Além do rio escrita por Wendy


Capítulo 9
Onça pintada


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, como já terminei de escrever a história no word, vou postar os capítulos com mais frequência aqui
Eh isto.
Boa leitura ♥



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Sexta-Feira

[Wesley]

Aqueles dias estavam sendo provavelmente os mais aterrorizantes de toda a história da minha vida. Até mais do que a vez em que me perdi na floresta quando tinha cinco anos e pensei que precisaria viver comendo moscas com os sapos para sempre.

Mas de uma coisa eu tinha certeza: estavam sendo muito pior para Cristina.

Ela não falou muito depois dos acontecimentos com o Curupira, embora eu também não conseguisse me expressar tão bem quanto desejava depois de tudo aquilo. Enquanto eu ainda estava com Cristina, ela, em sua cabana, abraçava o pequeno cachorro, pensativa. Provavelmente ficou assim até adormecer.

Quando fui para meu próprio lar, demorei a dormir e, no entanto, acordei cedo. Meu cérebro simplesmente não desligava. Ficava formulando hipóteses para tentar explicar tudo o que ocorrera, contudo, era simplesmente impossível. Logo também pensei no assassinato. Era impossível que o Saci tivesse feito algo como aquilo, e muito menos o Curupira.  E sobre o que aquele demônio ruivo estava falando quando nos alertou de um perigo que estava a caminho? Um frio percorreu meu estômago.

Horas se passaram enquanto eu mergulhava em pensamentos, até que olhei pela janela e percebi que Cristina acordara. Dessa vez usava um coque frouxo e tomava um pouco de ar puro. Enquanto se alongava na frente da varanda, o cão cavava buracos. Decidi fazer companhia.

A garota percebeu que eu estava me aproximando e virou-se para mim, porém, ambos permanecemos em silêncio. Ainda era um pouco difícil encontrar palavras, sendo que nossas mentes estavam muito longe.

—Tu parece cansada.

—Não dormi muito bem. –Deu de ombros. –E meu corpo está meio dolorido.

—Provavelmente pelo stress. –Concluí. Apesar de não aparentar, eu me preocupava com Cristina. Ela acabara de adquirir novas olheiras e não sorria como antes. Não que eu me importasse com o sorriso de Cris... Talvez esse pensamento tenha me feito corar levemente. Oras, ela ainda era só uma turista.  –Merecemos um dia de descanso, que tal?

Concordou.

—Acho que vou ler alguns livros da faculdade. Preciso de informações concretas na minha mente para não enlouquecer. Coisas reais, que todo mundo conhece e que já foram comprovadas cientificamente.

De repente, senti um soco muito leve em meu ombro.

—Índio nerd. –Cristina disse, se afastando. Foi bom saber que sua personalidade não havia sido alterada nem um pouco. –Vou dar uma volta pela Vila. Talvez alguém tenha mais informações sobre o que o Curupira estava tentando nos dizer.

Como pensei, Cris ainda estava com as palavras do ruivo na cabeça. Assim como eu.

—Posso acompanha-la, se quiser.

—Já sei o caminho, índio. Tenha um ótimo dia comendo livros.

Sorri e observei Cristina até que ela sumisse do meu ponto de vista.

[Cristina]

O dia não poderia ser mais normal e tranquilo na Vila. Pessoas trabalhavam, descansavam na calçada e crianças brincavam na rua. Nada de mais. Provavelmente nem sequer desconfiavam de tudo o que acontecera na floresta.

Comprei um iogurte e me sentei em um banco público para comê-lo. De lá, pude ver um grupo de idosos que conversavam casualmente na calçada, cada um com sua própria cadeira. Alguns precisavam colocar uma das mãos na frente do rosto para tampar o sol. Enquanto raspava o potinho de plástico do iogurte, pensei em conversar com os senhores e senhoras. Geralmente pessoas mais velhas têm muita ligação com lendas, superstições e coisas do tipo. Não custava nada tentar.

Joguei a embalagem e a colher de plástico numa lixeira próxima e já estava pronta para me levantar quando percebi que alguém se aproximava em um cavalo.

—Cristina! Que bom te ver.

