Ponto e Vírgula escrita por Luh Castellan


Capítulo 1
Programados pra cair


Notas iniciais do capítulo

Hey, faz um tempinho que não posto nesse site, mas pretendo voltar à ativa.
Esse conto foi um presente para uma amiga.
Quem não gosta de Amianto, né?
Fiquem à vontade e boa leitura ♥



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Eles não notaram quando saí. Eles me deram remédio para dormir. O Dr. Alberto o colocou no meu soro, mas dei um jeito de arrancar a agulha antes que mais de três gotas entrassem nas minhas veias. Fingi perfeitamente que estava no mais profundo dos sonhos. Se eu não estivesse morrendo, poderia me arriscar na carreira de atriz.

Já havia se passado bastante tempo desde que vi o último sinal de um enfermeiro. Me apoiei nas laterais da cama e impulsionei o corpo para cima. Uma dor lancinante explodiu no meu crânio quando me sentei. Dores de cabeça se tornaram algo tão frequente que eu aprendi a ignorá-las na maior parte do tempo.

Meus pés descalços tocaram o chão frio. Apoiei-me na beirada da cama até a tontura passar e o quarto parar de girar. Um tufo de cabelos castanhos jazia sobre meu travesseiro. Passei a mão na nuca e mais fios caíram. Minha mãe insistia em raspá-los logo, tudo de uma vez, mas eu sempre negava. Queria aproveitá-los até o último momento. Se bem que meus cabelos já não eram mais bonitos e cheios como antes. Nada era como antes.

Peguei meu casaco de lã que estava jogado sobre a poltrona enquanto calçava minhas pantufas de coelhinho. Dei as costas àquele horroroso quarto de hospital – ele nunca seria o meu quarto – e adentrei no corredor iluminado fracamente pelas fluorescentes econômicas. Tudo ali cheirava a antisséptico. Eu já havia andado tanto por ali que era capaz de saber o caminho exato que deveria tomar para evitar todos os postos de enfermeiras de plantão.

As portas prateadas do elevador fecharam-se na minha frente quando eu tentei erguer a mão esquerda para apertar o botão do andar. Ela não obedeceu ao comando. Eu sequer conseguia flexionar os dedos. Com um suspiro, deixei o braço cair ao lado do corpo e usei a outra mão para apertar o botão do último andar.

Com bastante esforço, subi a escada de serviço que levava ao terraço. Pela primeira vez, ponderei se aquela era mesmo uma boa ideia. Mas não dava para voltar atrás, não quando eu tinha chegado tão longe. E aquilo era o mais próximo que eu teria em relação a sair do hospital.

O vento frio bateu nas minhas pernas nuas por baixo da fina camisola que eles me forçaram a usar. “É mais prático na hora de usar os aparelhos e fazer os exames”, disseram, quando eu pedi para vestir meus jeans.

Inspirei profundamente. O ar não era lá dos melhores, visto a poluição da cidade, mas era bem melhor do que o cheiro ocre dos produtos de limpeza.

A primeira coisa que notei foi a lua, majestosamente cheia, única. Todas as estrelas estavam ofuscadas pelo seu brilho. Em vez disso, elas estavam no chão. Infinitas luzes até onde a vista alcançava: as estrelas da cidade. O prédio alto reforçava a impressão de que eu estava acima de tudo aquilo.

Aproximei-me da sacada. Aquela pequena parede era a única coisa que me separava de uma queda de quase cem metros.

Enquanto observava os carros e as pessoas se moverem como formiguinhas lá embaixo, me lembrei do noticiário que assisti naquele dia. Eu detestava assistir TV, mas estava na hora do almoço e minha mãe gostava de ver o jornal. Uma garota se jogou do quinto andar de um prédio.

Tinha 17 anos, só um ano mais velha que eu. Mostraram uma foto dela. Era linda, tinha cabelos longos e escuros, além de um sorriso estonteante no rosto. Era o tipo de garota que estava nas capas das revistas de moda e nos comerciais de creme dental. Aparentemente, possuía uma saúde impecável. Não tinha um tumor no cérebro, que estava comprometendo seus movimentos. Não teve que deixar a escola, amigos e namorados por causa disso. Não precisava tomar centenas de injeções e soros com efeitos colaterais horríveis. Não tinha que conviver todo santo dia com o olhar de pena por onde andava, nem precisava ficar trancafiada num quarto branco com cheiro de antisséptico. E eu a invejava por isso.

