Maré Alta escrita por Mercya


Capítulo 3
Capítulo dois


Notas iniciais do capítulo

Demorou bastante, mas a história está de volta! Desculpas pelo longo tempo sem atualizar, mas aconteceram algumas coisas (notebook inutilizável, começo das aulas na faculdade, etc), mas ela será atualizada mais frequentemente a partir de agora. Sem mais delongas, espero que gostem do capítulo.



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— Você foi acusado de sacrilégio, heresia e corrupção espiritual de si próprio. Como você responde à essas acusações, monge?

Siddartha engoliu em seco. Sua garganta doía, inchada, pela inimaginável pouca quantidade de água que lhe havia sido permitido beber durante as últimas semanas. Diversas partes de seu corpo estavam machucadas, arranhadas nos blocos de concreto áspero dos calabouços, e suas roupas não apenas fediam como também grudavam em sua pele maltratada. Ele respirava com dificuldade. Sentia o coração batendo nas orelhas, mas sua audição estava toda confusa, como se estivesse submerso na água e tudo o que ouvisse fosse apenas sussurros por cima de um constante zumbido.

Ele tentou erguer a cabeça, mas esta foi empurrada ferozmente de volta para baixo por uma mão firme. O impacto súbito deixou sua visão escura, e ele sentiu fosse lá o que estivesse em seu estômago vazio voltando. Manteve-se firme.

À fim de torna-lo apresentável para O Tribunal, os carcereiros o haviam coberto com um manto vermelho e dourado, que lhe cobria também a cabeça. Siddartha estava ajoelhado no centro do tribunal.

No lugar que pertencia ao réu.

Não enxergava nada, mas não precisava. Os anos treinando sob a tutela dos monges o haviam tornado capaz de sentir a força espiritual de qualquer pessoa. E os homens presentes no tribunal tinham a presença espiritual tão avassaladora que Siddartha a sentia comprimindo seus ossos, espremendo-o contra o chão. Suas vozes, altivas e límpidas, pareciam acertá-lo como um chicote cada vez que ressoavam.

— Siddartha.

De algum modo, o próprio nome dele soava como um insulto na voz do Supremo Conselheiro. Ele manteve em silêncio.

— Siddartha. O que você tem a dizer?

Silêncio.

O Supremo Conselheiro suspirou pesadamente. Siddartha o ouviu gesticulando. Então:

— Tragam as ferramentas.

Com um puxão, sua cabeça foi levada para trás. Por uma única fração de segundo, Siddartha viu os olhos distantes e inchados de noites chorosas de seu Mestre. Assim que os olhos do pupilo o encontram, no entanto, ele desviou o olhar. Siddartha fechou as pálpebras. Uma faixa de tecido escuro foi colocada por sobre seus olhos e amarrada com firmeza atrás de sua cabeça.

A verdade não pode ser vista com olhos.

Ele foi arrancado de suas roupas, com exceção dos calções. O ar sempre frio e úmido do topo das montanhas castigou seu tronco desnudo. Ele suprimiu qualquer reclamação. Ouviu algo metálico sendo arrastado pelo chão com dificuldade. A temperatura começou então a subitamente aumentar. Algo próximo ao seu corpo ardia em brasas.

Siddartha puxou o ar para os pulmões com uma inspiração trêmula. Em realidade, cada nervo de seu corpo gritava de medo, mas ele não demonstrou nada.

— Siddartha — veio uma última súplica. — Siddartha, ao menos me responda: você se arrepende?

 

 

O jovem monge voltou a si de repente. Estava em seu ponto comum de meditação, equilibrado sobre uma perna dobrada encima de uma pedra escorregadia. Atrás de si, a cachoeira tilintava. A água escorria rapidamente, quase de forma violenta, pela fenda da montanha, e então pela parede da mesma. Não importava o quanto Siddartha olhasse, não seria capaz de ver o final do corredor de água, pois este estendia-se até a parte plana da ilha. E só desaguaria No Grande Círculo, bem como quase todos os demais riachos das ilhas da Circunferência.

Era de madrugada, ele concluiu ao olhar para as estrelas. Esticou os membros, espreguiçando-se. Usava seu manto mais comum, de um vermelho sutil, gentil aos olhos, que deixava parte do peitoral e as canelas expostas.

Quase imediatamente, Larry, o pequeno macaquinho de pelagem marrom, pulou para o seu largo ombro. Ele acariciou o queixo do animalzinho, que mastigava entusiasticamente uma noz.

— Isso foi rápido — veio o comentário.

Siddartha olhou para o lado, e vislumbrou o Mestre, sentado de pernas cruzadas em uma rocha coberta de musgo. Ele tinha os olhos fechados, mas estava claramente consciente. Tinha a pele escura, bem como a esmagadora maioria da população de Draconlay e os cabelos de um cinza azulado. Suas tatuagens cobriam-lhe quase por inteiro, com exceção da face — um sinal não apenas de sua avançada idade, mas também de seu admirável conhecimento e jornada como monge.

— Qual é, velhote — Siddartha riu. — Foram ao menos dois dias e meio de meditação!

— Como eu disse — O Mestre abriu um dos olhos, de íris azulada. — Rápido. Não é motivo algum para orgulho, criança.

Siddartha rolou os olhos, mas não estava realmente aborrecido. Desde que deixara sua casa, aos catorze anos, havia sido o velho monge quem tomara conta dele. Foram precisas uma quantidade imensurável de súplicas (e uma ajuda mais do que bem-vinda da própria Matriarca de Ignur) para convencer sua família a deixa-lo tornar-se um monge e não um sacerdote, como era a tradição.

