Castaway escrita por Mileh Diamond


Capítulo 2
Capítulo II


Notas iniciais do capítulo

#SaveBeka2018
Eu machuquei essa criança demais nesse cap, tô com dó.
Vamo nessa, gangue do angst!!



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As semanas que se seguiram foram com toda a certeza as mais tumultuadas da vida de Yuri.

Seus dias estavam ocupados com tanta coisa que às vezes ele tinha que dar uma pausa apenas para não pensar em nada. Foram mais reuniões com o advogado, algumas com a Assistência Social e uma chamada de vídeo com os Katsuki.


A família de Yuuri não parecia muito feliz com a ideia de deixar Alexei com ele, mas eles definitivamente eram mais contidos que Yakov e Lilia.


— Yuri-kun, nós agradecemos o seu cuidado, mas a nossa preocupação ainda é grande. - Hiroko disse num tom entristecido - Você estará ocupado com a patinação e pode não ter tempo para Aly-chan.


— Eu vou dar conta. - ele assegurou - Eu já cuidava dele um pouco antes, não será muita novidade.


— Yurio, me desculpe, mas isso é uma péssima ideia. - Mari disse explicitando a opinião da família inteira - Você tem 21 anos. Yuuri com 21 anos ainda ligava pra casa perguntando como se pré-aquece um forno. Eu com 21 anos fui para um show em Fukuoka e acabei em Tóquio. Entende onde eu quero chegar?


Yuri suspirou fechando os olhos. Já teve aquela conversa com Yakov e Lilia, mas envolvera muito mais gritos e xingamentos.


— Maturidade. - ele respondeu - E eu entendo a visão de vocês. Mas eu não quero me separar de Alyosha. Ele é muito importante pra mim. Eu juro que vou dar o meu melhor pra cuidar dele. Só preciso de uma chance.


Os três se olharam incertos, Mari ainda parecia contrariada. Ela não estava disposta a deixar seu único sobrinho nas mãos de um garoto que há três anos não passava dos 1,65 m de altura.

— Daremos essa chance, Yuri-san. - Toshiya disse finalmente - Mas não abriremos mão de passar datas importantes perto de Alexei. Podemos contar com isso?

Yuri assentiu com um sorriso.

— É claro. Muito obrigado, Katsuki-san. Todos vocês, aliás.

— Sem problemas, Yuri-kun. Tenha cuidado, sim? Esperamos notícias.

Para uma parte tão importante do processo, aquilo até que foi fácil. Mas ele não ignorou o fato de que eles disseram que dariam apenas uma chance. Se ele estragasse isso, Alexei voltaria para eles.



Outra parte estressante foram as adaptações em seu apartamento. Yuri agradeceu profundamente por ter escolhido um lugar com dois quartos anos atrás. Do contrário, hoje ele estaria ligeiramente frito.

O Sr. Kolyada explicou que todas as posses de Victor e Yuuri na Rússia pertenciam a Alexei, mas Yuri seria o responsável pela administração. O patinador não queria encostar um dedo naquilo se não fosse para melhorar o futuro do menino. E ele conseguiria cuidar dele com o próprio dinheiro, por isso escolheu consultar um contador para converter os bens em ações. Um profissional diferente já estava reorganizando suas economias que antes estavam sob os cuidados de seus treinadores. Alguma hora iria assumir a tarefa ele mesmo, mas no momento tinha muita coisa a pensar.

A parte mais dolorosa foi visitar o apartamento dos Katsuki-Nikiforov.

No instante em que recebeu o documento de guarda provisória de Alexei, Yuri sabia que precisava arrumar as coisas em sua casa. Kolyada dissera que seria mais prático e sem problemas se ele apenas se mudasse para o apartamento de Victor e Yuuri, mas ele dispensou sem pestanejar. Não era certo. Ele não pagara por aquele teto, não era o seu lar. Ele se sentiria um intruso se vivesse ali.

Mas havia coisas necessárias ali, como as roupas de Alyosha, os brinquedos, o berço. Era de partir o coração desmontar aquele quartinho tão bem arrumado, principalmente com as lembranças atreladas.


"— Azul é melhor. - Victor disse com um dedo no queixo, enquanto eles estavam no meio do quarto vazio - Combina com a decoração de elefantes e focas.

— Focas? Na parede? - Yuri olhou abismado para Yuuri - Sério mesmo que você casou com esse cara?

— Vitya, nós já discutimos sobre as focas. - o moreno olhava pensativo para as paredes - Eu gostei do tema de ursos-polares. E do de coelhos. Podia ser verde-água.

