Além do rio escrita por Wendy


Capítulo 13
Maldição


Notas iniciais do capítulo

O capítulo de hoje é um pouquinho pesado

Mais uma vez, os fãs de angst vão gostar



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Sábado de madrugada

[Geraldina]

Ainda estava um pouco cedo, pois muitos continuavam na festa junina, quando me despedi das senhoras com quem conversava. Eu mais ouvia do que falava, para prestar bem atenção nas fofocas da cidade, já que era a único assunto que elas conseguiam manter sem desvios.

As ruas estavam desertas. Quando me aproximei da velha casinha com tinta salmão desbotada e flores na janela que eu chamava de lar, lembrei-me da importantíssima decisão que havia feito mais cedo. Era agora ou nunca.

Decidida, mudei de caminho e desci uma rua que não estava no trajeto rotineiro. Era um local adorável, onde residiam várias pessoas com quem eu mantinha contato frequente. Em uma das casas, morava o padeiro que sempre me recebia com pães fresquinhos todas as manhãs. Ele tinha duas filhas em idade escolar que participaram da dança na festa junina. Elas eram uma graça!

Mais para frente, morava um casal recém-casado que cresceu na Vila. Ambos brigavam muito quando eram crianças e davam uma trabalheira danada para seus pais. Mas agora, com a graça de Deus, se aquietaram e descobriram que, no fundo, não conseguiam viver longe um do outro. Como a moça estava grávida, ficávamos todos na torcida para que tudo ocorresse bem e o bebê viesse logo, assim, ele poderia crescer ao lado do segundo filho dos vizinhos da casa ao lado, que tinham um quintal grande e bonito.

Porém, foi aproximadamente na metade da rua que encontrei o meu destino. Uma casa simples e pequena de paredes brancas. Algumas flores cresceram naturalmente perto do portão e precisavam de uma poda, caso contrário, poderiam atrapalhar a entrada daqui certo tempo. Respirei fundo enquanto encarava a casa silenciosa e sem sinais de vida, pensando se o que eu estava fazendo valeria a pena. Além do mais, já estava muito tarde e eu certamente iria atrapalhar. Contudo, eu também sabia que não há hora para o amor, senão o agora.

Depois de mais alguns segundos encarando a residência, apressei-me em bater palmas. No começo, não houve mudança. Mas persisti e bati minhas mãos com ainda mais força. De repente, abri um sorriso de satisfação quando notei que algumas luzes haviam sido acesas. Eu estava ansiosa para conversar.

—Geraldina? –Abrindo a porta de casa, meu amado estava com os olhos quase fechados, rosto amassado e cabelo bagunçado. Parecia ter dormido por horas e mesmo assim ainda não estava completamente descansado. –O que está fazendo aqui num horário como esse?

—Não é nada, só que... Eu preciso conversar com o senhor.

—E não pode ser amanhã de manhã? –Passou a mão pelo rosto e cabelos.

—Não. –Falei rapidamente. –Tem que ser agora.

—Tudo bem... –Vencido, ele abriu o portão e, apoiado ao mesmo, parou em frente a mim. –Fale.

—Eu sei que parece loucura e talvez tu fique surpreendido no começo, mas não é bobagem. Não mesmo; pode acreditar.

—Hum. –Ainda estava caindo de sono.

—Eu sinto do fundo do meu coração. E parece que está prestes a explodir.

—Sei... Então, diga-me. Do que se trata isso tudo?

—Bem, é que... Eu... Eu... –Fechei os olhos por um instante e logo os abri, junto com um sorriso esperançoso. –Eu te amo.

Por alguns segundos, o homem tentou processar as informações que chegavam até ele. Depois que finalmente criou alguma conexão com as palavras, precisou de um pouco mais de tempo para responder. Riu.

—Eu devo estar sonhando. Isso não pode ser realidade.

—Não, é real! Eu estou aqui de verdade.

