Essências Divinas escrita por Kardio


Capítulo 2
Capitulo 2 - O Que as Chamas me Trouxeram.


Notas iniciais do capítulo

E aí pessoal, sei que faz um tempinho, mas venho trazer para vocês esse segundo capitulo, que me gerou muita procrastinação e esforço para ficar bom, então espero que gostem.



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Capitulo 02 – o que As chamas me trouxeram.

— - Ukyo - -

Alvos flocos de neves despencavam sobre o solo já esbranquiçado, nevara durante toda a madrugada e o tempo não dava sinais de que iria melhorar, mas isso não impedia a mim, no auge de meus nove anos, de sair por aí, o mais agasalhado possível, obviamente, se esforçando para construir um boneco de neve.

Corri para todos os lados, juntando, modelando e empilhando o máximo de neve que consegui, minhas luvas começaram a tornar-se ineficientes em seu trabalho de me esquentar, visto que elas mesmas se encontravam soterradas abaixo de camadas de neve branca, só noto que meus dentes batiam e vapor gelado saia de minha boca quando escuto uma doce voz me chamar.

— U! – Viro-me, avistando uma sequência de casas, todas escondidas atrás do manto branco que a nevasca lhes trouxera. – Está ficando tarde! É melhor você entrar. – Minha mãe chamava-me para dentro, corro em direção a casa, vendo-a entrar antes mesmo que eu me aproximasse.

Adentro a casa, o aquecedor estava ligado, o frio intenso que se punha sobre meu corpo fora rapidamente substituído por um calor agradável. Olho ao redor, orbes cor de mel caçando animadamente algo divertido para fazer, um cheiro bom começa a adentrar minhas narinas, vindo diretamente da cozinha, ouço a voz de minha mãe ecoar pela casa.

— U, vá se trocar e lavar as mãos, o almoço está quase pronto. – Quase que imediatamente corro escada acima, rumando para meu quarto, mas no caminho, vejo algo que chama minha atenção.

No segundo andar, sempre havia um quarto que fui instruído a nunca ir, era onde meu pai guardava coisas de seu trabalho, então para não bagunçar tudo e deixar meu pai furioso, a porta sempre estava trancada, mas naquele dia, no fundo do corredor, ela encontrava-se aberta, e além disso uma luminescência avermelhada parecia piscar ritmicamente de lá, semelhantemente as batidas de um coração.

Como um animal curioso, aproximo-me sorrateiramente, checando a todo momento para ver se não estava sendo visto. Lentamente abro a porta que range sonoramente, por algum milagre minha mãe não escuta e consigo adentrar o lugar. Um quarto escuro e empoeirado se revela diante de mim, não parecia que alguém vinha aqui a meses, mas ainda assim, algo parecia me chamar para cá.

Faço uma rápida averiguação, vejo dezenas de caixas de madeiras empilhadas umas sobre as outras, formavam pilhas altas nas quais eu nunca conseguiria ver o topo, mas uma delas chama minha atenção. Diferente das outras, ela não estava empilhada, pelo contrário, ela parecia necessitar de espaço, então não estava sobre nenhuma caixa e nenhuma caixa havia sobre ela, as pilhas estavam afastadas o máximo possível da mesma, por entre suas frestas, a luz avermelhada que me atraíra até aqui podia ser vista.

Engulo em seco e começo a me aproximar da caixa, o solo rangia sobre meus pés, meu coração acelera e minha respiração fica ofegante, sinto o suor escorrer por meu rosto, minhas mãos tocam o tampo de madeira, está quente. Com esforço afasto-o de sobre a caixa e sinto como se tivesse acabado de abrir um forno em pleno funcionamento, a sala esquenta e sinceramente me pergunto o que estou fazendo aqui. Meus olhos fixam-se no que está dentro da caixa. Ali, bem no centro, cercada de feno por todos os lados, pude ver uma carta, a luz vinha dela e brilhava mais intensamente a cada segundo. Pego a carta em minhas mãos e vejo as escrituras marcadas nela. Sou canadense e onde vivo é muito mais comum falarmos em francês, sei alguma coisa de inglês, porém minha fluência na língua era quase inexistente. Mas no momento que toquei naquela carta, minha mente foi invadida por um conhecimento completo da língua inglesa, quase como se eu estivesse falando-a a anos, pouso minha visão sobre uma frase em específico, gravada sobre a superfície da carta, meus lábios e língua mexiam-se sozinhos, buscando, ansiando pronunciar aquelas palavras, sinto um aperto no peito, como quando sei que estou fazendo algo de errado, mas que mesmo assim não consigo evitar fazer, agora, anos depois, pude perceber o tamanho de meu erro. Eu nunca devia ter pronunciado aquelas palavras. Como se eu tivesse provado o fruto proibido, não consegui arcar com as consequências. E agora, aqui estou eu novamente, falando a mesma coisa daquele dia.