Não quero dizer que ela não enfrentava problemas, isso só ela pode dizer. Mas, se ela acionou sua válvula de escape por muito menos, por que eu não possuía o direito de fazer o mesmo?

Agarrei a meia parede com tanta força que as juntas dos meus dedos ficaram (mais) brancas. Eu podia fazer isso. O vento rugia a minha volta, quase como se ansiasse por me carregar. Eu poderia cessar toda a dor. As luzes dos prédios e postes viraram círculos borrados conforme meus olhos enchiam-se de lágrimas. Eu já estava morrendo mesmo... Isso só aceleraria o processo.

— Hey, moça — Uma voz chamou, um pouco distante. Não tinha certeza se era real ou era mais uma das fantasias da minha mente. — Sai da sacada...

Virei-me e encontrei o dono dela.

Era um rapaz que aparentava ter a minha idade. Estava escondido sob roupas folgadas, de aparência desgastada. A combinação de camisa xadrez, estilo “flanela”, jeans e All Atar poderia enquadrá-lo como um adepto ao movimento Grunge, dos anos 90, ou mais um aspirante a boy “tumblr” do Instagram. Sua pele pálida ganhou um tom quase prateado ao luar. Era possível notar suas feições magras e maxilar proeminente.

Seus lábios quase roxos, os poços ao redor dos olhos e a respiração entrecortada denunciaram que ele estava mal.

— Você não deveria estar lá dentro? — indaguei. — Tipo, numa cama ou sei lá.

Ele mostrou um sorriso fraco.

— Digo o mesmo.

Por um instante, ficamos nos encarando, apenas com o assobio do vento para quebrar o silêncio. Visto que eu não falaria nada, ele prosseguiu.

— Os médicos me deixaram vir — Ele deve ter notado minha cara de surpresa, pois explicou a seguir. — Eu... Queria tomar um pouco de ar. Minha mãe não queria deixar, disse que eu estava fraco.

— Então você simplesmente saiu? — Não pude esconder a pontada de incredulidade da minha voz.

Seu sorriso assumiu um tom mais triste.

— Dra. Mônica disse que não há mais o que fazer — Baixou o olhar para o chão. — Já estou em estágio terminal. O corpo rejeitou a doação de medula pela segunda vez. Então, não tem mais problema em vir aqui em cima. Acho que me deixariam ir até Chernobyl, se eu quisesse — suspirou. Quando ergueu os olhos novamente, tive uma repentina vontade de abraça-lo. — Pra eles, eu já sou um “tanto faz”.

— Oh...

Francamente, Raquel, isso é a única coisa que você consegue dizer? “Oh”. O menino fala que já está praticamente considerado morto e você responde “Oh”. Eu me estapearia se fosse você. Espera, eu sou.

Aquela situação era bastante comum no dia-a-dia do hospital. Pessoas morriam diariamente, poucos eram os casos que se curavam. Num dia, a pessoa estava lá, assistindo a um seriado na sala de recreação e no outro... BUM! O nome aparecia no quadro memorial do mês, com letras douradas ao lado de uma foto sorridente.

O garoto limpou a garganta e empertigou-se, numa tentativa de recuperar a compostura.

— Mas não acredito neles — afirmou, com um ar teimoso de adolescente rebelde. — Eu sei que posso lutar contra isso. E continuarei lutando.

Não pude evitar revirar os olhos. Aquele era o mesmo discurso motivacional que os médicos e psicólogos viviam repetindo para nós, crianças com câncer. Estava estampado no hall de entrada: “Pelo tamanho da sua luta, você já pode imaginar o tamanho da sua vitória? Então não desista agora!”. Mas eu achava aquilo tudo uma grande perda de tempo.

— Não pode lutar contra você mesmo — constatei, como se fosse o mais óbvio dos fatos. — É inútil. Dá para se lutar contra uma pessoa, contra um país, até contra um vírus ou bactéria. Mas o câncer é formado por suas próprias células. É você. Uma luta contra seu corpo. Não dá para combate-las sem se autodestruir, não é mesmo? — Abri os braços, gesticulando para nossos corpos.