—Muito bom te ver também, Lucia!

—Como vão as coisas? –Desceu do animal. –Já teve sucesso com a pesquisa?

—Bem... –Tentei não demonstrar insegurança, mas percebi que não funcionou, pois Lucia ficou séria e preocupada. Mesmo assim continuava bonita. –Está sendo um grande desafio. Wesley achou melhor descansarmos hoje.

—E ele está certo. Não adianta nada acumular stress. –Lembrou-se de algo e sorriu. –Tu vai para a festa amanhã, não vai?

—Não tenho certeza...

—Vamos, vai ser divertido! Não é todo dia que você terá essa mesma oportunidade.

Era realmente difícil dizer “não” para alguém como Lucia. Ela estava tão feliz e animada com a festa. Por fim, pensei por alguns instantes e acabei cedendo.

—Tudo bem, eu vou arranjar um jeito de ir.

—Perfeito! –Seus olhos brilharam. –Eu estava indo comprar o meu vestido agora. Quer ir também?

—Talvez eu vá com o meu vestido branco mesmo...

—Deixe de bobagem! Tu precisas tirar a cabeça do trabalho por algum tempo, esqueceu? E, além disso, que distração é melhor do que fazer compras?

—É. –Ri. Eu gostava muito de fazer compras. Acabei acumulando tanta coisa no meu quarto que precisei me livrar de mais da metade. -Acho que tu tem razão.

Lucia caminhou ao meu lado, segurando a rédea de seu cavalo Tornado e conversando até chegarmos a uma simples loja de roupas femininas. Tornado ficou nos esperando do lado de fora, enquanto comia a pequena grama da calçada.

A tarde com Lucia foi muito divertida. Escolhemos dezenas de vestidos, roupas, sapatos e acessórios diferentes e ficamos experimento cada um por várias horas seguidas. Em certo momento, já estávamos aos risos escolhendo as combinações mais bregas possíveis.

Encontrei óculos escuros que pareciam ser dos anos 60 e os coloquei, além de várias pulseiras brilhantes e brincos de argola chamativos que não combinavam em nada com as minhas roupas do momento. Lucia pegou um colete muito brega e brincos de pena enormes. Além, disso, usava uma tiara colorida com passarinhos de pano costurados. Estávamos tão engraçadas que precisei tirar uma foto para registrar o momento, com minha câmera que deveria ter a função de fotografar o Curupira ou o Saci.

Por fim, compramos um vestido cada. Eu também comprei um par de sapatos de salto alto que combinavam com a peça de roupa.

—Onde está meu cavalo?

Olhamos ao redor e não encontramos Tornado. Até que enfim o avistamos de longe, onde um senhor dormia tranquilamente encostado em uma árvore; E lá estava o animal, cheirando o chapéu de palha que cobria o rosto do homem. Tudo estaria sob controle, caso o bicho não confundisse aquilo com comida e começasse a mastigar o acessório.

—Oh, meu Deus...

Primeiro o senhor sacudiu uma de suas mãos, tentando espantar uma possível mosca. Mas não adiantou. Tornado continuou mastigando até que o velho finalmente despertasse de seu sono.

—Ei! –Gritou, virando-se. –O que é isso?!

Lucia saiu correndo em direção aos dois, pronta para pedir mil desculpas. Confesso que tentei controlar o riso, mas foi impossível e quando me dei conta já estava lacrimejando.

Quando Lucia voltou, envergonhada e vermelha feito um pimentão, perguntei:

—Isso já aconteceu antes?

—Não... –Disse enquanto acariciava o animal. Porém, eu sabia muito bem que aquilo era mentira esfarrapada e a encarei, desconfiada. Ela suspirou. –Sim. Ele já comeu o chapéu de cerimônias do padre.

Arregalei meus olhos com a informação. Desatei a rir novamente imaginando o ocorrido e Lucia também não conseguiu se segurar.

—Vejo você amanhã, Cris. –Lucia subiu no cavalo e, depois que me despedi, foi embora.

Diferentemente do que eu estava acostumada na cidade grande, o que me divertira não fora a ação de comprar em si, mas sim a companhia. Ela estava certa, agora minha mente relaxara muito mais. A loucura ainda não havia tomado conta e eu pretendia continuar assim por um bom tempo.