A única lembrança que ele tinha da família agora era Larry, um presente de dois de seus primos antes de partir.

Não que ser um monge fosse inferior a ser um sacerdote. Era apenas que sua família era muito específica.  

De toda forma, Siddartha amava ser um monge. Ele não conseguia imaginar a si mesmo fazendo mais absolutamente nada no mundo. E até mesmo as carrancas rabugentas de seu Mestre (que ele já considerava uma figura paterna) não o tiravam aquele gosto.

— Vá para os seus umbrais, criança — O Mestre instruiu. — E não desvie de seu caminho.

Siddartha assentiu. Sabia que o Mestre tinha uma preferência por meditar sozinho, e abaixou-se para juntar seu bastão de madeira do chão. O objeto tinha mais de dois metros de altura, mas não parecia tão grande quando segurado por ele, tendo em vista que o próprio Siddartha era apenas dez centímetros mais baixo que ele. Saltou de pedra em pedra, fazendo o caminho de volta para o cume da montanha, onde ficava o templo.

A maioria dos pupilos já estavam há muito adormecidos — não tinham permissão para permanecerem acordados. Mas Siddartha era diferente. Os monges o chamavam de Ovelha. Uma alusão ao principal deus cultuado por eles. Significava que ele era o melhor jovem pupilo que eles haviam treinado em eras. Siddartha completara há pouco tempo seus vinte anos, e já recebera as tatuagens que lhe cobriam por completo as costas largas, enquanto a maioria dos demais rapazes naquela idade não haviam passado das tatuagens nos nós dos dedos.

Ele perguntava-se como seu primo Sheru estava indo. Ele também havia insistido com unhas e dentes para tornar-se um monge, e o fato de que havia conseguido era impressionante, considerando o quanto mais rígido eram os pais dele. Sheru havia, infelizmente, sido mandado para outro templo, por algum motivo que Siddartha não conhecia, e os dois só se encontravam ocasionalmente em festivais, quando ambos possuíam permissão para descer das montanhas.

Os templos possuíam uma arquitetura intricada, porém simplicista: a estrutura era firme, afim de suportar as tempestades e ventanias que sempre as castigavam ali no topo das montanhas. Apesar dos pilares firmes e blocos concretos, o interior era de uma delicadeza singular: ilustrações feitas em papiros, candelabros esculpidos em ouro e retratos enquadrados em carvalho, dentre outros objetos, decoravam as paredes. Tudo feito do melhor material que poderia ser encontrado em qualquer dos três continentes.

Siddartha, em realidade, conhecia de primeira mão o que era viver no luxo provido por fazer parte da nação mais rica do mundo.

De repente, enquanto caminhava, Larry pulou de seu ombro e saiu correndo pelo corredor. O macaco grunhia e esperneava, e Siddartha desesperava-se em tentar acalmá-lo, temeroso em acordar algum dos monges mais ranzinzas. O animalzinho, no entanto, permaneceu correndo, e Siddartha viu-se incapaz de fazer algo além de segui-lo. Larry por vezes comportava-se daquele modo, e Siddartha tinha dificuldades em acompanha-lo.

Quando passou por uma bifurcação em um corredor, no entanto, viu algo acendendo-se à sua esquerda. Parou, intrigado, e assobiou baixinho:

Psst! Larry! 

O macaco retornou, olhinhos castanhos brilhando, e escalou as vestes de Siddartha até alcançar seus ombros. O monge esgueirou-se no corredor escuro, e viu que, pela fresta de uma porta quase completamente selada, escapava uma luz fosca.

Logo depois, enquanto ele ainda observava, a porta foi aberta e alguém saiu. A luz foi apagada rápido demais para que Siddartha pudesse ver de quem se tratava, mas ele ficou escutando, enquanto os passos se afastavam para o lado oposto do corredor.

Tudo ficou em silêncio por um momento. Siddartha então olhou para Larry, que piscou para ele, confuso:

— Vamos lá, amigo — disse, sorrindo.

 

 

O silêncio foi quebrado quando o ferro em brasas encontrou a pele de sua costa. Siddartha rugiu como um animal machucado — e, à bem da verdade, é possível que naquele estado não se diferenciasse muito de um.

Tentou mover-se, mas as correntes em torno de seus pulsos e tornozelos o mantiveram firme onde estava. Gritou mais uma vez, e outra, cada vez sentindo a consciência escapando mais. Seus ouvidos zuniam, ele já não conseguia respirar...

Em um momento de lucidez, notou que não estava sendo torturado.

Estava sendo desonrado. Estavam cobrindo suas tatuagens. Tudo o que Siddartha era... —

Outro ferro o queimou, e ele perdeu a linha de raciocínio.

— Já chega! — O Sumo Conselheiro ordenou. — Retirem a venda dele!

Ele foi obedecido. Sua venda foi retirada, já encharcada de suor, mas Siddartha não conseguia ver nada com clareza. Já estava um pé na inconsciência quando a mesma voz perguntou, mais uma vez:

— Você se arrepende?

Memórias da noite fatídica, dos pergaminhos e tudo o que ele havia descoberto inundaram sua mente como uma avalanche. A dor inumana quase não o deixava pensar, mas Siddartha ergueu os olhos e respondeu, firme:

— Nem por um segundo.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Comentários são sempre apreciados!



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