— Sinceramente. - Yuri folheou o catálogo com as opções de quartos - Vocês são muito velhos, nenhum bebê dos últimos vinte anos tem um quarto assim.

— Mas é clássico, Yura!

— É clichê. - ele corrigiu - Eu não sou arquiteto, mas dá pra fazer algo melhor que isso. - ele fez uma pausa, apontando uma página - Eu gostei do lilás com as estrelas.

— Yura, tem que ter bichinhos. É obrigatório. - Victor disse tomando a revista - Esses peixinhos são fofos. O que acha, zolotse?

— Awn, eu gostei do polvo. - Yuuri disse com um sorriso - Mas ainda prefiro os coelhos. O que acha, Yurio?

— Eu acho que o gosto de vocês é péssimo e meu irmão não merece um quarto fora de moda. Ainda prefiro as estrelas. - ele disse mexendo distraidamente no celular, até reparar no que dissera.

Ele levantou o olhar com o rosto corado e os dois olharam pra ele com um sorriso divertido.

— Você falou "meu irmão". - Yuuri apontou o óbvio.

— E daí? - ele reagiu na defensiva - Foi sem querer, ok? É que se fosse meu irmão, eu não deixaria uma decoração tão besta e...

— Ah, Yurachka, é claro que ele é seu irmão. - Victor disse num de seus ataques de afeição, puxando o mais novo para um abraço.

— Tá tudo bem. - Yuuri disse bagunçando seu cabelo loiro, o que era uma cena engraçada já que Yuri estava mais alto que os dois mais velhos ali - Você será um ótimo onii-chan.

— Mas não tem autoridade para escolher estrelas ao invés de bichinhos. - Victor lembrou - Pode opinar a cor, se te deixa feliz.

— Hum. Então, lilás e... ursos-polares? - ele disse ainda incerto e um pouco constrangido.

— Lilás e ursos-polares. - Yuuri repetiu olhando ao redor - Vamos pensar nisso.

No final foi lilás e pandas."


Yuri suspirou apoiando-se ao batente da porta. O quarto parecia intacto. Os cobertores no berço ainda estavam ligeiramente desarrumados, provavelmente do dia do acidente. Mas faltava algo ali, assim como faltava na casa inteira: uma família.

O loiro respirou fundo e começou a juntar as coisas na mala.




Isso tudo sem esquecer dos treinos.

Não sabia se podia chamar aquilo de treino, sem nenhum técnico. E ele faltou muitas sessões por conta das outras responsabilidades, então a patinação foi deixada em segundo plano naquele mês. O que não devia acontecer logo antes das Olimpíadas.

O rinque não tinha só Victor e Yuuri como treinadores, havia outros menos importantes. Esses assumiram a carga repentina de substituir os dois, mas Yuri não se sentia confortável com eles. Ainda tinha esse bloqueio com qualquer um que não fosse os Katsuki-Nikiforov. E ele não estava disposto a tirar Yakov de sua aposentadoria.

Falando em Yakov, seu ex-técnico e a ex-mulher dele estavam dispostos a dificultar sua vida quando o assunto era Alexei. Nessas três semanas o bebê ficou sob os cuidados da mulher, com a desculpa de que ele não tinha uma estrutura pronta para recebê-lo. Quando ele conseguiu os documentos e arrumar o quarto em seu apartamento, os dois argumentaram que ele ainda tinha que treinar. O trato era ele oficialmente receber Alexei após as Olimpíadas. Yuri não estava muito disposto a esperar, mas não é como se os velhos fossem sequestrar seu afilhado.

Assim, os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 em Pequim perderam todo o brilho para Yuri Plisetsky. Ele havia chamado Georgi Popovich, que sequer morava mais em São Petersburgo, para ser seu técnico postiço e ao menos acompanhá-lo no Kiss and Cry.

Ele não estava no humor adequado para o programa curto. Aliás, ele não estava com o humor adequado para o evento inteiro. Era para a apresentação ser sexy, alegre, espalhafatosa beirando a piada. Característico do tango que representava. Foi a primeira vez que Victor deixou ele compor o próprio programa, desde que fosse algo clássico.

 


"— Nada de rock. - o mais velho alertara - Você tem que aprender a se expressar com gêneros que não são tão legais. É um teste.

O loiro bufou contrariado.

— Qual é a graça de fazer minhas próprias apresentações se não posso escolher a música?

— Continue reclamando e vai dançar o pas de deux de 'O Quebra Nozes'. - ele disse com um daqueles sorrisos que deixavam clara a sua afirmação - Ah, e nada de Saint-Saëns também. Você tem uma obsessão pouco saudável por 'Danse Macabre'.

