A Peça Perfeita escrita por Kurai


Capítulo 2
Capítulo 2 - Sorte


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro segundo capítulo foram: privação e singularismo. Boa leitura!



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O afã com que Miyuki a aceitou dizia muito sobre ela, ao menos aos olhos da relojoeira. Provavelmente fora rejeitada ou reprimida, e essa privação de afeto a deixava ansiosa por qualquer gentileza – coisa que Ayori ofereceu rapidamente.

Era mais uma prova do quanto as pessoas podiam ser imbecis. Ayori viu imediatamente o que a astróloga talvez fosse – e muito provavelmente era, confiava em sua própria habilidade de ver o valor de uma peça. Melhor do que qualquer outra, melhor até do que as multifunções, Miyuki talvez fosse o que Ayori uma vez procurara com tanto afinco, inspirada a criar sua maior obra-prima: a peça perfeita. Quem quer que a tenha rejeitado só poderia ser um completo boçal.

A relojoeira aprendera com seu erro da última vez. Sua última peça perfeita, a que tentara usar à força, se quebrara sob pressão. Não faria a mesma coisa com essa. Seria... Gentil.

Começou a ir às aulas. Conversar com os outros. Conversar com ela. Ayori era direta e podia ser intimidadora, mas com Miyuki, era divertida também, e amável, atenciosa. Em algumas semanas, sabia que tinha conquistado-a, ao menos sua confiança, e a chamou para sair. Ela aceitou.

Não saíram da escola. Foram ao próprio refeitório, em dia de feriado. O único parente vivo de Ayori morava na Inglaterra, e Miyuki parecia relutante em voltar para casa – onde teria que rever a mãe – então ambas ficaram pela escola no recesso.

— Na Babilônia, a balança era sagrada pro deus do Sol, o patrono da verdade e da justiça. Lei e igualdade e essas coisas de justiça, tudo singularismo de Libra. Em Roma são a balança de Astraea, a deusa da just--tiç..... — Miyuki gaguejou até parar de falar, quando Ayori, que até então encarava atenciosamente seu rosto, se inclinou em sua direção. Erguendo a mão, espanou devagar seu busto, limpando as migalhas do sanduíche que a astróloga devorara na conversa.

— Você ficou toda suja, darling. — suas mãos delicadas eram precisas, não tocou nada que não precisasse, mas ainda assim Miyuki corou. Ela riu da reação, recolhendo a mão. — Continue.

Miyuki voltou a falar, mas embora Ayori parecesse escutar, seus olhos atentos observavam cada trejeito seu. Os movimentos das mãos ao falar, a inclinação graciosa de seu corpo ao chegar mais perto, o rosto adoravelmente vermelho, tão delicado e perfeito.

Tinha certeza de que acertara. Embora nunca tivesse tocado no assunto, sabia o que Miyuki realmente era. Uma bailarina. A peça mais importante de sua criação abandonada na Inglaterra, dentro da torre do relógio, para sempre incompleta desde que Rachel se quebrara. Meia hora no computador a confirmou. Miyuki não só era uma bailarina, como fora um dia uma das melhores.

Ayori a queria, e depois daquela reação no refeitório, sabia que poderia conseguir. Chamou-a para sair outra vez, e outra. Conversavam sobre coisas triviais, hobbies, gostos, histórias. Miyuki falava pelas duas, principalmente se puxasse o assunto de estrelas. Os próprios olhos da garota pareciam estrelas enquanto dissertava, Ayori satisfeita em assistir embevecida aos movimentos graciosos que pareciam ter sido programados por corda.

Por fim, a relojoeira decidiu que era a hora certa para avançar um pouco.

As duas matavam aula no telhado. Miyuki seguia-a para onde pedisse ultimamente, exceto na hora após a aula, sabe-se lá por quê. Ayori tinha um troço entre os dedos, um monte de peças aleatórias, que montava e desmontava, cada hora num formato diferente. Miyuki assistiu àquele ritual por alguns minutos antes da relojoeira enfim quebrar o silêncio.

— Eu joguei seu nome na internet.

— Jogou..?

— Queria te conhecer melhor. Achei alguns artigos. Dizem que você dançava. Balé. Muito bem, actually.

A reação de Miyuki não foi muito boa. Ela encarou as próprias mãos entristecida, como se mergulhada em pensamentos distantes.

— Eu dançava. Fui bailarina por muitos anos.

— O que aconteceu? Faz um bom tempo desde a última crítica que achei.

— Eu... Pressão. Eu não... Era feliz com aquilo. Minha mãe colocou todos os seus sonhos em mim, e eu acabei... Estressada demais.

— Ah, não. Dança não deveria ser algo a se fazer obrigada. — ela soltou o troço, apanhando a mão de Miyuki com uma das suas, encarando-a nos olhos. — Eu sou uma grande fã, na verdade. De balé, principalmente. Os movimentos de bailarinas são como meus relógios, sincronizados, graciosos, nunca errando um compasso. Me deixa... Realmente admirada assistir humanos fazendo isso naturalmente, sem um mecanismo que os comande, e atingir a mesma perfeição de meus clockworks. — ela girou a palma contra a dela, erguendo ambas as mãos de forma a entrelaçar os dedos aos dela. — Queria que tivesse me contado. É mais um motivo pra adicionar à lista.

— Eu não... Achei que fosse importante. Não sabia que gostava. Que lista?

— Lista, honey, a minha lista. Minha lista de motivos pelos quais me sinto tão inexplicavelmente atraída a tudo o que você é.

Miyuki corou outra vez, baixando o olhar à mão das duas. Ayori conseguia ouvir o coração dela dali. Seguia um agradável ritmo acelerado. Podia ter pressionado, mas aguardou. Aguardou mais um pouco. E então...

— Gostaria de assistir?

Ayori não demorou a remontar as peças que tinha de volta a uma caixa de música. Deu corda, e com as primeiras notas, se recostou pra assistir, ali mesmo sobre o telhado.

A princípio, Miyuki deu passos hesitantes e tímidos, seguindo a música enquanto se acostumava. Então, a memória muscular tomou conta, e Ayori julgou ter ganhado na loteria. Seus passos eram tudo o que sua postura corporal prometia, e a relojoeira observara arrebatada todos os saltos e piruetas. Mas mal dera meio minuto de apresentação e Miyuki parou de súbito, levando as mãos ao rosto, escondendo-se. Um soluço contido denunciou que ela prendia o choro.

Ayori se levantou, o som da caixinha de música ainda soando, e a abraçou com força, dizendo com o gesto que não precisava mais dançar. Quando sentiu que ela parava de tremer, baixou as mãos que cobriam seu rosto, afastando os cabelos que o vento chicoteava em seu rosto, e lhe tomou os lábios.


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Notas finais do capítulo

O primeiro diálogo aqui foi retirado da história da Miyuki. O resto eu tomei liberdade de criar.
Acho que vou postar a história da Rachel, a pessoa que eu citei como a 'peça perfeita quebrada', aqui também.



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