Lately escrita por Ju


Capítulo 1
Capítulo 1




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  O despertador tocou as cinco e meia da manhã em ponto, como de costume. Artur coçou os olhos e por conta do hábito, se levantou da cama com calma, sem nenhum esforço ou suspiros derrotados. Conseguira dormir cedo na noite passada. A mulher ao seu lado sentiu seu braço ser afastado com cuidado e sem abrir os olhos, sussurrou um "Bom trabalho" quase inaudível. 
Ainda vestindo seu sobretudo, se dirigiu a bancada da cozinha onde já se encontrava um simples sanduíche de presunto e queijo cuidadosamente embrulhado, do jeito que sempre gostou. Ao lado, havia uma cesta com a grande variedade de frutas. Abriu a geladeira analisando as opções de suco, ovos e uma breve olhada nos diversos produtos congelados ali.
Sempre ria internamente, não deixava de ser surpreendente como as coisas mudaram em sua casa.
  Desde que se casara com Rosa, sua geladeira nunca mais ficara vazia. Agora passava a comer muito bem e não podia negar que se sentia muito bem também. Seus pratos favoritos eram preparados com muito capricho e postos na mesa a noite, seus lanches para matar a fome dentro da delegacia já estavam feitos quando acordasse e simplesmente sentia que tinha uma das melhores companhias que podia ter.
  Rapidamente despejou o suco do copo, pegou as chaves e partiu para o seu conturbado trabalho. Sua rotina agora era pegar um táxi até a delegacia. Já havia muito tempo que não tinha notícia alguma de Bete e já perdera as esperanças de que ela voltasse.
  Artur suspirou, como sempre fazia quando as lembranças da amiga vinham atormentá-lo.
  Ele entrou no carro, encostando sua cabeça no vidro da janela. Deu um "bom dia", mas não foi correspondido.
  Assim que olhou para a frente, percebeu que o motorista o encarava pelo retrovisor. Foram necessários alguns momentos de silêncio até finalmente ligar o carro e partir.
  — Eu não entendo como vocês conseguem dormir a noite, sabendo que ainda há um assassino solto por aí. – O homem disse sem olhar para Artur.
  Muitas pessoas não aceitavam que David nunca houvera sido punido ou sequer localizado. O detetive era capaz de compreendê-las e, de certa forma, se sentia culpado por isso também.
  — Eles tiraram o caso de mim quando tentei convencê-los a continuar as buscas. – Terminou a frase com um suspiro involuntário.
  Ele também queria justiça.
  — Tudo bem, cachorrinho. Continue seguindo as regras. – O homem disse em um tom sarcástico, o qual Artur nunca se habituava.
  Ele lançou um olhar confuso para o motorista, assim que parou em frente a delegacia.
  — Não sou um cachorro. – Falou antes de descer.
  Por algum motivo, ele parou antes de passar pela porta de entrada, mas logo deu os passos necessários para chegar à recepção.
  Assim que entrou no elevador sentiu o celular vibrar no seu bolso, apertou o botão e decidiu ver do que a mensagem se tratava, já prevendo quem seria o remetente. Era Rosa. 
"Quando chegar, checa se a o Jorge mexeu na encanação do lado de fora? Ia falar com ele mas a dona Natália me implorou pra ajudar a procurar o gato dela. Estrogonofe para o jantar hoje, você anda merecendo. Te amo"
  Artur se permitiu dar um sorriso de canto com a frase que dizia que ele merecia seu prato favorito. Veio a se tornar um marido mais presente nos últimos dias, chegando mais cedo, participando dos almoços de domingos com ela e sua família. Realmente ele mesmo se surpreendia. 
  Assim que as portas se abriram, saiu ainda distraído com o celular, mas teve sua concentração interrompida quando um aviãozinho de papel bateu no seu ombro. Artur se virou para o responsável – ou os responsáveis – por isso.
  — Vocês não vão deixar de ser crianças não? – Perguntou se dirigindo a sua sala.
  Seus colegas em suas respectivas mesas jogavam bolas de papel um no outro, rindo. Artur simplesmente entrou em sua sala, ignorando as brincadeiras infantis às suas costas. Ajeitou a mesa, retirando a papelada acumulado e ligando o computador. Jogou seu casaco no sofá e antes que fechasse a porta completamente, ela foi calmamente empurrada. 