Andando na direção contrária que a de Lucia, senti o sol forte e brilhante queimando aos poucos minha pele, embora estivesse com protetor solar. Deveria ter comprado um daqueles chapéus enormes cheios de estampas coloridas que experimentei na loja. Todavia, de repente o sol já não parecia tão quente assim. Talvez porque alguém estivesse o tampando. Olhei para o lado e me surpreendi, porém, de um jeito bom.

—Que susto, Honorato! –Empurrei o rapaz, mas ele logo se aproximou novamente.

—Sabe que não foi minha intenção. –Senti que no fundo ele estava realmente preocupado.

—Estou brincando, bobo. –Ri, descontraindo e fazendo com que ele também risse.

—Passeando? –Perguntou ele.

—Eu estava comprando um vestido para a festa de amanhã. Tu vai?

—Infelizmente não. –Lamentou. –Já tenho compromisso.

Aquilo realmente me deixou um pouco “pra baixo”. Gostaria muito de contar com a presença dele. Fiquei instigada a perguntar sobre o motivo, mas logo liguei os pontos. Honorato era um cara bonito e gentil, era óbvio do que se tratava.

—Vai se encontrar com uma garota. –Só então percebi que pensei alto demais.

—Não. –Riu. –Eu não tenho nenhum relacionamento com alguma garota, se é o que está pensando.

Aquilo de certo modo me tranquilizou. Mas deveria?

Ouvi o apito de um sorveteiro que estava passando na rua. No mesmo instante me lembrei de que comera o iogurte há horas atrás e meu estômago já estava reclamando.

—Vamos comprar? –Perguntou.

—Acho uma ótima ideia.

Honorato pegou um picolé de milho verde e eu de brigadeiro. Caminhamos por algum tempo conversando sobre vários assuntos diferentes. Como de costume, atropelei o rapaz várias vezes enquanto falava, graças à quantidade de coisas que eu gostaria de contar, mas ele não se importou. Pelo contrário, parecia feliz em me ouvir falar e sorria constantemente.

Para cada sorriso, senti uma sensação estranha em minha barriga. Como da vez em que ouvi o assobio do Saci, mas pior. O que estava acontecendo? Eu não deveria me apegar tanto a ele. Jesus... Eu mal conhecia o rapaz! Mas... Tudo voltava à estaca zero quando ele sorria novamente.

A tarde estava acabando quando terminamos nosso passeio. Já estávamos quase perto das cabanas quando paramos para nos despedirmos. Honorato ficou a minha frente, mas, quando pensei que ele fosse se despedir, algo um tanto quanto inesperado aconteceu. Ele começou a rir.

—Eu perdi a piada? –Falei. Não tinha achado graça em nada.

—Cris... –Sua voz ficava adorável quando ria. –Tem chocolate no seu rosto.

Senti minhas bochechas esquentarem de vergonha, enquanto as apalpava, procurando os restos de sorvete. Mas a sujeira estava do lado errado. Otto segurou meu queixo com sua mão enquanto usava o polegar para limpar suavemente o chocolate perto de meus lábios. Enquanto isso, como não podia me mover, estudei seus olhos encantadores. O olhar do rapaz, que outrora estava em meus lábios, agora encarava o meu de volta.

Ficamos ali por um tempo, fitando um ao outro em silêncio e acredito que a sujeira já havia saído, pois Norato parou de limpar. Contudo, sua mão ainda segurava meu rosto delicadamente e podia jurar que ele estava se aproximando. Ou talvez fosse eu quem estava me aproximando. Ou os dois, era difícil distinguir.

Quando já estávamos próximos o bastante para que ele pudesse ouvir minhas aceleradas batidas de coração, o olhar de Otto desviou-se rapidamente e ele notou algo aparentemente importante. Afastou-se, de modo que fui um pouco para frente involuntariamente, mas logo me recompus.

—Eu preciso ir. –Disse apressado.

—Tudo bem. –Tentei disfarçar o desapontamento em minha voz enquanto mexia em meus cabelos.

—Tchau, Cris. Te vejo por aí.