— Seven of Clubs: Flames! – Um turbilhão de fogo ergue-se a meu redor, um enorme tornado flamejante, rotacionando sobre si mesmo, furiosamente espalhando suas brasas em todas as direções, a neve a meu redor começa a esfumaçar e derreter com o calor que já devia estar infernal, mas eu não sentia nada, calor ou queimaduras, nada me afetava, observo o enorme tufão incandescente e, logo após, fito meus braços. Minha mente ainda relutava em fazer, mas meu corpo parecia pronto e acostumado a isso, quase como se estivesse fazendo isso durante toda a sua vida, por fim, relaxo e faço minha mente atender ao que meu corpo ansiava.

O enorme turbilhão começa a se comprimir, curvando-se a minha vontade, até finalmente ser reduzido a simples camadas de fogo a envolver meus braços, como manoplas revestindo o corpo de um soldado medieval. Anos atrás, não consegui controlar as chamas e por isso minha mãe morreu. Não sei como estou fazendo isso. Não sei por que essas chamas me obedecem. Mas isso tem algo a ver com essa carta. Eu sei disso. É óbvio para mim. E se esse cara diz que “eles” querem essa carta, significa que mais alguém sabe do que essa carta é capaz, e mesmo assim pretende usá-la. Não posso deixar isso acontecer.

Flexiono os joelhos, aperto os punhos e fixo meus olhos no homem a minha frente.

— Vou te dar esse 7 que você tanto quer. – Aperto ainda mais meu punho esquerdo e faço um movimento como se fosse socar algo bem a minha frente, no auge do meu movimento, algo em minha mente se ativa e uma rajada de fogo é arremessado ferozmente contra o homem, o mesmo assusta-se com o golpe e joga-se para o lado, a rajada atinge ferozmente o solo, derretendo quase que imediatamente a neve do local em que caíra. Por um momento me distraio, as chamas bruxuleavam sobre o solo e seu brilho alaranjado me trazem à tona memórias daquela noite.

Assim que percebo, afasto tais pensamentos de minha mente, mas demorei muito para fazê-lo, antes que percebesse, meu oponente já havia se recomposto e agora preparava seu ataque. Diferente de mim, que até agora não compreendi como estou conseguindo, ele não parecia ter ideia do que estava fazendo, gotas esverdeadas escorriam por seu corpo, ele fazia caretas, como se estivesse se machucando com elas. Desengonçadamente ele balança seus braços, lançando sobre mim gotas ácidas. Viro-me para tentar minimizar o dano sofrido. As gotas atingem meu casaco e imediatamente começam a corroê-lo. Afasto-me com um salto para trás, avidamente retirando o casaco e o jogo sobre o chão enquanto o líquido esverdeado destrói-o completamente. O homem se debatia em dor, o ácido emitido de seu corpo parecia machucá-lo.

Olho para meus próprios punhos que brilhavam graças as chamas ardentes.

Se o poder dele está o machucando, por que será que não me queimo com minhas chamas?

— Pare de enrolação, garoto. Acabe logo com esse fracote. – A voz odiosa fala dentro de minha mente, sinto um arrepio percorrer todo o meu corpo, essa porcaria certamente me dá nos nervos.

— Não lembro de você poder me dar ordens. – Murmuro e ele solta uma risada de escárnio.

Você tá hesitando para acabar com um número 2 sem um pingo de Sincronização Divina e não quer que eu te dê ordens? Deixa de ser inútil e acabe logo com isso. – Número 2? Sincronização Divina? Do que diabos ele tá falando?

O homem junta ambas as suas mãos e uma grande quantidade de ácido começa a se formar entre elas, as luvas que cobriam suas mãos começam a derreter e suas palmas fumaçavam à medida que uma esfera do tamanho de uma bola de boliche se forma. Droga. Não tenho tempo para ficar discutindo com vozes na minha cabeça. As chamas em meus braços aumentam de intensidade, por um segundo vejo a luminosidade vinda de um ponto atrás do homem, meus olhos focam-se lá e vejo as chamas que ainda queimavam no ponto onde joguei aquela rajada de antes, minha mente então tem uma ideia e meu corpo, que eu já aceitei que sabe o que tá fazendo, mesmo que eu não saiba como, confirmou que era possível.