  — Artur! Recebeu meu email sobre o julgamento daquele marido...? 
  — Sim, recebi. A audiência será dia 22. Conversei com a Vera, ela que será a advogada da mulher...
  — Ótimo, ótimo! E vá até a sala de Aristes.
  — Por quê?
  — Mudanças de planos. Vou te suspender da ativa e você vai ter um parceiro novo. Ah, e tire esse cigarro da orelha!
  Ele se sentiu estranho com o que acabara de ouvir. Havia pouco mais de um mês que Bete desaparecera, e nunca pensou na possibilidade de trabalhar com outra pessoa desde então.
  Assim que o detetive saiu da sala, enquanto passava pelo corredor, foi surpreendido pela voz de Aristes, vinda de seu escritório.
  — Artur, venha aqui. Preciso falar com você. 
  Ele se aproximou. A porta estava encostada, então bateu três vezes de leve, e entrou. O delegado estava sentado em sua mesa, como de costume e ao perceber Artur ali, se levantou e o encarou.
  — Tenho boas notícias, detetive. – Ele fez uma pausa, mas ao perceber que não teria resposta, continuou: — Você tem um novo parceiro.
  Artur permaneceu em silêncio. Olhava para o chão, se sentindo incomodado por relembrar sua amiga e parceira, Bete. Aristes, percebendo isso, foi até ele, colocando suas mãos sobre os ombros do mesmo.
  — Eu sei que você sente falta dela. Todos nós sentimos. Ela era uma ótima detetive, era amiga de todos. – Ele tentava consolá-lo, mas não obteve resposta novamente.
  O delegado foi até o armário onde guardava algumas evidências que haviam voltado da análise, para serem entregues aos detetives respectivos a cada caso. Artur pôde ouvi-lo mexer em algumas coisas, até que um vaso foi colocado em cima da mesa entre os dois.
 Rosa-louca.
  O detetive conhecia aquilo muito bem, e sabia do que se tratava.
  O bilhete escrito "sinto muito" balançava por conta da janela aberta, que deixava entrar a corrente de ar gélida da manhã. Apenas uma coisa veio a sua cabeça: Aquele era o mais próximo que ele estaria de Bete.
  — Faz quase um mês. Eles analisaram as cinzas na terra e...
  — Posso ficar com ele? – Artur finalmente se pronunciou, interrompendo a tentativa falha de Aristes se mostrar preocupado.
  — Tem certeza?
  — Sim. 
  — Tudo bem. Eu não deveria, mas... Tudo bem. – Suspirou antes de continuar.  — Voltando ao assunto, seu novo parceiro...
  Ele parecia ler alguns papéis enquanto falava. 
  — Detetive Gorzoni... Bruno. Foi transferido, parece que... Ele pediu para trabalhar aqui. Mais especificamente, com você. 
  Ele lançou um olhar desconfiado para Artur, que permanecia cabisbaixo.
  — Onde ele está?
  Logo após sua pergunta, um homem adentrou a sala apressadamente, como se estivesse atrasado.
  Cabelos pretos, barba rala, ombros largos e aparência intimidadora, mesmo depois de lançar um sorriso convidativo que ressaltava seus olhos cor-de-mel, ofuscados pelos óculos. Definitivamente, não era o que Artur esperava de seu "novo parceiro".
  — Ah, detetive. Acredito que ainda não se conheçam. 
  Aristes forçou uma apresentação dos dois, que apertaram as mãos.
  — Evitem problemas, certo? Nada de reviver casos passados. – O delegado encarou Artur, como se estivesse se referindo à ele.
  O caso dos crimes em série. David e William.
Nenhum dos dois disse uma palavra, apesar de apresentarem certo desconforto com aquilo. Logo saíram juntos, seguindo o corredor até a sala de Artur.
  — Você não vai mesmo deixar esse caso como está, vai? – Bruno não parecia disposto a seguir as instruções entregues a eles alguns segundos atrás.
  — Não tenho escolha.
  Ele andava com o vaso em mãos, e respondeu sem sequer olhar para o parceiro.
  — Você precisa. Tem ideia do quanto foi difícil pra mim chegar aqui? Você vai me ajudar.
  Artur começou a se irritar, tudo que ele queria era esquecer aquilo por um momento. Os restos de sua melhor amiga estavam em suas mãos e sua sede por justiça começou a se perder em meio a tristeza. 
