A moça e o dragão escrita por calivillas
Ao entrar ao abrir a porta do seu apartamento, Virgínia encontrou a solidão e o silêncio, fingiu que já estava acostumada com isso, que não se importava, porém, muitas vezes, ponderava que deveria ter desistido e voltado para sua cidade, entretanto, como poderia viver lá outra vez, como se nada tivesse mudado? Então, acendeu todas as luzes e ligou a TV.
No dia seguinte, Virgínia ainda estava receosa de entrar no elevador, apesar do céu estar claro e límpido, sem previsão de chuvas, no entanto, não podia perder tempo descendo sete andares pelas escadas. No quinto andar, o elevador parou a porta abriu e ele entrou, sorriu, com uma certa intimidade, que a assustou.
— E aí, tudo bem, Virginia?
— Tudo.
— Ontem à noite foi dureza.
— Se foi, para nunca mais.
O elevador parou e a porta se abriu no térreo.
— Até mais, Virgínia.
— Até mais, Jonas.
— Ontem, eu fiquei presa um tempão no engarrafamento, por causa desse maldito temporal, ficou tudo alagado, ninguém passava. E você chegou bem em casa, Virgínia? – Sandra, sua colega, perguntou para passar o tempo dentro do elevador da empresa, quando chegavam ao trabalho.
— Eu fiquei presa no elevador com um vizinho.
— Pelo menos, ele era interessante? – A outra mulher brincou.
— Era um garoto!
— E daí? Era ou não era?
— Ele é garoto um tanto esquisito, cabelos raspados e cheio de tatuagens.
— Ah, que pena! Seria uma boa oportunidade para você conhecer alguém – Virgínia a questionou com o olhar. – Já ouvi um monte de histórias de amor, que começaram em um elevador.
— Sem chance, Sandra – Virginia bufou, já cansada daquela conversa.
Os dias se passaram sempre iguais, em uma confortável e monótona rotina, no entanto, ela achava que era melhor desse modo, sem sobressaltos ou percalços, nada que mudasse o rumo da sua vida. E após enfrentar as ruas cheias e quentes, sentia uma certa felicidade, uma espécie de alívio, ao transpassar a portaria, pois, somente poucos passos a separavam do seu lar, seu abrigo confortável e seu mundo solitário.
Muitas vezes, já dentro do elevador, sem entender o porquê, sentia um pequeno desejo, uma tênue esperança, que a porta se abrisse outra vez, é o estranho rapaz entrasse, no entanto, há muito, isso não acontecia, assim, tinha que prosseguir a sua breve jornada sozinha.
Sempre na volta do trabalho, em atos contínuos, ela abria a porta do seu apartamento, acendia as luzes, ligava a TV, pegava um pequeno regador de plástico e aguava as poucas plantas na sala, em seguida retornava à cozinha, procurou na geladeira, o que faria para o jantar, contudo, naquela noite, estranhou quando a campainha tocou. Qual seria o problema? Algum vizinho doente ou um vazamento no andar de baixo? Olhou pelo visor e se surpreendeu ao ver Jonas do outro lado da porta. O que será que ele queria? Desconfiada, ela abriu a porta.
— Oi, Jonas
— Oi, Virgínia. É que eu esqueci minhas chaves e meus colegas ainda não chegaram em casa, posso esperar aqui?
- Claro – disse, mesmo indecisa. – Como sabia onde eu morava?
— Você falou para o porteiro, no elevador, quando ficamos presos.
— É verdade! Entre, vou preparar algo para o jantar.
— Não se preocupe comigo, estou numa boa.
— Você tem certeza? Não custa nada, vou fazer uma omelete de queijo.
— Tudo bem, se não se importa, eu aceito. Quer ajuda?
— Não, estou acostumada, moro há algum tempo, sozinha.
Virgínia foi para a cozinha e, mesmo sem ser convidado, Jonas a seguiu parando na porta.
— Seu apartamento é legal, limpo e bem organizado. O que eu moro é uma bagunça.
— Imagino. Eu gosto assim, fica mais fácil se achar.
— Eu nunca morei sozinho, na minha própria casa, deve ser bom.
— Um pouco – Ela deu de ombros, enquanto picava cebolas, salva e cebolinha, quebrava os ovos e os batia com movimentos rápidos e punho firme. – Mas, não tive opção.
— Muitas vezes, eu quis ser filho único, ter o meu espaço. Tenho uma irmã mais nova e um irmão mais velho que me enchiam o saco. Uma vez, morei em quarto em uma pensão, mas era tão pequeno e dividíamos o banheiro, então não dá para dizer que morava sozinho.