Ele ponderou um instante. Então juntou-se a mim na sacada e desviou a atenção para as luzes. Agora, de perto, era possível notar a cor de seus olhos, um azul acinzentado como mercúrio. Também percebi a cabeça totalmente careca que ele escondia sob a touca cinzenta. A falta de cabelo não o deixava menos bonito.

— Interessante seu ponto de vista... Como é mesmo seu nome?

A meia parede era larga o bastante para que eu pudesse me sentar sem desabar 33 andares abaixo (o que, tecnicamente, não seria uma ideia ruim). Com um pouco de dificuldade, usei a força restante nos meus braços (no direito, principalmente) para me erguer e sentar ali.

— Raquel — respondi, ofegante pelo esforço. — E o seu?

O rapaz lançou um olhar um pouco apreensivo para a rua lá embaixo e permaneceu em pé, a uma distância segura da meia parede. Uma atitude sensata que eu deveria tomar como exemplo.

— Kamael. Veja só, nossos nomes rimam! Isso é um sinal de que fomos feitos um para o outro — Piscou para mim, de um jeito bobo.

Um sorriso escapou dos meus lábios diante dessa cantada boba. Me assustei assim que me dei conta do fato. Não lembrava qual fora a última vez que sorri.

— Não tão rápido, campeão. Preciso de mais coisas em comum além de uma doença terminal e uma terminação nominal para avaliar se é um bom pretendente — devolvi, cutucando seu braço.

Ele riu. Ao contrário de mim, os cantos dos seus lábios erguiam-se com bastante facilidade.

— Tudo bem, já falamos muito sobre mim.

Ergui uma das sobrancelhas de forma questionadora, pois não havíamos falado quase nada sobre ele. Ele não percebeu, pois prosseguiu.

— E você? O quê que a vida aprontou dessa vez?

Com um suspiro, deixei os ombros caírem. O curto instante descontraído da conversa havia terminado.

— O que ela não aprontou, seria mais fácil enumerar. Mas o que você gostaria de saber?

— Tudo — Seu olhar provava exatamente isso, absorvendo cada detalhe e expressão meus como se ele quisesse memoriza-los para repassar a cena depois. — Para começar, o que te traz aqui a essa hora da noite?

Coloquei uma mecha do cabelo atrás da orelha, que insistia em chicotear meu rosto. No gesto involuntário, mais fios se soltaram.

— Acho que pelo mesmo motivo que você. — Observei os fios na minha mão por um instante, então os deixei cair da sacada. — Queria tomar um pouco de ar. Faz séculos que não saio daquele quarto ou desse hospital. Já passou bastante tempo desde minha última alta e não faço ideia de quando será a próxima, SE haverá uma próxima.

Ele observou a cena com aquele mesmo olhar de preocupação.

— Hã... Acho melhor você descer daí.

Eu podia entender o que estava se passando pela cabeça dele. Eu estava tão magra e frágil que uma simples brisa mais forte poderia me derrubar, e ele estava com medo de que realmente me derrubasse.

— Sim, estou mesmo com vontade de descer — afirmei de forma melancólica. — Mas acho que do outro lado é mais interessante.

Virei o rosto para olhar a rua com os carros minúsculos como luzinhas de pisca-pisca. Com minha visão periférica, notei que Kamael ergueu a mão para me tocar, mas hesitou.

— Pensa bem... — Parecia escolher as palavras com cuidado. Era como se eu fosse um animal selvagem encurralado. Na cabeça dele, a qualquer palavra errada ou movimento brusco, eu iria pular. — Você é muito nova pra brincar de morrer.

— Tsc. — Estalei a língua e voltei a olhar para ele, com ar de deboche. — Típico. Deixa eu adivinhar, eu sou apenas uma criança, jovem demais para saber o que “é dor” e jovem demais para tomar decisões, certo? — Repeti o discurso que eu já estava cansada de ouvir.

— Não, não! — Ele estava nervoso. — Acho que eu me expressei errado. Não quis dizer que você é uma adolescente inconsequente ou algo assim, só estou dizendo que não podemos tomar decisões no calor da emoção. Que devemos considerar todas as probabilidades.