  — Olha só... – Fechou a porta atrás de si, colocando cuidadosamente o vaso em sua mesa. — Eu não vou perder meu emprego por causa de um obcecado.
  Os dois se encararam por um momento, o olhar de Bruno foi tomado pela raiva. Ele levantou seu punho cerrado em direção ao rosto do detetive, mas suspirou, fechando os olhos por alguns segundos antes de continuar, para se certificar de que não haveria uma discussão com o novo parceiro, que inclusive, conheceu há poucos minutos atrás.
  — Eu vou fazer isso. Com ou sem você.
  — Por que você quer esse caso? Ele não comete nenhum crime há mais de um ano.
  — E se ele estiver planejando algo? Esse é o filho da puta mais inteligente que eu conheço, Artur. Ninguém sequer chegou perto de pegá-lo, mesmo depois de tudo.
  — Por que ele esperaria tanto tempo para voltar?
  — A paciência é uma das piores características que um inimigo pode ter, detetive.
O rádio-comunicador tocou, interrompendo o diálogo.
— O celular rastreado foi abandonado. Há um corpo ao lado, um canivete no pescoço aparentemente causou a morte. Venham até o posto no segundo cruzamento da avenida.
  Os dois se entreolharam, logo se levantando rapidamente. Entraram na viatura que saiu em alta velocidade.

  Um céu cinzento cobria uma rodovia abandonada. Um único carro preto se encontrava com um homem em pé colocando gasolina. Não havia ninguém para fazer esse trabalho, como de costume. Apenas o próprio motorista e uma mulher na loja de conveniência, distraída em seu celular com rádio e TV ligados, parecendo alheia à possibilidade de alguém ali abastecer e sair sem pagar.
  Em questão de segundos, uma van branca virou a esquina e estacionou derrapando, ainda no fim da calçada. Um homem alto e calvo dirigia o veículo e saiu gritando como se estivesse no meio de uma briga.
Do lado esquerdo, uma porta também bateu e uma mulher de cabelos levemente ondulados, loiros, com mechas azuis, jaqueta e calça de couro preta saiu.
  — Droga! Droga! – O homem fechou a porta com força jogando no chão uma mochila preta e um celular pequeno que se quebrou no impacto.
  — Você sabia disso né? – Esbravejou a mulher, ela não teria mais de trinta anos, a pele era obviamente jovial, sem denúncia de maquiagem, apenas um rímel borrado. 
  — Vá para o inferno! – O homem interrompeu as reclamações com as duas mãos na cabeça. 
  A briga não assustou o homem que abastecia o carro, apenas o interessou para analisar ambos. Uma das primeiras coisas que percebeu em meio aos gritos foi as rodas muchas na traseira, os arranhões e ausência de faróis na van.
  — Como é? O babaca do Bill que entregou a gente? Não tive nada a ver! E por sua causa a polícia está na nossa cola! Cadê o celular? Cadê? Por que não jogou essa merda fora? – O homem se dirigiu a moça com fúria segurando os braços da mesma.
  — Me larga! – Ela tentava se desvencilhar violentamente, até dar uma joelhada em seu estômago e rapidamente tirar um canivete de trás calça. Sem hesitar, o enfiou com toda a força no pescoço do homem. Ela segurava sua cabeça enquanto pressionava o objeto, até ele parar de resistir, e aos poucos cair sem vida no chão.
  O motorista ao lado não resistiu a continuar sua análise e perceber que a mulher nunca realmente tinha enfiado um canivete no pescoço de alguém, quando ao empurrar o corpo do homem simplesmente deixou-o preso ali.
  Pelo silêncio da rodovia já podia se escutar sirenes de longe, com certeza ainda estavam na estrada, porém deveria ser mais de uma devido a intensidade do som. Já com o carro abastecido, o homem teve que pensar rápido, não era a primeira vez que teve que fazer escolhas precipitadas, mas também era algo raro. Sua vida sempre costumou ser formada por planejamentos. Ele acabou por tomar a decisão que sua consciência, na verdade, estava condenando. 
  — Ei! Entra no carro. – Ele disse sem realmente olhar para a mulher que tremia encarando o corpo do homem que acabara de assassinar. Seu parceiro e amante.