— É o único compositor que presta! - ele argumentou, mas foi ignorado por Victor."


Ele que escolhera a música e Yuuri ajudou com a coreografia. Ele até ensinou o mais novo a dançar um tango de verdade para entender tudo melhor.



"— Um, dois, três pro lado. De novo. - Yuuri dizia enquanto Yuri conduzia da forma mais constrangedora possível - Yurio, já vi bêbados conduzirem melhor.

— Eu sei, foi assim que você e Victor se conheceram. - ele resmungou - Isso é horrível. Minhas pernas estão estranhas. Como isso vai me ajudar na coreografia?

— Tangos são sobre dominância, controle e sedução. Você não sabe dominar, só sabe demonstrar poder. São coisas diferentes. - ele disse se afastando e o olhando pensativo - Não acredito que vou dizer isso, mas você precisa encontrar o seu Eros.

— Ah, não. - ele disse com uma careta - Já foi uma merda eu encontrar Ágape ou qualquer que seja anos atrás. Não vou entrar em mais uma jornada de auto-conhecimento.

— Então não deveria ter escolhido essa música. - Yuuri suspirou - Ajudaria muito se você tivesse um namorado, mas... Ok, pense em alguém atraente. O tipo que chama atenção em festas e você quer fazer de tudo para chamar atenção dele.

Yuri sentiu seu rosto esquentar mas acabou dizendo:

— Ok.

— Certo. Como você conquistaria essa pessoa?

Yuri sorriu de lado.

— Dependendo do quão bêbado ele tá, eu já parto pro beijo.

— Yurio! - Yuuri colocou as mãos sobre o rosto - Por isso você ainda está solteiro. Precisa ser mais romântico, se não o corpo não serve pra nada.

— Ok, Mister Pole Dance Michigan 2011... - ele disse antes de levar um tapa no braço por um Yuuri muito vermelho."



Ele se desligou das lembranças quando Georgi o chamou no vestiário. Já estava na hora de ele se apresentar.

Até a roupa que ele mesmo fez para a performance perdera a graça. Pelo menos a cor preta da camisa era bem maior que os detalhes verdes brilhantes.

Da arquibancada ao seu lado, a Equipe Russa fazia questão de gritar e assoviar mais que todas as outras, só para se constrangerem ainda mais. Ah, sim. Ele tinha de patinar três vezes naqueles jogos, uma para a competição por equipes que seria agora, e na categoria individual na próxima semana. Por mais que ele quisesse ir embora o mais cedo possível, já agradecia por não ser o único patinador masculino do time e ter que fazer quatro apresentações.

— Arregaça eles, Yuri! - Mila gritou num megafone de papel.

— Faz eles comerem gelo! - Ilia Grinkov da dança no gelo gritou acenando.

Constrangedor. Muito.

— Cuidado com o quad toe. - Georgi disse em voz baixa, uma mão em seu ombro - E lembre-se de sorrir. É pra ser divertido.

Yuri queria dizer que todo mundo já reparara na sua aparência moribunda de quem não dormia há dias e que um sorriso não ajudaria em nada, mas Popovich já ajudara muito largando seu trabalho como técnico infantil e vindo para a China com ele.

— Obrigado. - ele disse, mas soou tão vazio e falso. Se Georgi reparou, não deixou transparecer.

— Boa sorte, Yura. - ele disse enquanto recebia os protetores de lâminas das mãos do loiro.

Yuri entrou no rinque e fez o melhor para acenar para a plateia e parecer minimamente feliz com os ovações. Ele ainda tinha fãs muito dedicados, disso não podia reclamar.

— Patinando pela Rússia, temos o tri-campeão mundial Yuri Plisetsky, de 21 anos! - um comentarista dizia para todos os que assistiam ao evento na TV, longe dos ouvidos da plateia real — O que você espera dessa apresentação, Yuna?

— Eu espero muito de Plisetsky, Adam, ele está melhor a cada ano. Mas temo que os problemas pessoais podem afetá-lo dessa vez. Ele inclusive não tem um técnico atualmente.

— É verdade, infelizmente. Os técnicos de Yuri eram os históricos Victor Nikiforov e Yuuri Katsuki. Ambos faleceram em um acidente em janeiro em que Yuri estava presente, aliás.

— Eu fiquei surpresa ao saber que Yuri ainda viria para Pequim, mas é fato que ele tem a fama de não se deixar abater por nada. Ainda lembro de quando ele compareceu ao Campeonato Europeu em 2019 pouco depois da morte do avô. Ele ainda conseguiu bronze.