A esfera ácida é arremessada contra mim, o homem parecia aliviado em se livrar dela, com meus braços, descrevo um círculo a minha frente, em seguida, dou um soco no ar em seu centro, então uma rajada de fogo é disparada, usando o círculo desenhado como limitação. Ok, a primeira parte do plano funcionou. A rajada de fogo se choca contra a esfera de ácido, os dois ataques estouram ruidosamente. Segunda parte completa, agora é a parte difícil. Aproveitando a poluição visual e sonora do choque entre golpes, fecho os olhos e me concentro, movo calmamente minha mão esquerda e as chamas que ficaram sobre o chão em meu primeiro ataque respondem ao chamado. Bruscamente jogo meu braço para trás, o homem estava entre mim e as chamas e elas, respondendo ao meu chamado, se jogam na direção dele. Ok, eu consigo produzir, lançar e controlar as chamas.

O golpe acerta em cheio e o homem começa a se debater, as chamas queimavam suas roupas e sua pele fumaçava, gritos de agonia e desespero saiam de sua garganta. Ele arranca sua camisa e corre em alguma direção aleatória. Penso em segui-lo, mas noto que minha mente “desligou” os efeitos da carta e as chamas não mais cobriam meus braços, instintivamente coloco minha mão sobre o bolso da calça e noto que a carta ainda estava ali, mas logo após isso caio de joelhos, meu corpo fora tomado por um estranho cansaço e minha mente começa a parecer ainda mais distante, até que não consigo mais diferenciar o que vejo de uma escuridão profunda.

— Ele está acordando. – Uma voz feminina desconhecida constatava, sinto lentamente minha mente retornando ao normal e abro os olhos, deparando-me com o teto de meu quarto, mas os ruídos dentro dele era o que mais me chamavam a atenção. Viro a cabeça lentamente, só para encontrar cinco pessoas lá dentro junto de mim. Laila estava sentada em uma cadeira, roía as unhas de nervosismo, só não parecia mais nervosa que a moça próxima a si que andava compulsivamente de um lado para o outro, July nunca foi a mais calma das pessoas, mas essa inquietude é demais até para ela. Além de minhas amigas, haviam dois guardas da faculdade ali dentro, um vigiava a porta, posso escutar um burburinho vindo lá de fora, então presumo que meu quarto estava ainda mais lotado momentos atrás, por fim, havia uma garota que eu já havia visto um par de vezes, seu nome é Elly, ela era baixinha e magrinha, tinha cabelos lisos soltos que caíam até pouco acima de seus ombros, havia uma mecha de cabelo colorida em púrpura e seu brinco era uma pena de pavão, escondia orbes castanho-avelã atrás de um par de lente de óculos de armação quadrada, seu nariz parecia ter saído de algum filme de princesas da Disney, em suas mãos ela trazia um bloco de notas e uma caneta. Ela estava no penúltimo semestre de Jornalismo, e era uma das responsáveis pelo jornal da faculdade. Acho que a manchete “Psicopata louco invade a faculdade e é derrotado por um aluno controlador de fogo” seria uma ótima capa, faria toda a carreira dela dali em diante, mas infelizmente, ela terá que fazer isso no modo “hard”, pois nunca revelarei para ninguém o que aconteceu nesta noite.

Sento-me, fingindo dificuldade, Laila se ergue da cadeira e July se aproxima, me ajudando a estabilizar-me sobre a cama.

— U, você tá bem? – Pergunta July, o olhar dela mesclava preocupação e... Medo?

— Eu tô meio... – Dou mais uma olhada no quarto, passando minha visão por sobre cada pessoa, logo em seguida fixando-me em July. – O que aconteceu?

— É isso que esperamos que você nos diga. – Elly se pronuncia, arrancando um olhar reprovador de um dos guardas e também de Laila.

— Encontramos vocês desmaiado lá fora, na neve. – O guarda mais próximo começa. – Sua amiga nos contou que você começou a atrair a atenção do invasor e depois ambos sumiram. – É mesmo, será que já acharam aquele cara? – Você pode nos dizer o que aconteceu exatamente?

— Eu.... Não sei ao certo. – Estreito os olhos, fingindo tentar me lembrar de algo. – Lembro de estar correndo em meio a neve e de ele estar atrás de mim, depois disso lembro de um grande clarão. – Ergo meus olhos novamente para o guarda. – Após isso, só me lembro de acordar aqui, senhor. – O silêncio toma conta do lugar, Elly não pareceu engolir muito bem essa história de “vi um clarão e apaguei”, mas também não parecia disposta a ser repreendida novamente, os guardas tiveram uma pequena conversa entre si e voltaram a falar comigo.

— Muito obrigado por sua ajuda, continuaremos nossa busca pelo suspeito, mas por hora, deixaremos que descanse, vamos retirar também todos os alunos que estão à sua porta. – Visto que não conseguiria mais nada, Elly também se retira junto dos guardas, o burburinho lá fora lentamente desaparece.