  Ela se surpreendeu, pensou em só taxa-lo como louco por achar que entraria no carro com um total desconhecido, mas o suposto barulho da polícia a pressionou a se desesperar. Pensou em falar algo mas o homem que fez o convite já havia entrado no carro. Em passos lentos, porém largos se apressou e ainda hesitante entrou no carro, olhou para o motorista ao seu lado que apenas acelerou e deixou o posto. A mulher da loja de conveniências, de costas para o que acontecia lá fora, continuou lendo, vendo algo em seu celular enquanto comia rosquinhas sem perceber nada do ocorrido.
  Estavam a cerca de dez minutos na estrada, quando uma viatura parou o carro onde os dois se encontravam. O coração da moça se acelerou, ela parecia eufórica e preocupada. Já ele, estava tranquilo, e sem expressar qualquer preocupação, abaixou o vidro para dar de cara com o policial que segurava um bloquinho.
  — O senhor está acima do limite de velocidade, sabia? – Ele advertiu sem realmente olhar para ambos.
  — Me desculpe, policial. Só estou cansado e quero chegar em casa, a pressa deve ter me feito cometer esse erro. 
  — Habilitação, por favor.
 Ao ter suas desculpas totalmente ignoradas, pegou a carteira do bolso, entregando a habilitação.
  — Parece tudo certo, senhor... David. – Disse após uma rápida análise do documento.
  Ele anotou a placa do veículo, e acabou por liberá-los.
  Não foi necessário muito mais de meia-hora para que David estivesse guardando o carro em sua garagem. Ele saiu, sem dizer uma palavra, se dirigindo para dentro da casa. A mulher logo o acompanhou, mesmo relutante e cheia de dúvidas sobre o que realmente aconteceria a partir dali.
  Ela entrou na residência. A primeira coisa que percebeu, foi um pequeno jardim. Havia uma flor específica que lhe chamou atenção, por um motivo que de certa forma lhe era estranho.
Rosa-louca.
  Passando pela porta de entrada, havia uma outra porta entre-aberta, ao lado da cozinha, onde David se encontrava preparando café.
  Ela entrou. Haviam vários recortes de jornais, papéis diversos espalhados e no centro da mesa, um livro preto, com o título dourado.
"Como se tornam adultos."
  Olhando mais atenciosamente, percebeu que os recortes se tratavam de reportagens e notícias sobre o caso dos assassinatos em série dos pais das crianças. Haviam vários documentos sobre o julgamento de William, algumas anotações, mas o que lhe chamou atenção foi uma bolsa preta deixada no chão, no canto da sala, onde, junto a ela, uma máscara de cartolina com um retrato falado também estava.
  As peças se juntavam em sua mente, as descrições do assassino, a bolsa preta, a máscara.
  Não se tratava de um David, se tratava do David. O assassino mais procurado ultimamente, que saiu impune de todos os crimes que cometera, que ninguém sabia sequer de quem se tratava e que, agora, se encontrava no cômodo ao lado fazendo café.
  O fogão foi aceso para aquecer uma panela com água. David remexia na gaveta a procura de uma colher, logo que a achou, se virou para trás olhando a visita que trouxera. Ela estava de costas andando lentamente e encarando a grande quantidade de fotos, mapas, recortes de jornais grudados na parede.
Ele se sentiu desconfortável com a possibilidade de ter que responder perguntas sobre as óbvias suposições, mas ainda em silêncio se concentrou em terminar de preparar o café. Assim que terminou ele despejou o líquido quente em duas xícaras, olhando de canto, percebeu que ela o encarava do lado direito da bancada.
  Sem perguntar se a quantidade despejada era o suficiente, empurrou uma das xícaras em sua direção e puxou um banco para se sentar.
  Percebeu que havia uma correspondência ali, que não havia aberto, mas antes que sequer fizesse algo, a voz feminina chamou sua atenção.
  — Você matou todas aquelas pessoas mesmo? – Era a primeira vez que seu tom de voz não era trêmulo.
  Ele não respondeu. Apenas tomou um primeiro gole.
  — Vai se fazer de mudo? – Ela insistiu.
  — Você já sabe a resposta. – Respondeu antes de dar um segundo gole e pegar o pequeno envelope. 
 David se ajeitou no banquinho para ler a carta, que apenas apresentava promoções sobre pacotes de canais de televisão e assim que jogou de lado, percebendo que não era de seu interesse, iria terminar de tomar seu café, quando a moça se pôs de bruços sobre a bancada o surpreendendo com aproximação. Dessa vez se obrigou a encarar o rosto jovial que estava a sua frente.