Por um momento, apenas o som da cidade se fez presente entre nós. Ele tomou meu silêncio como incentivo para continuar.

— Imagina... — Olhou para o céu, procurando as palavras certas. — Que você ainda tem sete anos. Está na hora do jantar. No seu prato, tem um bife suculento. O cheiro sobe nas suas narinas e faz seu cérebro dançar Polka Irlandesa. Você está louca para comê-lo. — Minha barriga roncou, fantasiando sobre o bife. Lembrei então da comida sem sabor que era servida aqui e tive vontade de chorar. — Mas, ao lado da carne, tem uma porção horrível de brócolis. Você detesta brócolis.

— Mas eu sempre gostei de brócolis — protestei.

Ele rolou os olhos.

— Você está tirando a magia da metáfora! Vamos imaginar que, como todas as crianças normais, você detesta brócolis. Mas sua mãe te obriga a comer os vegetais. A pequena Raquel faz birra e acha que sua mãe está sendo malvada. Por que ela não pode comer somente o bife gostoso? Por que é obrigada a passar por essa sessão de tortura consistida em mastigar e engolir essas coisas verdes e amargas? Mas a pequena Raquel ainda é muito jovem para conhecer todas as vitaminas e fibras contidas no brócolis, necessárias para ela crescer forte e saudável. Ela ainda não sabe que, comendo só a carne, não terá os nutrientes suficientes. Sua mãe te obriga a comer os vegetais, pois sabe que faz bem. E a vida é assim também. Sempre tem alguns obstáculos, algumas coisas que não vem da maneira que planejamos. Tem algumas coisas que podem parecer... ruins, ou difíceis naquele momento, mas no futuro a gente vê o quanto aquilo fez bem, nem que seja para evoluir e aprender com isso.

Torci o nariz.

— Papo motivacional piegas não funciona comigo. E como você explica isso? — Apontei para ele. — Não acha que a vida já te fez comer brócolis o suficiente?

— Sim, acredito que já passei por experiências horríveis. E também já pensei em largar tudo e desistir — Por um instante, ele olhou para frente sem realmente focar a visão em algo, com um ar meio sombrio, como se estivesse com a mente em outro lugar. Então balançou a cabeça e voltou a sorrir, como se nada tivesse acontecido. — Mas um velho sábio uma vez me disse que tudo o que é precioso tem origem na dor ou na pressão, como o diamante formado sob enorme pressão e temperatura a 160 km da superfície terrestre. Tudo isso pelo que passei e pelo que ainda vou passar servem para formar a pessoa que eu sou. Imagina só as histórias que vou contar para os meus netos, como o dia em que conheci uma menina linda no terraço do hospital.

E lá estava eu, sorrindo pela segunda vez naquela noite.

— Você é um otimista. — apontei e ele deu de ombros, se desculpando. — Não posso culpa-lo por ter boas intenções, mas infelizmente as nuvens não são feitas de algodão.

Meus olhos se voltaram para o céu, talvez para comprovar minha tese, mas não haviam nuvens ali.

Eu sei que as pessoas são diferentes, essas singularidades são a beleza da espécie humana. E, como seres pensantes e autônomos, temos formas diferentes de reagir às situações da vida. Este otimismo foi a armadura que ele escolheu, enxergar o lado bom das coisas, a flor surgindo entre as rochas. Pessoas covardes, como eu, consideram alternativas mais rápidas e egoístas.

— Mas tudo bem, — interrompeu meus devaneios. — nem sempre estamos na melhor. Eu compreendo você, não inteiramente, é claro, porque só você sabe da sua própria dor, e não estou falando só da dor física. Mas... Acho que posso ter uma boa ideia do que está passando e, o conselho que posso dar é: se jogar daí não vale à pena.

Olhei para baixo novamente. O vento brincou com meus cabelos, me provocando. Era realmente muito alto.

— Hm... Sabe o que eu estou desejando agora? — ele perguntou, quebrando o silêncio.

— Uma cura para a sua leucemia? — chutei o óbvio.

Kamael riu, considerando minha sugestão como uma piada.

