aquilo, mais uma vez fraco demais. Já estava morto a àquela altura, talvez de frio, talvez de amor. Eu fui fraco, mas poderia ter sido pior, esperei para chorar em casa, mereço algum mérito por isso. Eu odeio Hollywood, agora somos obrigados a amar como nos filmes e, aparentemente, eu não era o par romântico ideal.

Tragou mais uma vez antes de voltar a escrever, aos poucos as palavras voltaram a parecer repetidas, as falas das personagens endurecidas, os ambientes programados, uma trama barata. A máquina de escrever foi ao chão fazendo um estrondo absurdo, ele levou a mão a cabeça indignado com seu próprio impulso. Uma voz feminina soou pela parede ao lado:

—Ei, seu filho da puta, tem gente dormindo aqui!

Ele balbuciou um pedido de desculpas, mas a vizinha de quarto já deveria ter voltado a dormir. Observou a máquina no chão e decidiu sentar ao lado dela. Passou alguns minutos naquela posição até resolver deitar, colocando as costas no piso laminado frio. Sua mãe o mataria sem o visse deitado de cuecas no chão.

Morre o famoso escritor Estácio Porfirio, vítima de costas peladas no piso gelado.

Estácio estava cansado, atordoado demais para emprestar alguma personalidade para qualquer personagem. Ele prometera mais cedo que não desistiria, que entregaria aquele trabalho e usaria o dinheiro para recomeçar numa nova cidade, porém o novo já não era o bastante. Ele não se sentia capaz de recomeçar sua vida, nem ao menos de viver por mais alguns dias. A essa altura lágrimas pesadas já desciam pelas suas bochechas e se perdiam na barba. Estácio queria morrer. Sentiu um batimento descompassado em seu peito e fechou os olhos, quase numa prece. Estácio queria morrer?

Levantou mais uma vez e ajeitou a máquina, dando alguma dignidade para sua companheira de trabalho. Pensou em coloca-la novamente na escrivaninha, mas a ideia de fazer mais algum barulho o fez desistir. Amanhã eu te ajudo, minha cara.

Caminhou até o banheiro tentando afastar-se daquilo, ele sabia que querer e poder eram coisas completamente diferentes. Abaixou a cueca preta e entrou no box girando o registro do chuveiro elétrico, a água caiu gelada fazendo-o rir da situação. Era um misto de alegria e desespero, sentir a água gelada despertou lembranças de sua adolescência quando recorria aos banhos frios na casa de praia, não era fácil dividir quarto com as amigas da sua irmã mais velha. Bons tempos.

Eu não faço ideia há quantos anos...Certo, exagero. Há quantas semanas eu não tenho uma única ereção. Sei que o cigarro é ruim para essas coisas, mas não deveria estar assim. Morto da cintura para baixo, estou considerando colocar uma placa de “fechado para balanço”.

Ele se viu obrigado a desligar o chuveiro e voltar para cama. Deitou ainda com o corpo um pouco molhado entre os lençóis respirando vagarosamente. A noite em que ela apareceu voltou a perturbar sua mente.  

                                                                  ............

Cabelos soltos, saia jeans e camisa amarela. Ela segurou no portão aflita olhando para o outro lado da rua. Na mão a chave de um carro e um copo vazio.

— Alguém viu o Bruno com as bebidas?

Ele tentou explicar para ela que o rapaz havia prometido buscar outras meninas no bairro ao lado. A jovem fez um sinal com a cabeça e voltou para dentro da casa, deixando-o sozinho na pequena varando. Lá dentro a música havia parado.

— Ah não, Marcão. Eu já não fiz festa em casa para evitar esse tipo de coisa – Ela sorria desconcertada enquanto levavam um bolo em sua direção. As luzes das velas iluminavam seus cachos castanhos. Estácio sorriu parado na porta enquanto puxavam os “parabéns” em uníssono. Foi a última vez que a viu sorrindo daquele jeito.

                                                                ............

Deitado na cama, as formigas ainda trabalhavam tentando carregar farelos do sanduíche para o pequeno buraco entre a parede e a porta. Pelas cortinas beges o céu parecia clarear aos poucos anunciando o amanhecer.

Sobrevivi, mais uma noite, mais uma página.

Encarou novamente o rabinho fofo do coelho, agora a mancha parecia um anão sorrindo. Estácio sorriu de volta antes de fechar os olhos e adormecer.

 

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Esse texto não foi revisado e está sujeito a correções.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Hotel" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.