   — Por que você faz essas coisas?

  — Era o que eu estava tentando descobrir. –  Fez uma pequena pausa, então continuou: –As coisas mudam para você quando assiste a vida de seus pais serem tiradas diante de seus olhos, sem poder fazer nada.
  A menina demonstrou surpresa e compaixão e pela primeira vez desmanchou a pose de durona. Continuou encarando David, parecendo esperar que ele continuasse.
  — "Ninguém gosta de linguarudos." – Ele recitou enquanto enfiava uma faca em uma maçã que estava na mesa, parecendo irritado com suas próprias memórias. — Simples assim, Ele tirou tudo que eu tinha. As únicas pessoas que eu amava.
  Um silêncio pairou na cozinha. Após algum tempo sem nenhum deles dizer uma palavra, ela resolveu mudar de assunto:
  — Eu fiz merda né? Minhas digitais ficaram no canivete... Mas ele era um babaca – Ela riu. – A gente roubou um banco. O Marcos e os amigos dele tinham um plano idiota. Mas tudo que eu precisava fazer era esperar na van e dirigir... O Marcos sairia com dez milhões e fugiriamos juntos...
  — Mas...? – David interrompeu.
  — Um dos caras era irmão de policial e entregou tudo. Iríamos presos mas ele e o irmão ficariam com a grana, claro. – Suspirou antes de continuar. – Marcos saiu pelos fundos sem o dinheiro e fugimos.
  Ela finalizou e bebeu o café.
  — Já fez algo além de matar o Marcos?
  — Vamos lá... Namorei um traficante, participei de uns dez roubos e este último foi o único a dar errado. – Ela contava seus feitos criminais alegremente como se fossem notícias engraçadas.
  — Bom... A esse ponto, já sabem que você o matou. Podia sugerir que você se entregasse como legítima defesa, mas pela sua ficha suja... 
Ela riu. 
  — Nunca me pegaram e nem pegarão. Não nasci pra ser presa. 
  — Sugiro que você fuja a noite então, a polícia vai te procurar pelas redondezas, a floresta, irão deduzir que você fugiu a pé.
  Ela o encarava atentamente enquanto roía a unha do dedão. David se levantou com a xícara vazia enquanto explicava suas teorias. Embora não demonstrasse, a aproximação dela de algum modo o deixava desconfortável.
  Depositou a xícara vazia na pia. 
  — Certo... Mais algum conselho profissional, senhor David?
  — Você precisa se livrar dessas roupas. – Ele disse indo em direção ao corredor, saindo da cozinha.
  — A propósito, meu nome é Melanie, prazer! – Gritou assim que ele se afastou.

  Em pouco mais de quinze minutos, as viaturas estacionavam na cena do crime. Bruno desceu rapidamente e se apressou para checar o corpo. Artur sempre era tranquilo, não importando o tipo de caso com o qual lidava. Retirou o cigarro da orelha e colocou-o na boca, após girá-lo algumas vezes nos dedos. Ele havia parado de fumar há anos, e gostava de ter o cigarro por perto, pois para ele, vencer um vício significa poder estar constantemente perto dele sem se sentir tentado. Logo deu seus passos tranquilos, se aproximando e passando por baixo da fita amarela que rodeava o cadáver.
  — O corpo ainda não está gelado, a ferida parece recente. Isso não aconteceu a mais de meia-hora. – O detetive fazia suas observações sem olhar para o parceiro, que analisava cada detalhe da cena atenciosamente.
  — Embora seja quase óbvio que a menina tenha matado ele antes de fugir, sugiro que procurem algum DNA aqui. – Disse após retirar o canivete do pescoço do homem, guarda-lo em um saco plástico e entregá-lo ao policial ao lado.
  — Ele tem arranhões no pescoço e nos braços, talvez indique uma briga. Provavelmente quem fez isso estava tentando se defender.
  Ele continuou com suas teorias e análises, procurando qualquer pista que o trouxesse mais informações, quando outro policial veio correndo em sua direção.
  — Não encontraram nada. Ela provavelmente não fugiu a pé.
  Ambos os detetives pensavam nas possibilidades de fuga, até que Bruno se levantou, afastando-se do corpo. Deu alguns passos e viu que a alguns metros de onde estava, haviam marcas de pneus no chão. Pareciam recentes, ocasionadas por uma partida abrupta. Não demorou para ligar os fatos em sua mente.