— Não, um café. Daqueles que servem na lanchonete, no primeiro piso. Com a quantidade certa de leite, nem mais nem menos. Fica cremoso, doce na medida certa, não é algo desse mundo. Já provou?

Neguei, balançando a cabeça.

— Como assim?! — indagou, incrédulo. — Tá de caô, né?

Estranhei o uso da gíria. Não era algo que se ouvia com frequência entre os jovens, pelo menos os dessa geração. Mas Kamael era diferente da maioria dos jovens dessa geração em vários outros aspectos, então não dei muita bola.

— Você não vive plenamente sem ter feito duas coisas: ir a um show de Nirvana e provar esse café. Ah! Eu trocaria facilmente a cura para a leucemia por uma única xícara desse líquido dos deuses.

— Mas... Essa banda acabou há um bom tempo. Você está falando dos covers, né? — sugeri, tentando encaixar a informação na minha cabeça.

Seu rosto se transformou num misto de surpresa e confusão. Me pareceu que ele ficou um pouco ofendido, até. Após um tempo ponderando, ele balançou a mão num gesto de pouco caso, deixando o assunto para lá.

— Alguma outra banda que você curta... Tanto faz. Mas a outra coisa nós podemos resolver agora mesmo. — Ele ajoelhou-se na minha frente e segurou a minha mão. — Raquel, aceita tomar um café comigo?

Eu ri diante daquela situação. Seu toque era quase tão gelado quanto o suporte de metal onde eu apoiava o braço para tirar amostras de sangue. Considerei as minhas opções, ou, como ele disse mais cedo, “todas as probabilidades”. Kamael estava me oferecendo um “ponto e vírgula” em vez do “ponto final” que eu queria colocar.

Olhando em seus olhos, eu conseguia ver o reflexo das estrelas da cidade atrás de mim.

— Isso é um encontro? — Ergui o queixo e lancei-lhe um olhar desafiador.

O rapaz mordeu o lábio, pensando no que responder.

— Porque, se for, eu aceito. — completei, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa.

Vi um sorriso se abrir de orelha a orelha.

***

As portas do elevador se abriram no andar térreo. O saguão estava pouco movimentado àquela hora da madrugada, avistei apenas vigilantes e alguns funcionários do hospital. Um pouco distante, as luzes da lanchonete 24h envolviam a vendedora e um cliente solitário debruçado sobre o balcão.

— Vamos lá tomar o seu caf... — A frase morreu na metade quando eu me virei e notei que estava sozinha no elevador.

Varri os olhos novamente pelo saguão, mas nada havia mudado. Como alguém pode desaparecer assim, tão rápido? Talvez ele tenha ido ao banheiro. Mas ele teria avisado, não teria? Eu o conheço o suficiente para prever o que ele poderia ou não fazer? As perguntas e possibilidades martelaram na minha mente, fazendo minha dor de cabeça voltar.

Fui até a lanchonete, o mais rápido que minha perna esquerda meio debilitada me permitiu, só para encontrar o mesmo homem adormecido que eu vira instantes atrás.

— Moça... — dirigi-me à atendente da lanchonete, fazendo uma pausa para recuperar o fôlego. — Você viu um rapaz de camisa xadrez, olhos azuis, mais ou menos dessa altura? — Ergui a mão, indicando o tamanho.

Ela negou, balançando a cabeça.

— Desculpa... E você não deveria estar na cama?

— Já estou voltando para o quarto. — respondi, com a decepção evidente na voz.

Fui até o banheiro masculino e aguardei em frente à porta pelo que pareceu uma eternidade, até constatar que não havia ninguém lá. Então tive a ideia de procurar no quarto dele. É, nós nos desencontramos, ele se sentiu mal, ou algo do tipo, e voltou para lá. Com certeza foi isso que ocorreu.

Arrastei-me até a recepção com o coração cheio de esperança.

— Oi... Queria procurar informações de um paciente.

— Raquel? — A recepcionista me reconheceu, espantada. — O que está fazendo aqui?

Eu sinto que a conhecia também, apesar de não lembrar seu nome. O cabelo curto e os óculos parafusados não me eram estranhos.

— Eu vim tomar um café... — expliquei, lembrando-me do motivo que me fizera descer até ali, em primeiro lugar. — Mas isso não importa, pode procurar alguém pra mim?