— Yuri Plisetsky realmente faz jus ao título de Ice Tiger da Rússia. Mas eu acho que dessa vez o estresse pode ser demais pra ele, Yuna. Os boatos mais chocantes e tristes dizem que a guarda do filho adotivo de Victor e Yuuri, Alexei Katsuki-Nikiforov, passará para Yuri Plisetsky. Dá pra imaginar alguém tão jovem assumir uma criança?

— É realmente muito estranho, Adam. Oh, parece que ele vai começar.

— Yuri Plisetsky está patinando ao som de Black Bird Flies, de Richard Clayderman, conhecida também como o "Tango do Gato Preto" no Japão.



Yuri assumiu a pose inicial no meio do rinque. Um braço dobrado como se oferecesse para uma moça segurar, a outra mão na cintura, um sorriso presunçoso nos lábios.

A música começou e ele não era mais Yuri Plisetsky. Ele não podia ser, pois Plisetsky era um cara de luto, com uma criança esperando em casa e milhares de outros problemas. Aqui ele era um homem confiante empenhado em seduzir alguém.

Ele se movia pelo gelo com suavidade, cada movimento de seus braços exalando desejo e paixão. Ele era o homem, ele era a mulher, era os dois ao mesmo tempo, como tinha ensaiado. Preparando-se para o primeiro salto, uma combinação triple toe - douple toe, ele deu o impulso. A primeira parte saiu bem, a segunda teve uma aterrissagem instável. Ele apenas continuou patinando com o mesmo sorriso.

Em seguida a sequência de passos, mais uma responsabilidade de Yuuri. Ele sempre fora melhor naquilo. Apesar do russo ter conseguido organizar tudo sozinho, ele deu os toques finais. Era particularmente engraçado vê-lo gritando "Seja uma femme fatale! Use mais os quadris!" enquanto tentava fazer Alyosha dormir no carrinho.

Alyosha.

Seu sorriso falhou por um segundo ao lembrar que tinha um órfão para cuidar em São Petersburgo. Essa distração custou altura ao subir num quad toe e ele caiu com tudo no chão.

— Ouch! Ele perdeu a aterrissagem!

— Numa música animada como essa, uma queda deixa o clima estranho para o patinador.


De fato, Yuri não conseguiu mais manter o sorriso e nem o ar sedutor de seus movimentos. Ele estava indo no automático, confiando apenas na memória corporal.

Foco, ele pensou. Por Alexei.

Sequência de giros a seguir. Começando por um flying camel, seguido de um sit spin, subindo em um Biellmann.



"— Tem sorte de ainda ter a elasticidade para um Biellmann. - Victor disse no dia em que sugeririu os giros - Eles melhoram a estética dos programas. Mas logo você estará muito velho para usá-los.

— Eu velho? - ele arqueou uma sobrancelha com um sorriso - Já se olhou no espelho, Vitenka? Logo terá mais rugas que Yakov.

— Eu aposto minha coleção de hidratantes que você ficará igual a Lilia quando envelhecer. Assustador e ranzinza. - ele disse anotando algo em sua prancheta de treinador."



Por que essa chuva de memórias agora? Ele tinha uma competição para concluir, por favor.

Agora era o quad salchow, o segundo e último quad do programa. Yuri suspirou aliviado quando a lâmina tocou o gelo sem deslizes. Mais uma espiral e um impulso para um triple axel. Pouca altura, ele teve que tocar o chão.

Ele tentou recuperar o sorriso e a expressão do início, mas sentia que estava falso. Bom, pelo menos ele não estava com síndrome de Seung-gil Lee. A seguir uma última sequência de giros. Layback spin com sit spin.

Por que essa música não acaba? ele pensou ansioso enquanto via o mundo rodar ao seu redor. Era uma tortura.

Finalmente ele pode parar, deslizar mais algumas vezes pelo gelo antes de parar completamente com a música na pose final, um sorriso doente nos lábios.

Ele conseguiu ficar assim por mais dois segundos antes do público aplaudir e a sua máscara desmanchar. Era visível para todos que aquela não foi uma boa apresentação.

— Bom, não foi uma apresentação ruim, no geral. Mas está abaixo do nível esperado de Yuri Plisetsky.

— Após um tempo foi um tanto doloroso de assistir. Ele parecia forçado a continuar.

— Essa é uma das partes difíceis da patinação artística: o show tem que continuar. E podemos ver pela expressão dele que o trabalho não foi satisfatório.