  — Fale com os policiais que estavam na estrada, quero todas as placas que eles anotaram a partir das três da tarde. Se ela fugiu de carro, provavelmente foi parada por estar correndo demais.
  Artur se impressionou com o raciocínio do parceiro, apesar de não demonstrar, se sentiu sortudo por estar trabalhando com alguém que o poupava de questionar algo sobre as pessoas envolvidas. Para ele, a pior parte desse trabalho era tudo que envolvia outras pessoas. O detetive tinha um raciocínio lógico impressionante para recriar os crimes em sua mente só por analisar a cena. Já seu parceiro, parecia ótimo em deduzir os motivos e entender o que levou a pessoa a fazer o que fez.
  — Artur! Você vem?
  Ele foi afastado de seus pensamentos pela voz do parceiro, que já se encontrava dentro da viatura. Artur se apressou em entrar. Logo estavam dirigindo de volta à delegacia.
  — O que você pretende fazer? – Ele finalmente se pronunciou.
  — Vou juntar todas as placas anotadas. Eu vou pegar a vaca que fez isso. 
  — Como vai juntar todas as placas? Como assim? Um animal não enfiaria um canivete no pescoço de alguém.
  Antes de ser transferido, Bruno já estava ciente das peculiaridades de seu novo colega. Um detetive com síndrome de Asperger, levava tudo ao pé da letra, ironias não eram seu forte.
  — É jeito de falar, Artur. Vou pedir as placas que foram anotadas e procurar seus respectivos donos, e quanto a vaca... Deixa pra lá. 
  Ele optou por desistir de suas explicações assim que o carro foi estacionado na porta da delegacia.
   Ambos entraram juntos, enquanto passavam pelo corredor, Bruno falava com alguns dos detetives sobre as placas, quando Artur ouviu Aristes chama-lo de sua sala novamente. Ele se aproximou, relutante. Quase nunca era chamado ali por um motivo agradável.
  — Artur, preciso que você resolva isso de uma vez por todas. – O delegado parecia irritado, enquanto jogava a papelada na mesa. – William já cumpriu um mês. Preciso que você encerre esse caso, isso precisa de um ponto final. 
  Provavelmente se referia à liberdade condicional que seria concedida ao doutor após um mês preso. Apesar de tudo, ele não havia sido julgado culpado. Sua sanidade – ou falta dela – também foi um fator determinante para aliviar sua culpa.
  Ele estava encarregado de fazer o último interrogatório, para garantir que não tinha mais nada a dizer e finalmente deixa-lo ir, mesmo que grande parte de sua consciência soubesse que era um erro.
  — Ele já está na sala de interrogatório, leve os papéis e acabe com isso logo.
  O detetive saiu dali, sem falar com mais ninguém se dirigiu diretamente a onde o psicólogo o esperava.
  Chegando lá, se deparou com William. Foi inevitável que lhe viesse à mente suas ultimas lembranças dele. Sua situação deplorável, sua loucura. Mesmo que inconscientemente, ele pedia internamente para que o tempo que tinha passado na prisão lhe houvesse trazido de volta pelo menos parte de sua sanidade.
  Se sentou em frente ao doutor, algemado e imóvel, não demonstrando nenhuma empolgação em saber que sairia dali.
  — Faz muito tempo, doutor. – Artur tentou começar um diálogo, mas só conseguia pensar no quanto aquela situação lhe era desconfortável.
  William ergueu seu olhar, permanecendo ainda cabisbaixo, sem dizer uma palavra.
  — Eu sei que não vai dar em nada, mas sou obrigado a fazer isso. Você sabe, William, eu sei que você não é o principal culpado. Tem alguém por trás disso. Eu não entendo. Por que você não o entrega? Isso só piora a sua situação, levando toda a culpa ou sendo taxado de cúmplice. 
  — Eu não sei quem é ele. – Respondeu pausadamente. 
  Era a mesma resposta que todos que o questionavam obtinham, em todas as vezes que tentavam tirar alguma informação dele.
  — Você quer dizer que fez parte de algo tão sério com alguém que sequer sabe quem é? – Artur insistiu.