— Você nos deixou preocupadas, de novo. – Comenta Laila, a garota parecia pálida, provavelmente fora uma longa corrida até achar os guardas e trazê-los de volta ao observatório.

— Desculpa, mas quando vi que ele estava atrás de mim, eu tive que fazer algo a respeito. – Sinto que Laila tinha algo a mais para falar, mas July a interrompe.

— Laila, você pode fazer alguma para comermos? Tenho certeza que estamos todos com fome, eu cuido do U enquanto isso. – Laila assente com a cabeça, só então parece notar o quão faminta ela mesma estava. Após a jovem gastrônoma sair, July fecha e tranca a porta.

— O que foi, July? – Seus orbes azuis fixam-se em mim.

— Ukyo... Não precisa fingir, eu vi tudo. – Sinto como se uma descarga elétrica percorresse todo o meu corpo, minha mente fica ativa e confusa, sinto-me suar frio.

— Do que você está falando? – July puxa a cadeira onde antes Laila estava sentada, ficando frente a frente comigo.

— Ukyo, você se lembra de mim antes de entrarmos na faculdade? – Assinto com a cabeça.

— Claro que me lembro, éramos da mesma escola durante o ensino médio. – Vejo-a menear negativamente a cabeça.

— Como pensei, você não lembra. – Ela junta as mãos, como se tentasse controlar o próprio nervosismo. – Quando éramos crianças, nós éramos vizinhos, morávamos no norte dos Estados Unidos e brincávamos todos os dias. – Olho-a confuso, será esse algum tipo de brincadeira? – Só que.... Eventualmente, seus pais se mudaram com você para o Canadá e não nos vimos por um tempo. Após anos nos encontramos de novo em Nova York, estudávamos na mesma escola, mas você não parecia me reconhecer. – Vejo os olhos dela se encherem de lágrimas... Espera aí... Ela tá falando sério? – Soube que você tinha passado por uma experiência muito traumatizante, sua mãe morreu em um incêndio ou algo assim, e você tinha perdido parte de suas memórias por isso, mas algo nunca me fez sentido, não antes de hoje... – Ela ergue os orbes em minha direção, apesar de estarem marejados, eles demonstravam-se determinados em saber a verdade. – Foram aquelas chamas, não é? Foi aquilo que matou sua mãe, não foi? – Sinto minha garganta secar e minha voz fraquejar.

— Do que você está falando?

— Quando você liberou os outros estudantes, todos correram para a saída, mas eu não. – Ela fica em pé diante de mim. – Eu fui atrás de você, e eu vi. – Seu olhar demonstrava que não estava mentindo ou brincando. – Eu vi aquele tornado de fogo. Vi as chamas envolvendo seus braços. Vi você lutando. Vi você desmaiando após derrotar aquele cara. Por favor, não me trate como uma idiota, eu não sou burra, nem louca, eu sei o que vi, eu sei que foi real, seja honesto comigo, por favor. – Analiso-a minuciosamente, ela parecia nervosa, fechara os punhos para disfarçar o quanto estava tremendo, solto um longo suspiro e começo a falar.

— Sim, você está certa. – Os olhos dela pareciam aliviadas com a confirmação, mas ainda incrédulos. – Eu realmente não lembro de nada antes do dia que minha mãe morreu, mas foram aquelas chamas que a mataram, as mesmas chamas que usei hoje para afugentar aquele cara. – Ergo o olhar para ela e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me abraça apertado.

— Desculpa. – Implora ela. – Desculpa por não ter percebido antes, por ter te deixado esconder isso até agora. – Por alguns segundos me assusto, mas retribuo ao abraço.

— Ei, sério, eu estou bem, não precisa se preocupar. – Escutamos alguém bater na porta e rapidamente July se afasta do abraço, olhando para a porta, para mim e depois para a porta de novo, a loira caminha até a mesma e a destranca, logo em seguida abrindo-a.

Havia um homem alto parado frente a porta, tinha em torno de seus 50 anos, mas mantinha-se em forma, usava uma calça escura e botas de inverno, uma camisa preta de mangas longas e um casaco que trazia por sobre o braço direito. Sobre seu peito ele trazia um pequeno crucifixo, seus braços eram grossos e seu corpo forte, tinha cabelos e olhos castanho-escuro, seus olhos demonstravam uma seriedade quase palpável.

— Com licença, este é o quarto de Ukyo Mori? – Pergunta o homem, July assente. – Eu sou o Doutor Jin Turner, gostaria de falar com vocês dois sobre o incidente de hoje. – Jin Turner? Eu já ouvi esse nome, ele tem doutorado em alguma área da história aí, e é chefe de um dos departamentos da universidade, o que ele quer comigo?