— Acho que com esses pontos técnicos ele consegue um lugar no Top 5. Vamos aguardar o placar.


Yuri se curvou em agradecimento para os quatro cantos do estádio antes de sair do gelo com um buquê de flores e um gato de pelúcia que caíram próximos de si. Os presentes com temática felina nunca pararam.

Georgi o esperava com o casaco da equipe russa, seus protetores de lâminas e uma garrafa d'água. Ele ainda tinha um pequeno sorriso. O resto da equipe também estava logo atrás dele, forçando sorrisos da mesma forma. O único que compartilhava o mau-humor de Yuri era Maskim, um de seus rivais que no momento era um aliado.

— Foi bom. - Georgi comentou - Não foi perfeito, mas foi bom.

Yuri assentiu, usando o fato de estar bebendo água como uma desculpa para não dizer nada. A quem queria enganar, aquilo foi horrível. Se o objetivo era seduzir alguém, ele no máximo conseguiu fazer a pessoa conquistada sentir pena de seu personagem. Era um homem desesperado perdido em memórias. Patético.

— Foi péssimo e você sabe disso. - falou Maksim assim que eles se sentaram para receber os resultados. Era costumeiro que a equipe inteira esperasse as notas com o competidor.

— Max Vorobyov, um total de zero pessoas pediu sua opinião. - Mila disse batendo um pouco forte demais na cabeça do ruivo com o megafone.

— Yuri estava nervoso. - Taline da dança no gelo argumentou - Ele foi bem para alguém que está com a mente tão ocupada.

— Ok, me esqueci de quem é o favorito aqui. - o outro patinador revirou os olhos.

Yuri normalmente queria socar aquele nariz arrebitado de Vladivostok, mas dessa vez ele estava certo. O loiro podia ser a razão da equipe perder o pódio.

Eles se sentaram aguardando o resultado. Yuri sinceramente esperava o pior. O nível dos patinadores melhorava a cada ano e as equipes eram fortes. Ele não se impressionaria se ficasse em oitavo lugar dentre os dez competidores.

A voz que anunciava disse algo em mandarin, para depois continuar em inglês. Os números brilharam no painel: 56.25 para a nota técnica, 32.41 para a apresentação. Isso totalizava 87.67 e o colocava momentaneamente no 3° lugar atrás de Jean-Jacques Leroy e Seung-gil Lee.

Os russos festejaram ao mesmo tempo em que ele suspirava aliviado e Georgi segurou seu ombro.

— Foi bom. Podemos melhorar isso para a competição individual, não acha?

Ele assentiu, mesmo sua fé não sendo uma das mais altas. Ele ainda tinha que tentar, no final.

— Parabéns. - Maksim disse ao seu lado num murmúrio - Mesmo que sua nota caia depois que o Japão entrar, não será uma queda tão feia. O resto do time dá conta do recado. - ele o olhou pelo canto do olho - Mas vê se recupera os sensos antes do individual. Deve ser duro ouvir isso, mas ninguém dá a mínima se a gente tá de luto ou não.


Ninguém ouviu aquilo, apenas Yuri, e ele olhou para o rival com um misto de raiva e entendimento. Era a maior e mais crua verdade. Ninguém daria um desconto se ele fracassasse, mesmo todos sabendo o motivo. Assim que as coisas funcionavam. Se ele queria uma medalha antes de voltar pra casa, ele tinha que engolir o choro.

Ao final do dia ele terminou em quarto lugar, quando Kenjirou Minami ultrapassou o seu placar e assumiu a terceira posição. Agora era questão de seus colegas de equipe se esforçarem para colocarem a Rússia no pódio. Nunca ficou tão agradecido por ser obrigado a assistir Maksim performar um programa livre.

Quando finalmente ficou livre de seu trabalho na torcida (Ilia e Taline felizmente conseguirem o primeiro lugar naquele dia), ele só quis voltar pro seu quarto e dormir. Mas havia algo que o incomodava desde que chegara na China. O fato de que não encontrara uma pessoa em especial.

Agora estava caçando o quarto da dita pessoa na Vila Olímpica como o Exterminador do Futuro. Já errara o número duas vezes e em uma delas interrompeu o jogo de pôquer do time brasileiro de bobsled. Sinceramente, onde estava o maldito cazaque?

Na terceira tentativa, ele encontrou Otabek Altin. Ele era mais alto que o seu melhor amigo, mas isso não impedia o mais velho de dar os melhores abraços reconfortantes.