  — Tudo que eu sei sobre ele, é o que vocês sabem. Os emails. Eu não sei como é o rosto dele, não sei sua idade ou localização. Ele é um monstro, ele tirou tudo que eu tinha. Eu só quero que esse pesadelo acabe. – Os grandes olhos verdes transbordaram enquanto as memórias o atormentavam.
  Artur não demonstrou nenhum tipo de compaixão, mas parte dele acreditava no homem a sua frente.
  — Acredito que já saiba suas condições. Nada de sair da cidade, nada de trabalho... 
  Ele apenas encarava o detetive. Ambos queriam que David fosse punido e a falta de informações que William tinha sobre ele o fazia sentir impotente diante daquela situação.
Artur se levantou após fazê-lo assinar alguns papéis e declarar algumas das condições dadas a ele. Quando terminou, guiou-o para fora dali. Na porta, um carro o esperava. Sua noiva estava lá. Mesmo depois de tudo, ela ainda o amava e acreditava que podia trazê-lo de volta.
Após ser solto das algemas, se virou, colocando as mãos sobre os ombros do detetive que se assustou, dando um passo para trás. 
  — Por favor, não desistam de encontra-lo. 
  Foram suas últimas palavras, antes de se dirigir ao veículo parado na rua e entrar, sumindo aos poucos de seu campo de visão.

  Era pouco mais de cinco da tarde. O sol se punha, fazendo o céu ganhar uma tonalidade laranja. A janela na qual encostava a cabeça estava um pouco aberta, fazendo com que a corrente de vento bagunçasse seus cabelos ruivos que, de pouco em pouco, entrava em consonância com os últimos raios de sol daquele dia.
  William estava livre, mas liberdade lhe parecia algo extremamente relativo no momento. Houvera sido afastado do trabalho, sua rotina agora seria marcada por terapias diárias.
  Terapia para um psicólogo. Soava irônico demais, mas essa seria sua realidade a partir dali.
  O som do freio de mão o afastou de seus pensamentos.
 — Pegue suas coisas. – Sua noiva se soltou do cinto e esticou-se, abrindo a porta do lado de William.
  Ela tentava ser forte e esquecer, pelo menos por um momento, toda a situação na qual os dois se encontravam. Foram necessários alguns segundos antes dele colocar o primeiro pé na rua, depois o outro, até se levantar e caminhar em passos lentos e pesados até a porta de seu antigo consultório. Cada pedaço daquele lugar o lembrava de David e de tudo em que havia se envolvido pelos últimos anos.
  Margô estava em sua mesa, mexendo em alguns papéis, guardando alguns documentos. Seus olhos fitavam o chão, enquanto fazia tudo em um ritmo lento demais para o que o doutor se acostumara dela.
  Passando por ela sem dizer uma palavra ou sequer lhe dirigir um olhar, foi até sua sala. Haviam alguns papéis e lápis de cor espalhados no carpete, em meio as almofadas e pelúcias. Um sapo de pelúcia jogado no meio da sala despertou sua memória para uma das crianças.
Luiza.
  Ele encarou o animalzinho, seus olhos se encheram de lágrimas, mas foram secas antes que pudessem tocar o chão. William se culpava demais por todas as mortes que, mesmo sem querer, causara. Quando David propôs que colocassem sua pesquisa em prática, ele não imaginava que tantas vidas seriam destruídas para, no final, não se chegar a nenhuma conclusão real.
  Seus relatórios estavam em uma pasta, na gaveta da mesa no canto da sala. Foi até lá, se esforçando para manter sua atenção apenas no que tinha que fazer. A pouca sanidade que lhe restara deveria ser conservada e ele sabia disso.
  Pegou tudo que considerava importante. Em meio aos papéis, um desenho caiu no chão. O homem mascarado com furos nos olhos, feitos pelos dedos da criança que fora uma de suas vítimas, mesmo que indiretamente.
  Não resistiu a pegar as gravações e anotações das seções com as crianças, mas, antes que pudesse passar pela porta, sua consciência o fez deixar aquilo para trás.
  William se sentiu feliz por um momento. Condenar suas próprias tentativas de voltar a se envolver com tudo isso, significava que sua sanidade não lhe havia abandonado totalmente e, de certa forma, ele poderia seguir em frente.
  A porta foi trancada atrás de si, provavelmente para sempre, já que, a partir dali, decidira que iria se manter distante de tudo que o trouxesse lembranças de seus dias obscuros.


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