Sabendo que ele não iria acreditar, lhe dei um beliscão.

—Ai! –Gritou. –Tudo bem, não precisa fazer isso. Você tem razão, não é um sonho.

—Ótimo. Agora o senhor sabe do que estou falando.

—Geraldina, vá para casa. Eu não sei que tipo de bebida lhe deram na festa, mas uma ótima noite de sono e algumas orações vão fazê-la melhorar. Acredite em mim.

—O quê? Não. –O sorriso que permanecia pleno em meus lábios agora havia sumido. –Não estou bêbada. E digo a verdade.

Ele suspirou pesadamente, agora mais acordado. Passou uma das mãos pelo queixo e estudou a situação. Logo percebeu que eu, de fato, não estava blefando.

—Geraldina, preste atenção em mim. A senhora ainda tem muita vida pela frente. Eu sei que se casou muitíssimo jovem e por causa de... de tudo o que aconteceu... Vem se sentindo incompleta de uns anos pra cá. Eu entendo muito bem. Mas a senhora deve ter consciência de que achará conforto nos braços de outra pessoa, não nos meus. Se quiser um conselho, recomendo que essa pessoa seja Jesus. Ele lhe guiará pelo caminho certo.

—Tu não entendes. –O tom de minha voz se elevava. –Esse não é o tipo de coisa que procuramos em Jesus.

—No entanto, a senhora deve busca-lo. E banir todas essas ideias que foram colocadas na sua cabeça por alguma entidade maligna e perversa. Não a deixe tomar conta de você, Geraldina! Você deve ser forte.

—Não, eu não quero saber desse papo. Tudo o que eu quero é poder ficar ao seu lado, meu amor! Não percebes que o que eu sinto por ti é verdadeiro?

—Geraldina, isso não será possível. Está se comportando feito uma criança birrenta.

—Mas... –Eu sentia o sufoco e desespero tomando conta de meu peito. –Mas você disse que eu era bonita. Sempre me elogiou, disse que eu era uma boa mulher.

—Pelo amor de Cristo, eram apenas comentários bondosos. A senhora sabe que nunca tive interesses por trás.

—Isso é bobagem! Duvido que não possa sair um pouco dos trilhos.

—Não acredito que está falando algo desse feitio. –Ficava cada vez mais vermelho com a adrenalina da conversa.  –É claro que eu não posso!

—É impossível que nunca tenha se sentido incompleto. Não pensa em se casar? Ter filhos? Precisa de alguém que traga felicidade para a sua vida e eu certamente poderia ser essa pessoa! Seríamos muito felizes juntos! Morrer solteirão não parece nada favorável se compararmos às outras alternativas.

—Misericórdia, mulher! Eu sou um homem de Deus, meu corpo e alma pertencem unicamente a Ele, e não a você.

Nesse momento, tudo o que eu sentia era apenas a raiva e ódio tomando posse e arrasando, feito um furacão, meu interior.

—Certo, o senhor é um padre. E daí? Grande coisa! É possível ser feliz e um homem da igreja ao mesmo tempo. E o senhor também iria oferecer ainda mais benção com a oferta de filhos e netos. Eles também poderiam fazer parte da igreja e...

—Pare com essa palhaçada! –Gritou. –O demônio fez posse do corpo da senhora e está testando todos os limites de nós dois!

—Não, tu está errado!

Antes que ele pudesse fazer algo, aproximei-me rapidamente e lhe beijei. Esse havia sido o momento mais feliz que tive em muitos anos. Porém, senti suas mãos me empurrarem para longe, deixando-me desamparada, repleta de fúria e tristeza. Será que ele não entendia o quanto eu o amava? E o quanto poderíamos ser felizes juntos se apenas deixasse algumas regras bobas de lado? Que mal poderia fazer?

—Está possuída por Satanás! –Limpou sua boca com nojo. - Saia da minha propriedade imediatamente!