— Eu já disse tudo o que sei. – Falo me erguendo. – Os policiais já falaram comigo, não sei de nada além do que disse a eles.

— Você... – Ele enfia a mão no bolso da calça e, de lá, retira uma caixinha quadrada, ele destampa a caixa e sinto um zunido infernal atravessar meus ouvidos. – Tem certeza que disse tudo o que sabe? – De dentro da caixa ele retira uma carta, sinto minhas pernas estremecerem e meu coração falha uma batida, engulo em seco.

— O que você quer? – Ele abre um sorriso no canto de seus lábios.

— É como eu disse, só quero conversar com vocês dois sobre o incidente de hoje.

— Nós dois? – Dou um passo à frente. – July não tem nada a ver com isso.

— Não? Pensas mesmo que ela era a única assistindo sua luta? – Estanco em minha posição, então ele também viu... E também tem uma carta. Droga. Droga. O que eu faço.

— Tá tudo bem. – July fala, virando-se para mim, ela exibia um sorriso nervoso, embora sua intenção fosse me tranquilizar. – Vamos, Ukyo, vai ficar tudo bem. – Sua voz buscava mais convencer a si mesma do que a mim, mas ela já tinha percebido, eu não conseguiria vencer esse homem, e mesmo que conseguisse, existem muitos alunos dentro da REU nesse momento, não seria nada prudente lutar aqui,  a loira vira-se novamente para o professor. – Iremos com você, assim como pediu. – Escuto o som de passos e, logo após, o som de coisas caindo.

Saio para o lado de fora e vejo Laila, ela parecia surpresa e nervosa, a comida que trazia em suas mãos estava toda no chão agora.

— Oh, Laila. – Fala Jin casualmente, eles se conhecem? – Faz tempo que não a vejo, como tem passado?

— Muito bem, senhor. – Ela responde, parecia um pouco desconfortável, mas não demonstrava medo ou nervosismo. – O que o senhor veio fazer aqui a esta hora?

— Ah, vim ter uma conversinha com seus amigos aqui, já estávamos de saída, mas já que a encontrei, queria lhe pedir um favor. – Ele tira uma caneta e um bloco de notas do bolso, anota alguma coisa e entrega a garota. – Pode pedir a seu irmão que vá até este local? Quero ter uma conversa com ele. – Ela engole em seco, mas assente, ele libera um sorriso calmo e volta a nos fitar. – Vamos? – Fala, abrindo espaço e nos indicando o caminho.

Descemos as escadas e saímos da REU, nos deparando com um Corolla nos esperando na porta, Jin abre a porta traseira para que eu e July entrássemos, logo em seguida assumindo o banco de motorista e dando a partida.

— - July - -

Alguns anos atrás, foi descoberto um arquipélago que nunca antes fora mencionado em lugar algum, localizado no meio do oceano Atlântico, entre os EUA e a Europa, era muito estranho que este lugar não tenha sido encontrado antes e, mais estranho ainda, após anos de investigação, descobriu-se que não havia nada além de flora por lá. Não que o lugar fosse inabitável, longe disso, mas simplesmente não haviam humanos ou animais em nenhum lugar do arquipélago, mesmo que suas águas fossem cheias de vida. Rapidamente então começou-se uma discussão sobre que país deveria assumir o controle da região e, de alguma forma, decidiram que a forma mais justa seria um leilão. De início, tudo me pareceu uma grande armação, era óbvio que os países de maior poder aquisitivo iriam pegar a maior parte do arquipélago. Provavelmente EUA e China adquirissem 80% do lugar e os outros países ficariam com os “restos”. Mas algo ainda mais inacreditável aconteceu. No dia do leilão, todas as nações abriram mão de seu direito de comprar qualquer ilha e o arquipélago como um todo foi arrematado por uma única família: os Kenway compraram o arquipélago inteiro por apenas dez dólares.

Os Kenway eram uma família rica que nos últimos dez anos vinha ganhando ainda mais influência na bolsa de valores, eles pareciam sempre estar um passo à frente de seus competidores, sempre lucrando mais que qualquer um em qualquer negócio feito. Após arrematarem o arquipélago, os Kenway foram questionados sobre o que fariam com o arquipélago, a resposta ficou em minha cabeça até hoje: Construiremos a maior e melhor universidade de todos os tempos.

Eles cumpriram sua palavra, em apenas cinco anos, a Universidade Kenway foi aberta, eles possuíam absolutamente todos os cursos que se podia imaginar, mesmo aqueles que não poderiam ser alocados no arquipélago, ganharam espaço em filiais por todo o globo, logo, a Universidade Kenway se tornou a mais privilegiada de todas. Para adentrar nela, você precisava ter um mínimo de fluência em inglês, língua oficial do arquipélago e minha língua materna, e passar em um vestibular concorridíssimo. Lembro-me de algumas pessoas desmaiarem apenas pela pressão de estar na sala no dia da prova. Lembro de os melhores professores de todas as partes do globo terem sido contratados e lembro também de quão feliz fiquei em saber que tinha passado e, além disso, que Ukyo também havia conseguido, seria bom ter alguém que conheço por lá.