— Claro que importa! Vou ligar para algum enfermeiro te buscar agora mesmo.

— Não! — implorei, me debruçando sobre a mesa de mármore que dividia o espaço da recepção. — Por favor, procure esse nome — insisti, usando todo meu poder de persuasão. — e eu juro que voltarei para o quarto.

Ela pensou um instante, depois suspirou.

— Tudo bem. — cedeu. — Qual o nome?

Eu daria pulinhos de alegria, se tivesse condições para isso.

— É Kamael.

— Com “K”?

— Acho que sim.

— E o sobrenome?

— Eu... — Só nesse instante que me dei conta de que eu não sabia nem seu sobrenome. Não sabia praticamente nada sobre ele. — Eu não sei.

— Vou ver o que posso fazer. — A recepcionista falou, depois concentrou-se no computador.

O barulho das teclas no teclado apenas intensificava a minha ansiedade. Batuquei os dedos no mármore apenas para ter algo em que me concentrar.

— Não há nenhum paciente registrado com esse nome.

Meu coração se apertou.

— Tenta com “C”. — Minha voz já era quase um sussurro.

O ser humano é tolo. É como jogar na Mega-Sena: você sabe que sua possibilidade de ganhar é de uma em um trilhão, mas ainda assim torce para que o bilhete premiado seja o seu. Ou quando você está em estágio terminal de uma doença com aproximadamente 1% de chance de cura sem sequelas, mas você e todos ao seu redor insistem que vai dar tudo certo, que Deus ou algum outro ser superior está cuidando de você, milagres existem e tudo é possível. É da natureza humana. Nós insistimos em nos agarrar a um fio de esperança, mesmo quando está tudo fadado ao fracasso.

Ela digitou mais algumas coisas, depois me lançou um olhar de desculpas.

Enterrei os dedos nos meus cabelos, esquecendo completamente o que isso iria me custar depois. Não. Não, não, não, não. Eu não posso ter imaginado tudo isso. Eu não estou perdendo minha sanidade, não ainda.

— Tem certeza que não tem nada? Po-pode ter acontecido um erro no sistema, ou... Ou ele recebeu alta! — Continuei, em vão, mentindo para mim mesma. — Foi isso que aconteceu.

— Me desculpe, querida — A recepcionista falou com doçura. Seu olhar carregado de carinho e, no fundo, um pouco de pena, lembrou a minha mãe, logo nas minhas primeiras sessões de quimio. — Se ele tivesse recebido alta recentemente, o sistema registraria.

Aquele garoto incrível que conheci não poderia ser somente uma fantasia da minha cabeça. Eu não queria aceitar a ideia de que meu subconsciente usou as minhas angústias e anseios para moldar a pessoa perfeita para mim, e que me falou exatamente o que eu precisava ouvir.

Então a recepcionista e o computador começaram a girar. O teto girou, o saguão inteiro girou, o mundo girou. O fio que me sustentava se rompeu e eu caí. Não caí da sacada do prédio, como planejava mais cedo. Por algum motivo, a ideia me parecia agora algo estúpido e impulsivo. Mas mesmo assim eu caí, porque ninguém é de ferro. Somos programados para isso. A lei da gravidade puxa a gente pro chão e nos impede de voar.

***

Estava um pouco frio lá em cima. Não tão frio quanto aquela noite, afinal, o sol escondido sob as nuvens ainda conseguia fazer transpassar uns raios marotos para aquecer a manhã no terraço do hospital. Fechei os olhos e deixei meu rosto absorver seu calor, enquanto o vento brincava com meus cabelos. Agora eles estavam curtos, não chegavam a altura dos ombros, mas ao menos haviam parado de cair.

Já havia se passado um ano desde a noite em que uma garota desamparada veio àquele terraço buscando um ponto final. Muitas coisas aconteceram desde então, incluindo uma cirurgia complicada e dolorosos meses de reabilitação. Mas durante todo esse tempo eu não deixei de pensar no rapaz misterioso que me fez mudar de ideia. Nem mesmo quando eu parei de falar sobre isso, de tanto me julgarem louca e ameaçarem aumentar as doses dos meus remédios. Nem mesmo quando uma velha enfermeira do hospital me mostrou uma ficha dos arquivos antigos onde lia-se, no topo, “Kamael Dantas Varella”.