—Não serei ofendida e muito menos expulsa por ti! Acabo de descobrir que tu não passas de um tolo! Como pude ser tão cega?

—Saia daqui em nome de Jesus! –Afastou-se fechando o portão e correndo para sua casa. –Amanhã providenciarei um exorcismo de imediato.

—Volte aqui, seu covarde! –Eu gritava tão alto e tão desesperadamente que era como se sentisse o sangue subindo para os meus olhos.

—Quer saber? –Disse de dentro da casa. –Não importa! Você deve ir para o inferno! Que o Diabo a venha buscar!

Depois que o padre voltou para dentro e apagou as luzes, continuei gritando o máximo que pude. Algumas palavras eram desconexas, outras xingamentos, mas na maioria dos casos eram apenas gritos de ódio e rancor. As lágrimas rolavam e eu as enxuguei.

Finalmente, desisti de tentar me comunicar com o padre imbecil e fui embora, gritando e berrando aos choros. De vez em quando, eu parava para me ajoelhar na rua e chorar por alguns minutos. Ainda bem que a cidade toda estava na festa, caso contrário, eles definitivamente iriam me ouvir. Depois que toda a tristeza já havia sido descontada e as lagrimas secaram, só sobrou o ódio. Aquele filho da puta maldito acabara de pegar meu coração e jogá-lo na fogueira, além de ter me tratado como um cachorro de rua. E era apenas nisso que eu conseguia pensar enquanto chutava sacos de lixo conforme caminhava, descontando todo o ódio acumulado. Em certo momento, um cão abandonado avançou e o espantei apenas com gritos de fúria.

Duas ruas pra baixo, avistei a casa de Lucia. Como a festa era consideravelmente próxima, ela preferiu ir a pé ao invés de levar aquele animal fedido e encardido que ela chamava de cavalo. E lá estava ele, parado feito uma estátua ridícula e mal feita. Até mesmo olhar para o bicho me deixava com raiva. Aposto que se eu fosse Lucia, o padre não pensaria duas vezes antes de me agarrar feito um animal selvagem. E, por incrível que pareça, esse pensamento me divertiu.

Comecei a rir descontroladamente com os pensamentos que se formavam em minha cabeça, imaginando o padre em situações bem desconfortáveis e polêmicas. Eu já não me sentia sob o controle de absolutamente nada. Mas, depois de alguns longos minutos o riso parou e como num passe de mágica fiquei séria novamente. Voltei a observar o cavalo. Um maldito e fedorento cavalo. Corri aos tropeços em sua direção, ignorando meus sapatos que saíam dos pés com a correria, e quando cheguei, comecei a descontar toda a minha raiva em socos no animal. Quanto mais gritava e batia, a raiva só aumentava e eu sentia ainda mais vontade de continuar. A adrenalina tomava conta de cada parte do meu corpo, implorando para que eu extravasasse até que tudo fosse embora. Porém, não foi nada rápido.

O cavalo pulava e se remexia, tentando fugir. Contudo, estava muito bem amarrado e não iria correr para lugar algum. Quando sem querer derrubei um vaso de flores que estava próximo dali, o cavalo relinchou e parei para observá-lo por um instante. Foi aí que meu corpo novamente falou muito mais alto do que qualquer outra coisa e me abaixei para pegar os cacos. Com uma expressão que não deveria estar nada bonita, encarei o animal com os olhos sedentos e, partindo de um grito de ódio, frustração e pensamentos do maldito padre que não saiam da minha imaginação, parti ferozmente para o animal, que parecia gritar a cada vez que eu fincava a ponta de um dos cacos do vaso em seu corpo. Seus olhos negros estavam enormes e surpresos.