Yuri nem disse "oi" antes de jogar os braços ao redor do moreno e ficar ali, esperando consolo. Era algo já comum entre os dois, mas acontecia só em casos muito graves. Considerando que era a primeira vez que se viam desde o acidente e Yuri estava uma bolha de nervos, aquilo era bem grave.

— Yuri. - Otabek disse num tom neutro enquanto correspondia ao abraço.

Plisetsky revelara-se uma das pessoas mais sensíveis que já conhecera desde que se tornaram amigos sete anos atrás. Não é como se todos soubessem daquilo. Apenas um grupo seleto conhecia aquela face de Yura e no último mês ela ficara dolorosamente menor. Mesmo com seu diploma em psicologia, Otabek não podia imaginar o que estava passando na cabeça do mais novo.

Ele nem parou para pensar no bebê.


O loiro se afastou e Otabek percebeu que ele estava vermelho. Seus olhos estavam úmidos, mas ele não parecia que estava prestes a chorar.

— Meu programa curto foi uma droga.- ele murmurou após um tempo.

— Não foi tão ruim. - Otabek assegurou enquanto os dois sentavam na cama.

Eles poderiam ter saído do alojamento e feito qualquer outra coisa. Uma balada, um restaurante, uma caminhada. A lista de aventuras que eles construíram ao longo dos anos era imensa e sempre havia espaço para mais uma em eventos esportivos. Deus, havia bastante espaço para aquelas que se arrependeriam depois, como uma certa noite em Helsinki e outra mais estranha ainda em Ostrava. Mas em tempos difíceis, eles ficavam em seus quartos. E era o trabalho não-oficial de Otabek ouvir Yuri discorrer sobre sua vida problemática.

— Aquilo era para seduzir alguém. Eu devo ter feito um juíz chorar. - Yuri resmungou - Não era um tango de verdade.

— Em minha opinião, você fez um trabalho razoável de sedução. - ele ponderou.

— Seu gosto é questionável. Você é amigo do JJ. - Yuri se permitiu sorrir - É verdade que ele vai se aposentar?

— Disse que tem talvez mais um ano. Ele vai fazer 27, afinal. - o moreno olhou para o teto - Todos estão indo embora.

— Michele já foi, Cao Bin e Phichit logo atrás. Seung-gil acaba aqui em Pequim. Agora Jean. - Yuri disse com uma careta - Logo você vai me deixar também.

— Você ainda tem boa companhia. Guang-hong não sairá sem Leo. E ainda tem Emil e Minami.

— Pelo visto vou ser o último a deixar o palco. - ele disse pensativo.

Altin deu de ombros.

— Acontece quando se é o mais novo.

— ...Eles foram muito cedo. - Yuri sussurrou com pesar na voz.

Chegou a conversa que estavam evitando. Otabek sabia que ele não estava se referindo a seus colegas patinadores. Não, isso era sobre Victor e Yuuri. Yuri com toda a certeza foi o mais afetado pela perda.

— Você quer falar sobre isso? - ele perguntou cauteloso.

Yuri hesitou por um segundo antes de assentir incerto. Ele ainda tinha dificuldade em se abrir, mesmo sabendo que era a melhor opção.

— É só que... Foi tudo tão repentino. - ele começou com o cenho franzido - Uma hora eles estão lá e depois... Não foi a mesma coisa com a mamãe e dedushka. Eles estavam doentes e no fundo eu sabia que não havia escolha. Agora Victor e Yuuri, eles tinham uma vida inteira. Victor mal passara dos trinta. Eles... Droga, eles tinham acabado de adotar um bebê. Alexei não fez um ano ao lado deles, Beka. - Yuri soava devastado - É tudo tão injusto.

O moreno apenas assentiu ouvindo. Normalmente ele esperava Yuri terminar de falar ou fazer alguma pergunta antes de dar sua opinião no assunto. Nesse caso, ele só estava esperando que a conversa chegasse a um ponto que o preocupava.

— É tão difícil se adaptar a um dia a dia sem eles. - o loiro continuou caindo de costas na cama, numa tentativa falha de simular um divã - Descobri agora que eles cuidavam bem de mim. Quer dizer, eu sabia que eles eram mais que meu técnico e instrutor de dança. Só que nunca ficou na cara. Eu... Eu nunca agradeci o trabalho que eles tiveram comigo. Eu nem fiz nada pra retribuir. Por que eles teriam esse esforço com alguém que metade do tempo se distanciava?

— É ágape, Yuri. - o cazaque respondeu com um suspiro - Não tem que ter uma retribuição. Fizeram isso porque gostavam de você e sabiam que no fundo você apreciava o que faziam. Só tinha dificuldade em expressar.