Agora fito a janela pelo banco de trás do carro, a paisagem da ilha cinco, onde ficavam as REU, passava rapidamente pelas janelas, pela rota, estávamos indo para a ilha oito, onde ficavam os escritórios dos professores, os bancos podiam ser confortáveis, mas não tornavam a situação menos incômoda. Eu não sei ao certo o que era aquela coisa que o professor mostrou para o U, mas não era boa coisa, eu sinto isso, e a expressão do Ukyo naquela hora só confirmou minhas suspeitas, convenci-o a entrar no carro, mas nem eu mesma tinha certeza se era o melhor a si fazer, só sabia que não podia deixar o Ukyo usar aquela coisa de controle de fogo ali dentro, ele poderia machucar as pessoas. Quando enfrentou o sequestrador, ele fez questão de se afastar de todo mundo antes de usar, essa era a única maneira de fazer de novo.

— Então... – Jin fala após um longo silêncio. – Eu diria que vamos ter uma conversa longa, e espero que ela seja agradável, não quero ser inimigo de vocês, então irei me apresentar novamente. – Ele pigarreia, como se estivesse prestes a ministrar uma aula. – Meu nome é Jin Turner, sou Doutor e Chefe do Departamento de História e Arqueologia da Universidade Kenway. – Os orbes castanhos dele nos fitavam pelo retrovisor. – Vocês são...?

— Meu nome é Ukyo Mori, graduando no primeiro semestre de Arqueologia. – Responde o ruivo a meu lado, engulo em seco e faço o mesmo.

— Eu sou July Biazzi. – Tento manter minha voz firme, mesmo que estivesse à beira de um ataque de nervos. – Cursando o primeiro semestre de Astronomia. – Jin exibe um sorriso acolhedor.

— Entendo. – O carro faz um leve desvio, adentrando na longa ponte que nos levaria a ilha oito. – O que estão achando do curso?

— Excelente, senhor. – Respondo prontamente. – Os professores são muito bons, e as instalações são simplesmente perfeitas, não tenho reclamações.

— Qual é a tua? – Ukyo questiona rudemente, por um momento me assusto, mas percebo não ser comigo a irritação dele. – Você chega aqui, me faz uma ameaça velada, e agora quer bancar o atencioso? O que você quer? – A irritação reverberava no tom de Ukyo, mas Jin não se abala, mantendo a atenção na estrada.

— Não se exalte, quero apenas ter uma conversa com vocês, como três pessoas civilizadas que somos... – Ele faz uma longa pausa. – Mas é claro, você pode continuar se enfurecendo e até mesmo ativar os seus poderes, mas devo adverti-los. – Ele ergue o olhar, nos encarando pelo retrovisor, sinto um arrepio de medo percorrer todo o meu corpo enquanto ele completa sua frase. – Os únicos que estão em perigo aqui, são vocês. Você não consegue me derrotar. – Ukyo não o responde, mas o clima fica pesado entre os dois, Ukyo parecia estar ciente da força do oponente, força essa que eu nem sabia existir até ser mencionada. Eu esperava que o Ukyo pudesse fazer alguma coisa, mas aparentemente, ele sabe que não tem chances contra esse cara.

Mantenho-me encarando a janela, não quero olhar para dentro do carro, Ukyo continua furioso e Jin me assusta, só noto que estou tamborilando os dedos sobre o banco do carro quando o ruivo atenciosamente repousa sua mão sobre a minha, fito-o nos olhos e ouço-o sussurrar um “vai ficar tudo bem”. Sinto meu rosto esquentar, mas ainda eram três da manhã e estava muito escuro, então Ukyo não deve ter notado, apenas relaxo, encostando a cabeça no encosto do banco e retribuindo ao gesto dele, segurando sua mão também.

Não demora muito até chegarmos ao prédio, uma enorme construção criada especialmente para os professores, a ilha oito possui dezenas de prédios, cada um contendo seis andares, o térreo era designado para as recepções e, do segundo em diante, eram reservados para um professor, que podia usar o andar todo como quisesse, o que fazia cada andar único e personalizado para as necessidades do mesmo, fazendo com que sair do arquipélago fosse algo desnecessário. Descemos do carro, ainda estava frio a ponto de nossos fôlegos congelarem assim que saíam de nossos lábios, formando uma pequena “fumacinha” todas as vezes que respirávamos. Jin nos guia para dentro, nos levando até um elevador, ao entrarmos, vejo-o apertar o botão do último andar. Ele mora na cobertura. O elevador começa a subir e a música era a única coisa que se fazia ouvir no silêncio sepulcral instalado.