Repeti os gestos pelo que pareceu serem horas, até me dar conta de que o animal estava abatido, deitado no chão; Porém, ainda amarrado. Como se um lapso de realidade houvesse batido em mim, fiquei surpresa e horrorizada com o que acabara de fazer. O que foi aquilo tudo?! Abaixei-me e comecei estudar seu cadáver, pensando se havia algo que ainda poderia ser feito. No entanto, quando ergui minhas mãos e as vi cobertas de sangue, fiquei fascinada com as cores e o brilho negro que emitiam quando sob a luz do luar. Sorri. A cor ficava muito bem em minha pele.

Sem esperar, logo passei o líquido vermelho pelos meus braços, cada vez mais fascinada com seu brilho e cor. Mas não era o bastante. Na verdade, era pouquíssimo. Rasgando cada vez mais o duro corpo do cavalo, fui encontrando mais e mais sangue para banhar-me, até que ri de satisfação quando me vi completamente coberta pelo vermelho enegrecido. Eu sabia que não era mais a mesma pessoa, mas talvez, apenas talvez, essa nova mulher fosse alguém melhor. Alguém muito mais poderosa.

Por alguns instantes, encarei a imensa e brilhante lua em meio ao céu estrelado. Aos poucos, graças a minha distração, a tristeza foi voltando para o seu devido lugar. Porém, eu tinha plena convicção de que já não era a mesma pessoa. E nunca voltaria a ser. Geraldina encontrou seu fim ali, naquele lugar.

—Tu queres minha alma? –Ajoelhei-me, encarando o além e gritando, embora minha voz já estivesse quase completamente rouca. –Pode buscar. Ela pertence a ti.

Eu não sabia com quem estava falando. Mas quem quer que fosse, poderia pegá-la. Minha alma já não me servia mais.

De repente, vi uma vela acesa perto dali, no parapeito alto de uma janela. Era como se o objeto luminoso houvesse aparecido do nada, como uma espécie de resposta. Logo aproximei-me, enfeitiçada pelas chamas que dançavam no escuro. Precisei olhar para cima quando cheguei ao local, pois o parapeito era um tanto alto. Mal abrira um sorriso para admirar a luz, quando algo inesperado ocorreu. Naquele brilho, vi todos os pecados que havia cometido em relação ao padre, alinhados com o episódio do cavalo. Imagens cruéis e difíceis de ver. E foi então que a vela despencou do alto. Eu não havia sentido nenhuma ventania ou movimento de terceiros no local, mas mesmo assim o objeto caiu. Despencou sem aviso prévio, queimando imediatamente os meus cabelos inundados de sangue.

Embora meus gritos não diminuíssem a dor agoniante e o desespero, continuei os emanando. Corri o mais rápido que pude, mas não sabia para onde. Era como seu eu soubesse exatamente para que direção devesse ir, mesmo sem enxergar nada além de uma grande macha em movimento, que variava em preto, vermelho, amarelo e laranja. Enquanto corria, sentia calor, dores dilacerantes por todo o corpo e a sensação de estar mudando de tamanho e velocidade de maneira absurdamente rápida. Enquanto tudo acontecia, uma risada caótica e estridente como um trovão parecia soar de todas as direções possíveis, como se estivesse se divertindo.

Quando a dor e o sofrimento finalmente sessaram, depois de muito tempo, pensei que já estava na vida pós-morte. Olhei ao redor, exausta e percebi que aquele local me era bem familiar: a floresta perto da Vila.

Levantei-me e fui correndo para o rio, que estava muito próximo. No entanto, quando me olhei através dele já não era a mesma pessoa. Nem sequer uma pessoa. Aquilo em que eu havia, de alguma forma, me transformado, era uma coisa assustadora e indefinida. Um pouco parecida com o cavalo de Lucia, mas ao mesmo tempo carregava o fogo que me forçava a lembrar do infeliz e agoniante momento em que observei a vela luminosa.

O que vi no reflexo do rio lembrava-me muito de um cavalo, mas apenas o corpo. Pois o animal possuía também as chamas do pecado queimando eternamente no lugar de sua cabeça.


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Notas finais do capítulo

Que sábado longo, não?