Os ovos ficaram fofos e ela despejou na frigideira com óleo fumegante, que chiou, levantando fumaça, juntou a cebola e os temperos picados, salpicou sal e pimenta sobre eles.
— Às vezes, eu queria ter irmãos, uma família de verdade. Eu brincava muito sozinha, só tinha os meus primos, que via de vez em quando, e as outras crianças da vizinhança, sabe como é? Cidade do interior.
Com habilidade era virou a omelete que tomava uma cor dourada, colocou fatias de queijo e fechou deixando-as derreter. O cheiro bom invadiu a cozinha. Ela partiu em dois, colocando um pedaço em cada prato.
— Jonas, pega a salada na geladeira e coloque em cima da mesa. Há muito tempo, não cozinho para ninguém, espero que esteja bom.
— Há muito tempo, ninguém cozinha assim para mim.
Sentaram-se à mesa.
— De onde, você vem, Jonas?
— De uma cidade do interior lá do Sul, chamada São Basílio.
— Nunca ouvi falar.
— Ninguém ouviu, às vezes, eu acho que não existe, é só uma invenção da minha cabeça. É um lugar rural, só tem boi e mato.
— Você não parece alguém que veio de uma cidade desconhecida do interior.
— Ah, isso? – Passou a mão nos cabelos raspados. – Morei na Europa por algum tempo, adotei esse visual quando estava na Alemanha.
— Eu nunca saí do país.
— Por quê?
— Não sei, há tempos, eu quis muito, fiz planos, depois, passou a vontade, talvez, falta de oportunidade, medo de ir sozinha – Ela deu de ombros.
— Eu fui sozinho.
— Muito corajoso. Quantos anos você tinha quando viajou?
— Dezoito, recebi um pouco dinheiro da minha avó, o suficiente para me levar para lá, gastei tudo na viagem, me virei como pude, morei em albergues e em pensões, cheguei até dormir na rua, arranjava trabalhos temporários para esticar o dinheiro, lavava pratos, varria chão, passeava com cachorros, o que aparecesse, fiquei até onde deu, viajando por toda a Europa.
— E por quanto tempo ficou por lá? – Virgínia estava, realmente, impressionada com tamanha coragem.
— Mais de um ano.
— Como ilegal! Não tinha medo de ser preso?
— Só tinha medo de ser pego, deportado e não poder voltar mais.
— É bom quando o futuro é algo distante e cheio de possibilidades, e podemos ser irresponsáveis e aventureiros.
— Você tem medo do futuro?
— Eu tenho medo de não ter mais futuro. Então, estava bom?
— Muito bom. Você cozinha bem.
— Obrigada, mas foi só uma simples omelete – disse, levantando-se e retirando os pratos vazios.
— Pode deixar que eu lavo a louça, como pagamento pela refeição.
— Não precisa.
— Não se preocupe, lavei muitos pratos na minha vida.
Jonas colocou os pratos dentro da pia e começou a lavar com destreza, sabendo o que estava fazendo. Enquanto, Virgínia o observava, sentada à mesa, admirando dragão que lhe fugia da manga.
— Como é viver fora, assim, sozinho, em um lugar estranho?
— Eu não sei como explicar, porque ao mesmo tempo pode ser muito bom e apavorante. Saber que ninguém o conhece naquele lugar, que poderia desaparecer e demoraria algum tempo até alguém sentir sua falta é meio assustador. Mas, por outro lado, se pode fazer o que quiser, sem que fiquem de olho, julgue você ou ache você esquisito. Coisas que só quem cresceu em cidade pequena sabe como é.
— Eu sei como é. A vizinha do lado, lá na minha cidade, deve ter sido da santa inquisição em outra encarnação.
Os dois riram.
— Você é engraçada, Virgínia.
— Já me chamaram de muitas coisas, menos de engraçada.
— Virgínia. Virgínia... Ninguém a chama de Vivi ou Vi.
— Não. Meu pai escolheu esse nome por causa do estado americano da Virgínia, mas nunca me explicou o porquê, não teve tempo, ele morreu muito jovem, eu ainda era uma criança.
— Mas, esse nome combina com você, acho que Vivi não mostraria, exatamente, quem você é.
Virginia o fitou, intrigada, o que será que ele quis dizer com isso?
Jonas estava quase terminando sua tarefa, quando o telefone deu sinal de mensagem recebida, ele olhou para a tela.
— Os meus colegas de apartamento já voltaram.
— Pode ir, eu termino aqui.
— Obrigado, Virginia.
— Por nada, Jonas.
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