Em breve o elevador abre a porta e nos vemos em um pequeno corredor que terminava frente a uma única porta, Jin tira a chave de seu bolso e abre a porta, revelando um lugar que mais parecia ter saído de uma página de catálogo de móveis tão bem decorado era. Jin nos guia até a cozinha, parecia ter gastado uma nota preta contratando uma decoradora e comprando os móveis, mas passava uma sensação de conforto e bem-estar sem igual, ele nos convida a sentar na mesa e vai até a geladeira.

— Tem pizza calabresa, portuguesa e quatro queijos, suco de uva e maracujá, Coca-Cola, Sprite, querem algo? – Oferece ele, penso em recusar, mas quando Ukyo dá o braço a torcer e pede dois pedaços de pizza com Coca-Cola, percebo que não comíamos nada a horas, então peço uma fatia de portuguesa com suco de uva, ele nos esquenta as pizzas no micro-ondas e nos serve, logo voltando a falar. – Primeiramente, perdoem-me por ser tão rude, mas não podia deixar que vocês não viessem comigo e, acima de tudo, não podia deixar mais ninguém escutar nossa conversa. – Seu olhar era sério ao encarar Ukyo. – Quero que saiba que, a partir de agora, todos podem ser seus inimigos, devem estar atentos a qualquer movimentação suspeita.

— E o que garante que você não é meu inimigo? – Responde Ukyo bruscamente.

— Eu te trouxe até aqui sem nunca tentar ataca-lo, mesmo tendo chances para isso, e também estou disposto a contar tudo o que sei, se você fizer o mesmo. – Ukyo faz silêncio por um tempo, mordiscando a pizza que tinha em mãos.

— Você primeiro. – Exige o ruivo e Jin solta um leve sorriso.

— Como desejar. – Ele novamente tira do bolso aquela caixa e destampa-a, colocando-a sobre a mesa, Ukyo faz uma careta, como se algo o incomodasse, mas não fala nada, quando ele põe a caixa sobre a mesa, posso ver melhor a carta que havia lá dentro, em seu centro, havia uma figura que se assemelhava a uma besta mitológica antiga, escritos que presumo serem em grego antigo preenchiam a carta em toda a sua parte inferior, na parte superior havia um “K” e o símbolo de Copas dos baralhos convencionais, Ukyo parece impressionar-se com alguma coisa, mas logo sou atraído pela fala de Jin. – A muito tempo se discute qual é a verdade sobre a criação do mundo, nós, humanos, criamos teorias sobre o surgimento e funcionamento do universo, mas nunca se chegou a uma conclusão, mas agora eu digo a vocês. – Ele se ajeita um pouco mais na cadeira, ficando mais confortável. – O criacionismo estava certo, mas não do jeito que pensávamos. – Neste momento devo ter arregalado os olhos, do que diabos ele tá falando? – A muito tempo atrás, o universo e tudo que conhecemos foi formado pelos, assim chamados, Deuses Criadores, após criarem tudo, eles resolveram fazer um jogo com sua maior criação, o homem, e para isso, selaram seu poder em pequenos artefatos. – Um brilho parece percorrer os olhos de Ukyo e Jin sorri pelo canto de seus lábios. – Exatamente, cada deus selou parte de seu poder em uma carta, somando ao todo 52 cartas, o primeiro baralho existente, e dando ao humano que possuísse uma dessas cartas o poder do deus que a criou.

— Você não pode estar falando sério. – Ukyo fala, incrédulo.

— Por que eu brincaria? Eu disse, não disse? Eu te contarei tudo o que sei. – Ele aponta para Ukyo. – A carta que você possui, quando você a tocou, escutou algum tipo de voz falando dentro de sua cabeça? – O Ruivo assente, receoso. – Aquela voz pertence ao deus que criou a carta e, quando você ativa o encantamento da carta, você pode usar parte do poder do mesmo. – Ukyo não fala nada, mas parecia pensativo, como se montasse um quebra-cabeças dentro de sua mente.

— Então... Aquele controle de chamas que o Ukyo usou durante a luta... Veio de uma carta? – Jin assente.

— E existem mais cartas como essas, como eu disse, são 52 ao todo, elas são divididas iguais aos baralhos convencionais.

— Em números e naipes? – Questiono.