Depois que ele se foi, voltei para o caminho de terra, onde não havia nada de diferente ou estranho. Meus pensamentos, no entanto, preferiram ficar com Otto, refletindo sobre o que acabara de acontecer. Provavelmente ele era muito tímido para romance.

—Coisa da qual tu não deveria estar procurando, não é, Cristina? –Falei comigo mesma. –Trouxa!

O sol estava se pondo e quando cheguei até a cabana a noite já tomava conta do local. O caminho quase não era iluminado, então ficava difícil andar por ali sem luz solar. Porém, já próxima de meu destino, ouvi o barulho de galhos se quebrando e folhas amassadas. Olhei ao redor o mais rápido que pude, mas estava realmente difícil enxergar. Imóvel, observei o mais atentamente que pude.

—Otto?

Ninguém respondeu. Decidi arriscar a sorte mais uma vez.

—Wesley?

Novamente não obtive resposta. Decidi dar um sorrateiro passo para trás, mas isso apenas aumentou minha sensação de estar sendo observada. Até que ouvi um novo barulho.

—Isso é...?

O rosnado quase inaudível se aproximava e foi então que consegui enxergar uma forma em meio à escuridão. Se bem que preferi não ter enxergado nada.

A onça pintada era quieta e ameaçadora. Eu nunca vira um felino tão grande em toda a minha vida, fora da TV. Sabia que não deveria correr, então apenas dei mais alguns passos para trás o mais lento que pude. Qualquer movimento brusco poderia alarmar o animal, que talvez só estivesse se sentindo ameaçado. Bem, pelo menos era isso o que eu pensava para tentar manter minha respiração controlada.

—Gatinho bonzinho. –Conversei. –Muito bonzinho. Vai me deixar ir embora, não é mesmo?

Tudo estava correndo bem, até que fiz a maior burrice de todas: tentei dar passos maiores e com mais rapidez. Na pressa, acabei tropeçando em meus próprios pés e caí de costas.

Doeu? Talvez. Não prestei atenção em detalhes mínimos nesse momento. Tudo o que conseguia pensar é que minha sentença de morte estava dada. Encolhi-me imediatamente, com os braços protegendo a cabeça. A merda foi feita e agora só bastava esperar o ataque do animal selvagem. “É isso aí, Cristina, parabéns. Prepare-se para ter o mesmo fim que aquele homem estraçalhado na Vila, sua idiota. Adeus mundo cruel”.

Por alguns segundos permaneci de olhos fechados, mas a dor não veio. Estaria eu já no pós-morte? No além? Melhor ainda, no céu? Mas nada aconteceu. E foi aí que decidi me levantar. E, para a minha surpresa, eu não estava morta. Entretanto, o que acontecera fora ainda mais impressionante.

A onça pintada, ao invés de avançar contra a minha pessoa, tinha coisas mais importantes para fazer do que me finalizar. O felino gigante lutava com uma cobra ainda mais monstruosa. Outro animal para colocar na lista “dos quais você deve correr imediatamente assim que encontrar um”. Wesley provavelmente acharia impressionante e ficaria assistindo a luta até o final, mas eu, Cristina Albuquerque, prezava por minha vida.

A última coisa que vi antes de correr foi a cobra enrolando-se completamente no mamífero, que não conseguiu escapar de seu abraço mortal. A onça tentava com todas as suas forças morder a cobra, no entanto, a mesma possuía uma couraça tão poderosa que nem mesmo as formidáveis e medonhas presas do felino eram capazes de penetra-la e ferir a “cobrinha”. O pobre animal, ao ser esmagado aos poucos, emitiu um grunhido mais de raiva do que de dor e eu pude ouvir o horripilante e perturbador som de seus ossos sendo quebrados.

Eu não gostaria de saber o que aconteceria depois. A Amazônia realmente era um lugar selvagem. E a vida animal, cheia de mistérios.

Quando finalmente cheguei, ofegante e cansada, fui direto para a cabana do índio, que estava rodeado por livros acadêmicos. Ele olhou espantado para mim e precisei recuperar meu fôlego antes de qualquer explicação.

—Tu prefere onças ou cobras?


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