— Acho que melhorei isso nos últimos anos, mas... Não parece suficiente. - Yuri suspirou colocando as mãos sobre o rosto - Eles me deixaram um bebê.

Ah, chegou o prato principal.

— É, definitivamente algo incomum para colocar na herança. - Otabek murmurou.

— Eu ainda não acredito que eles fizeram isso. Mas já que fizeram, eu vou cumprir minha tarefa. - ele fez uma careta - Todo mundo duvida de mim e acham que eu não consigo cuidar de Alexei. Eu sei que vai ser difícil, mas eu não posso simplesmente deixá-lo sozinho.

— E a família de Yuuri? - Otabek tinha que soar pouco interessado. Se Yura notasse que ele compartilhava do senso comum de todos ao seu redor, podia se fechar completamente ou brigar com ele ali mesmo.

Altin podia ser a única pessoa a fazê-lo mudar de ideia. Mas será que realmente deveria fazer isso?

— Já falei com eles. Concordaram em me deixar ficar com ele se visitarmos nos feriados. - Yuri se sentou novamente - É melhor que Alyosha fique comigo. Sabe como é difícil conseguir a cidadania japonesa se você não nasceu lá? Eles não querem nem saber se um dos pais de Alexei era japonês.

— Mas se conseguissem a cidadania, Alexei poderia morar com eles. - o moreno disse sugestivo.

Yuri pareceu entender parte do que ele quis dizer, pois arqueou as sobrancelhas levemente.

Se ele conseguisse, eu ainda teria preferência na guarda dele. Tá no testamento, lembra? - Yuri fechou os olhos, abaixando a cabeça - Eu... Eu não quero me separar de Alexei. Não é só questão de praticidade, eu quero cuidar dele. Sei que ninguém pode amá-lo do jeito que os pais dele fizeram, mas eu só vou ficar em paz se ter certeza de que ele está bem. E a única forma de garantir isso é eu cuidar dele eu mesmo.

O mais velho mordeu o interior da bochecha, um sinal velado de nervosismo. Yuri não parecia disposto a mudar de ideia. E era uma ideia muito ruim.

Bom, Otabek já lidava com as ideias ruins do russo há sete anos, ele podia lidar com essa também. E Yuri não tinha mais 15 anos.

— E você está preparado para ser pai? - ele perguntou ligeiramente curioso.

— Ninguém nasce pronto pra isso, eu vou aprender. - ele disse dando de ombros - E eu ainda não gosto de usar o termo "pai". Pra mim apenas Victor e Yuuri podem ser considerados pais de Alexei.

— Desculpe, esqueci que vocês são tecnicamente irmãos. - ele esqueceu mesmo, mas não ignorou o fato de que Yuri assumira a tarefa de criar Alexei, mas com a recusa de abandonar a ideia de Victor e Yuuri como os pais. Ele nem queria pensar em como aquilo funcionaria - Você vai encontrar alguém, então?

— Como assim?

— Um namorado, Yuri. Agora seria uma boa hora para se ter um parceiro. - parecia tão óbvio para ele, como o russo não pensara nisso antes?

— Isso não tá exatamente na minha lista de prioridades, Beka. - ele disse com um sorriso um pouco confuso - Além disso, não acho que homens com filhos sejam os favoritos dos solteiros.

— Você quer criar Alexei sozinho? - o cazaque perguntou cético.

— Sim. - ele respondeu como se fosse óbvio - Eu sou filho de mãe solteira, Beka. Não é impossível.

— Sua mãe tinha os seus avós pra ajudar. E pelo que eu entendi, você já começou a brigar com Yakov e Lilia. - Otabek suspirou - Você tá sozinho, Yuri. Se cuidar de um bebê sem ajuda já é difícil, imagina com a sua agenda?

— Está começando a falar como eles. - o loiro parecia levemente irritado agora - Eu só preciso me organizar. Quem sabe abandonar algumas disciplinas na faculdade, refazer meu horário de treinos. Isso depois de arranjar um técnico, claro.

— Então você vai continuar patinando. - era uma confirmação. Um dos medos do mais velho era que Yuri abandonasse a carreira ali mesmo.

— Claro que vou, é a única coisa que eu sei fazer. - ele revirou os olhos, mas continuava sério - Mas talvez eu tenha que tirar o resto da temporada de folga. É difícil viajar com um bebê e eu ainda preciso de um treinador. Então acho que não vou patinar mais esse ano.

