A Árvore da Montanha escrita por Kurai


Capítulo 2
Capítulo 2 - Muramasa


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro primeiro capítulo foram: privação e singularismo. Boa leitura!



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“A madeira entende você, Muramasa. Se for amigo dela, vai saber o que quer, o que sente, o que precisa.”

As palavras do pai do garotinho soavam claras em sua memória enquanto encarava o pedaço de tronco em suas mãos. Entender. Era disso que precisava agora... Alguém que o entendesse.

Muramasa tinha tudo pra ser um centro das atenções imediato. Nem um pouco parecido com o pai, tinha a pele negra lustrosa, os cabelos brancos, e a estrutura física grande demais para uma criança de quatro anos. Puxara completamente a aparência da mãe, até seus olhos esverdeados, como se tivesse nascido apenas dela, e agora que começava a crescer, estava cada vez mais parecido. Mas Muramasa sempre passava despercebido apesar disso.

O garoto era quieto, e gostava de observar o mundo ao seu redor em silêncio. Sua presença grande, porém silenciosa, o fazia se misturar à paisagem, como se fosse uma sombra. Era a criança que menos dava trabalho na sala, e a que quase nenhum coleguinha sabia o nome.

Era um observador do mundo, e como tal, vira muito. Mais de uma vez, quis compartilhar o que via sem sucesso. Demorava a juntar coragem para falar, e quando o fazia, ninguém o via ou ouvia, como se fosse um fantasma. Ninguém compreendia suas palavras, falando por cima de sua voz baixa, ignorando sua existência.

Queria ser ouvido. Queria ser entendido.

“A madeira entende você, melhor que qualquer pessoa. Melhor que sua mãe ingrata que o deixou pra trás. Melhor do que clientes estúpidos que nunca sabem o que querem. Melhor do que tanta gente desnecessária no mundo.”

Okazaki Masamune era carpinteiro por profissão. Sua família tinha uma longa linhagem de ferreiros, mas seu irmão mais velho herdara a loja, e ele preferiu ter a própria loja ao invés de trabalhar sob o irmão que detestava. Sem querer competir com o irmão mais talentoso, aprendeu carpintaria e marcenaria, e se tornou ao invés disso um associado, lidando com a madeira ao invés do ferro. E deu surpreendentemente certo. O talento de Okazaki com a madeira era infinitamente superior ao com o ferro, e poucos carpinteiros vivos podiam superá-lo naquele tempo.

Muramasa tinha um tronco numa das mãos, escondido na oficina do pai, e um canivete das ferramentas dele na outra. Encarava a madeira com um olhar tão intenso que poderia secá-la, projetando sua determinação nela, seu desejo. ‘Quero que me entenda. Quero alguém que me ouça.’

Levou quase três horas pra tornar aquilo uma peça de madeira mais ou menos retangular, e outra hora pra descobrir como se esculpiam formas nela. Quando terminou, tinha muitos calos, três cortes sangrentos nas mãos (o mais fundo dos quais se tornaria sua primeira cicatriz), e um pedaço tosco de madeira com um rosto vago que em nada se parecia humano. Ergueu a coisa, cético, encarando aquele formato de um singularismo que lembrava uma aberração. Então experimentou dizer alguma coisa. Qualquer coisa. Contou sobre o esquilo que correu por seu caminho quando voltava da escola.

A madeira o ouviu. Ele quase podia enxergar os traços toscos do rosto mostrando interesse.

Foi a primeira vez que sorriu em um bom tempo, levantando-se depressa e correndo atrás do pai. O encontrou na sala fumando, e então o mostrou sua obra, e como ela o entendia, e como a batizara de ‘Frank’ e seria seu primeiro amigo.

O pai socou-lhe o rosto e ele caiu, quase quebrando o ‘amigo’ no processo.

Apagando o cigarro contra seu braço, o pai lhe bateu mais algumas vezes, antes de explicar, aos gritos, que aquilo era lixo, e que se ele queria usar as ferramentas dele pra alguma coisa, era obrigado a fazer no mínimo algo bem feito. Depois da surra, perguntou se queria aprender.

Muramasa, machucado e dolorido, respondeu sim.

—-------

— ...A garota, que tem apenas treze anos, respondeu que não sentiu medo ao escalar o maior prédio do Japão, que gosta do que faz, e não é pela fama.

— Ficam todos parecendo formigas lá do alto! Me sinto mais confiante. Sempre tive irmãos mais altos que eu, e agora, até eles parecem peq... — a voz da garotinha na tela foi subitamente interrompida quando seu pai desligou a televisão.

— Que está fazendo? Você está treinando, Muramasa. Não devia estar com todas essas... Distrações.

— Sim, senhor.

Com catorze anos, Muramasa já era mais alto que o pai, e a voz bem mais grave. Em algum momento durante esses dez anos, Okazaki descobriu que as cicatrizes o diferenciavam da mulher que o abandonara, e as surras pioraram. Cada vez que Muramasa cometia um erro (e às vezes quando não cometia também), ganhava cicatrizes novas na pele negra, somadas às que seu treinamento como carpinteiro já lhe dava naturalmente nas mãos e braços.

— Está me respondendo? Seu ingrato! Eu, que te dei comida e casa, que não te larguei como sua mãe fez comigo, até te ensinei um ofício por mais porco que você seja nele!

Ele não estava. Muramasa nunca reclamara, uma vez sequer, e desde os seis conseguia até não chorar quando apanhava, sofrendo tudo em silêncio. Achava que ele tinha razão. O pai era o melhor carpinteiro, e se o batia, era porque estava fazendo errado e podia melhorar. Era um método de treinamento brutal, mas eficaz, e graças a isso, ele viu ao longo dos anos suas criações ficarem gradualmente mais complexas e belas. Desde os onze, ajudava oficialmente na loja, pegando trabalhos menores quando o pai estava ocupado.

A cada nova surra, seu trabalho melhorava. Mas a cada nova surra, tornava-se mais calado, sofrendo a privação de sua iniciativa, perdendo a habilidade de dizer ‘não’ ou se impor. Suas mãos se tornaram tão grandes e fortes que, se quisesse, podia partir o pescoço do pai em segundos, mas a ideia jamais lhe ocorreria. A única coisa com a qual se abria de verdade era Frank, que escondera em sua bolsa por todos esses anos.

Mas essa passividade estava fadada a lhe trazer problemas, mais cedo ou mais tarde.


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Notas finais do capítulo

A mãe de Muramasa era egípcia. Foi uma escrava vendida de forma ilegal a Okazaki como uma 'esposa de encomenda'. Quando Muramasa nem sabia andar ainda, ela fugiu e nunca mais foi vista, e Okazaki guarda rancor dela e de Muramasa que puxou todos seus traços. Ela fugiu porque o marido batia nela.
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