Naquele dia, tive certeza de que meu coração parou de bater por alguns segundos. Ainda lembrava dos detalhes como se fosse ontem: No lado direito, havia uma foto de um rapaz muito bonito. Ele encarava a câmera com um meio sorriso debochado. Os olhos azuis estavam lá, sem as olheiras. As bochechas estavam mais carnudas, o semblante sadio. E um lindo cabelo castanho cobria a cabeça que eu conhecia como careca, penteado para várias direções diferentes. Era um bagunçado que conferia um ar charmoso. Era exatamente o rapaz de quem eu me lembrava, mas numa versão melhorada. Também me lembrava da frase que li a seguir, que ficou gravada na minha mente e tirou meu sono por muitas noites: "óbito: 1993".

A atenciosa enfermeira afirmou que o conhecia, que era um menino doce e cheio de energia, contagiava a todos com sua alegria. E, por isso, foi um enorme choque quando anunciaram seu suicídio. Ah, a título de curiosidade, ele fugiu no meio da noite e pulou da sacada.

Sempre fui uma pessoa cética em relação a tudo. Até hoje não entendo o que aconteceu, se foi um alucinação ou se eu realmente me apaixonei por um garoto que morreu há mais de uma década atrás. Mas eu sei que algo aconteceu.

— Ah, finalmente achei você! — Uma voz conhecida me despertou do meu transe.

Abri os olhos e encontrei a minha mãe, com um sorriso contrastando com o rosto sofrido de várias noites em claro.

— Venha me ajudar a terminar de guardar as suas coisas.

Sim, estou indo para casa. Os exames dizem que estou completamente livre das células mutantes que estavam destruindo meu cérebro e, fora alguns problemas de equilíbrio e dificuldades com o lado esquerdo do meu corpo, estou intacta.

— Vou daqui a pouco — respondi. — Estou só... Me despedindo.

Ela parou e me analisou por um instante. Eu podia entender a sua apreensão em me deixar.

— Tudo bem — A minha mãe cedeu, por fim. — Só não demore.

Esperei ela terminar de descer a escada e ouvir o clique das portas do elevador se fechando.

Fechei os olhos novamente.

— Obrigada.

Agradeci a todos e a ninguém em especial. Ao destino, a entidade superior que talvez governe todos nós, ao acaso, aos brócolis que eu tive que comer, aos meus médicos, enfermeiros, à moça da limpeza, a minha mãe, ao fantasma que, por algum motivo, escolheu me dar um ponto e vírgula e a mim mesma, que aceitei.

Amianto vem do grego “indestrutível", "imortal", "inextinguível". É um material que possui alta resistência mecânica e às temperaturas elevadas, bem como ao ataque de ácidos, álcalis ou bactérias, não sendo corroído. Também representa o antagonismo, é um elemento muito nocivo a saúde mas muito presente no cotidiano. Acredito que, no fundo, todos nós somos feitos de amianto. Temos nossos momentos de querer nos mostrar fortes e resistentes, assim como também podemos nos autodestruir. Mas, mesmo programados para cair, podemos inventar um fim diferente para nossas histórias. E eu sabia que o meu não estava nem um pouco próximo, pois depois de um ponto e vírgula, a história continua;


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ter lido até aqui!
Mesmo depois de ter lido e relido mil vezes, ainda posso ter deixado passar algum errinho, então se vocês encontrarem algo errado, algum trecho incoerente ou que pode ser melhorado, comentem aqui embaixo. Suas opiniões são importantes!
Podem dizer também suas partes preferidas, teorias, experiências pessoais, receitas de miojo, qualquer coisa haha
Ah, e peço desculpas se falei alguma besteira em relação às doenças deles. Tudo foi fruto de pesquisas, então não tive nenhuma experiência para me basear.
Enfim, obrigada novamente ♥ Se gostaram, deem uma passadinha lá no meu perfil que vão encontrar outras histórias parecidas. Fiquei um tempo off mas pretendo voltar ao maravilhoso mundo da escrita, então tem novidades chegando por aí.
Bj bj



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