— Isso é um passo muito grande em direção à aposentadoria precoce, Yuri. - ele disse no tom mais sério da noite - Os patrocinadores não vão dar trégua. Uma coisa é você se machucar, outra é você tirar férias. E se cortarem seus pagamentos por você não estar patinando?

— Não vão fazer isso, eu sou o símbolo deles. E eu ainda trabalho como modelo nas horas vagas. - Yuri cruzou os braços - Você está sendo pessimista.

— Você odeia ser modelo. E eu prefiro o termo "realista". - ele disse sincero - Eu estou preocupado, Yuri. É muita coisa pra você fazer, tenho medo de acabar se perdendo no caminho. Você é muito novo e...

— Não! - Yuri se levantou e apontou um dedo em seu peito - Não começa, Otabek. Você já usa essa carta comigo há anos e agora todo mundo faz questão de lembrar. Eu não sou mais criança, faço 22 em abril. Há pessoas que têm filhos muito antes disso. Jean foi pai de gêmeos com 24!

— Jean é casado com a melhor amiga dele desde o primário. - o moreno rebateu - Ele tem uma esposa, uma carrera estável, terminou a faculdade e está na idade certa para pensar em aposentadoria. Dois anos fazem muita diferença, Yuri.

— Qual é a sua ideia, então?! Deixar meu afilhado em algum orfanato, o lugar que Victor e Yuuri lutaram até o fim para tirá-lo antes mesmo de ele nascer?! - o loiro sentiu lágrimas em seu rosto, mas havia apenas raiva em sua voz - Você tem uma família completa e que conseguiu te criar, Altin. Você nunca lidou com a possibilidade de ir para um abrigo, de perder o conforto da sua casa, com a insegurança de não saber onde diabos você vai passar a noite. É horrível. Você se sente perdido, sozinho num mundo de possibilidades. Sabe um náufrago? É essa a sensação. E eu me sinto assim de novo só de pensar em tudo isso acontecendo com Alyosha. O meu Alyosha, Otabek, o meu irmão. Não posso deixá-lo sozinho.


— Não estou pedindo para abandonar Alexei, quero que pense em você. - o mais velho se levantou também, segurando os ombros do russo - Você tem um péssimo hábito, Yuri Plisetsky. Quando tem um objetivo, faz de tudo para alcançá-lo e acaba se machucando. Tenho medo de que nessa ideia de criar o seu irmão você esqueça de cuidar de si.

Yuri parecia pronto para dar um soco em alguém, Otabek conhecia aquele olhar. Mas ao mesmo tempo ele estava nervoso, com medo de ser abandonado mais uma vez.

— Só peço que confie em mim. - Yuri disse finalmente, parecendo mais vulnerável do que nunca. 21 anos realmente não era tanto tempo assim - Só preciso... Só preciso de uma chance, Beka.

E ele queria dar essa chance, queria mesmo. Mas o problema de chances é que sempre havia a possibilidade de dar errado e ele não queria ver Yuri sofrendo. Por que ele tinha que ser tão teimoso? Se ele fosse um pouquinho menos reativo, e Otabek um pouco menos covarde, eles poderiam estar juntos numa casa suburbana de filme americano vivendo como um casal normal. Mas não ia acontecer, porque Otabek era um frouxo que não queria estragar a relação dos dois e se contentava em ser o terapeuta não-pago do seu interesse amoroso.

Que merda, hein?

Ele não tinha certeza do que dizer. Uma resposta deixaria Yuri com raiva e triste, provavelmente cortando a relação dos dois por um mês. A outra dava apoio para algo que Altin era contra, mas deixava Yuri feliz. Ele deveria usar a razão e agir como a mente madura da relação, não é?

Mais uma vez, Otabek é um frouxo.

— Yuri, eu vou te apoiar em qualquer decisão que você faça. - ele disse sinceramente, mas com um pingo de tristeza na voz - Mas eu ainda tenho medo. Promete que terá cuidado, que não vai se esquecer de si mesmo?

— Prometo, Beka. Não precisa de tudo isso. - Yuri conseguiu um sorriso fraco antes de abraçar o mais velho mais uma vez naquela noite - Obrigado. Eu não sei o que seria de mim sem você.

Otabek também não sabia o que seria dele sem um certo par de olhos verdes, mas aquilo não diminuía a sua aflição.

Algo dizia pra ele que seria um longo ano.


 


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Notas finais do capítulo

Para dar um tapa no Yuri tecle 1. Para dar um tapa na autora tecle 2. Para abraçar Otabek tecle 3. Se você só quer deixar um review normal, tecle 4. Agradecemos a ligação.
Até a próxima!!
XOXO



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