— Exatamente. – Jin se levanta, pegando uma folha de papel e desenhando nela. – Os naipes dividem o que cada carta pode conceder. – Ele primeiramente desenha o naipe de Paus. – Cartas com esse naipe concedem poderes de naturezas elementais, como a carta de fogo de Ukyo ou a carta de ácido que aquele homem usou contra você hoje. – Jin para um pouco para pensar. – Ah, depois me lembre de falar sobre o que aconteceu com aquele homem, sei o paradeiro dele, mas depois falamos disso. – Em seguida ele desenha o naipe de Copas. – Cartas com o naipe Copas concedem ao usuário a transformação em uma besta lendária.

— Besta lendária? – Questiono-o, não sei por que, mas estou digerindo toda essa informação mais naturalmente do que eu deveria, odeio admitir, mas até parece um pouco... Interessante.

— Sim, os mitos tinham que vir de algum lugar, e alguns foram inspiradas em pessoas que, por um momento, viram as bestas dessas cartas. – Ele aponta para a carta que ele tinha dentro da caixa. – Essa carta permite que eu me transforme em um Dragão, por exemplo. – Ele fala aquilo tão naturalmente que me faz entender o porquê de Ukyo não conseguir derrota-lo, ele certamente tem experiências horríveis com essas cartas, poucas coisas devem fazer esse homem ficar abalado, posso dizer isso por simplesmente olhar para ele. – O naipe de Ouro. – Continua ele, desenhando o naipe sobre a folha. – Eles concedem habilidades super-humanas a quem os controlar, coisas que você veria facilmente em um filme de super-heróis. É o mais versátil dos naipes, visto que concede melhorias que podem ajudar de várias formas. Por último. – Ele finalmente desenha o naipe de espadas. – Este naipe concede o porte de armas lendárias.

— Com armas lendárias você quer dizer...? – Jin abre um largo sorriso.

— Coisas como Excalibur e etc. – Arregalo os olhos de surpresa.

— Excalibur realmente existe?

— É como eu disse, todas as lendas vêm de algum lugar, o que faz com que algumas sejam reais. – Um silêncio instala-se no local e tento quebra-lo, arrancando mais informações.

— Você disse para que servem os naipes, mas e os números?

— Os números são uma classificação de força. – Responde prontamente. – Naturalmente existem deuses mais poderosos que outros, então os números servem para indicar quais cartas são as mais poderosas. Os baralhos convencionais são inspirados nesse baralho, o Baralho Primordial, então seguem a mesma ordem de importância sendo Ás a carta mais fraca. – Se é como ele diz e a Ás é a mais fraca, então... – E, naturalmente, a carta “King” é a mais forte. – Fixo os olhos sobre a carta na mesa, um “K”, o naipe de Copas e a figura disforme de um dragão. O Rei de Todas as Bestas Lendárias repousava dentro de uma pequena caixinha sobre uma mesa de mogno. É quase inacreditável.

— Você não teme que roubemos ela? – Falo sem nem parar para pensar, mas ele limita-se a rir.

— Claro que não, ainda existem algumas regras nesse jogo.

— Você diz que isso é um “jogo”. – Ukyo quebra seu silêncio após muito tempo. – Mas um jogo normalmente tem um vencedor. – Conclui ele, logo em seguida questionando o professor à sua frente. – Mas como se ganha nesse jogo? E o que motivaria alguém a entrar em um “jogo” tão doentio assim?

— Bem... O vencedor é aquele que consegue todas as cartas, como isso nunca aconteceu antes, dizem que é só um mito, mas... – Ele fixa seus orbes em Ukyo, como se buscasse o melhor jeito de continuar sua frase. – Dizem que aquele que conseguir as cartas, pode fazer qualquer pedido aos Deuses Criadores, até mesmo pedidos que ultrapassem o poder das cartas. – Engulo em seco, isso é real? O que estou escutando realmente é verdade?

— Qualquer pedido? Até mesmo... Ressureição? – Ukyo parecia nervoso, ansiava por essa resposta mais que qualquer coisa.

— A lenda diz qualquer pedido. – Jin se ergue, fixamente olhando para Ukyo. – Mas todas as lendas vêm de algum lugar, e assim como a Excalibur, elas podem ser reais, a questão é... – Ele aponta para Ukyo. – Você está disposto a jogar, Ukyo Mori? – O Ruivo se levanta subitamente, encarando Jin nos olhos,

— Essas chamas malditas... tudo o que me trouxeram até hoje foram desgraças..., mas agora você me diz que, usando-as, eu posso trazer de volta minha mãe... – Os olhos de Ukyo brilhavam selvagemente. – Deixarei para trás o que as chamas me trouxeram e me focarei no que elas me trarão. – Fala o ruivo, determinação transbordava de sua voz. – Eu vou jogar.

— - Continua - -


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, deixem seus reviews e até a próxima



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