A vida continua. escrita por Hoffnung


Capítulo 6
VI




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Acordei estranhando estar deitado no sofá, achei que Daniel me expulsaria daqui no meio da noite. Olho para os lados e está tudo quieto, nenhum sinal dele, vejo apenas Martim encolhido em um canto babando. Deve ter chegado tarde. Olho no relógio e são nove horas da manhã. Não tinha nada para fazer então peguei uma revista de lógica e fiquei resolvendo até Daniel chegar afobado na edícula. 

— Oi, o que aconteceu? Você sumiu. - falei um pouco baixo, não queria acordar o Martim, ele ficava mais lento que o normal quando não dormia bem. 

— Huh, não importa. - deu de ombros e sentou ao meu lado no sofá. - Acho que não apareço por aqui hoje. 

— O que vai aprontar? - pergunto desconfiado. Daniel abre um sorriso e me olha de um jeito diferente, não era o olhar triste ou irônico de sempre. Seus olhos brilhavam. 

— Vou passar o dia com a Julie. 

— Como ela está? 

— Bem. 

— Mesmo? - achei que ela ia estar abalada pelo que aconteceu com o Nicolas, não entendi direito o que aconteceu, mas pelo seu desespero a coisa foi feia. 

— Sim, ontem ficamos a tarde toda conversando e hoje ela pediu para ficar comigo de novo. Sorria satisfeito. 

— O que tá aprontando Daniel? 

— Nada... 

— Eu sei que você ainda gosta dela. - ele ia protestar, mas continuei. - Mas isso é o certo? Não pense que não te quero ver feliz, o contrário disso, é que não acho que daria certo. Você é um fantasma e ela acabou um relacionamento recentemente... Pensa. 

— Eu sei disso, já pensei que ela pode apenas estar carente ou procurando um ombro para chorar, mas eu acho que mereço ser feliz, pelo menos uma vez. Félix, me apoia, você não é meu amigo? - implorou. 

— Vê bem o que vai fazer Daniel, sou amigo dos dois e estou pensando no futuro dela. - bufou. - Não tá forçando muito? 

— Não! - levantou o tom da voz. - Achei que iria entender. - levantou com raiva, mas segurei seu ombro. 

— Eu entendo... Quero te ver feliz, mas, não quero que se iluda com isso. Ela pode estar se sentindo pressionada ou sei lá. 

Coçou a nuca. - Também pensei nisso, mas com os últimos acontecimentos tenho certeza que ela gosta de mim.  

— Últimos acontecimentos? - não entendi ao que ele se referia. 

Ele escondeu o sorriso e fugiu do assunto. - Tenho que ir, ela deve estar me esperando. - ia protestar, mas Daniel saiu antes. - Tchau Félix. 

— Que estranho. - pensei alto. Sei que Daniel era meu amigo, e ele realmente merecia ser feliz, mas não daria certo um relacionamento entre uma viva e um fantasma. Nós estaríamos abusando muito da nossa sorte, Demétrius parou de seguir a gente, mas não acho que ele vai continuar quieto por muito tempo, prefiro não arriscar. Tanto que esse foi um dos motivos para eu não aceitar fazer o videoclipe logo de cara, mas eles me convenceram. Tivemos que mudar o que planejamos pelo que aconteceu na sexta. O "clipe" que antes gravaríamos ao ar livre mesclando com algumas imagens do nosso show, agora iria ser apenas uma edição das filmagens que Beatriz fez na loja do Klaus nada demais. 

Ninguém estava muito no clima para contestar, principalmente Julie. Pelo que entendi ela terminou com o namorado, mas preferi não perguntar sobre isso, ela estava bastante abalada e talvez tocar no assunto a fizesse piorar, embora eu duvidasse que isso, de alguma forma, fosse possível pelo estado que ela se encontrava. 

Estava próximo ao Daniel evitando que o mesmo continuasse a bater no Nicolas enquanto Martim se aproximava para saber se o mesmo estava bem. Todos olhavam atentamente para Julie que com dificuldade ficou de pé. Chorava até soluçar. Nunca tinha visto ela assim. 

Ninguém sabia o que dizer ou como agir, Bia até tentou ajudá-la, mas assim que ela se equilibrou correu para os braços do Daniel. Nenhum de nós esperava aquilo, e isso foi visível na cara de surpresa de Beatriz e o olhar assustado de Martim que logo foi substituído por um sorriso malicioso. Olhava cauteloso aquela cena, até que o sorriso bobo que Daniel tinha se transformou numa expressão preocupada. Vi ele tentar segurar o corpo de Julie que estava se amolecendo em seus braços. 

— Ela desmaiou. - gritou em pânico. - Chamem o Klaus, ajuda, qualquer pessoa. - estava desesperado. 

Fui o primeiro a sair sendo seguido por Bia e Martim, como os dois foram correndo chamar alguém decidi voltar e acalmar meu amigo desesperado. Assim que voltei para nosso camarim improvisado, Julie se encontrava deitada em uma mesa com Daniel segurando sua mão. O mesmo estava de costas para mim então não me viu. 

— Julie acorda. - ele a balançava. - Julie, amor, abra os olhos, por favor. – implorava. Me assustei com suas palavras. “Amor”. Perdi alguma coisa? Nunca vi esse orgulhoso tão desesperado. Coloquei minha mão em seu ombro tentando passar forças. 

— Calma Daniel, ela só desmaiou. - disse para acalmá-lo, mas a verdade é que eu estava tão preocupado quanto ele. Me olhou, acho que se pudesse estaria chorando. 

— Chamou ajuda? 

— Sim, a Bia e o Martim já devem ter chamado alguém. Mas fica calmo, ok? 

Bufou. - Tudo por causa do Nicolas. - olhou com desprezo para o rapaz no chão. Tinha me esquecido dele. Me aproximei receoso, ele estava apagado com a agressão do Daniel, ou talvez por conta da bebida, pois pelo cheiro de álcool que estava no ar, parecia ter ingerido mais do que conseguia. Tentei levantá-lo, mas por conta de seu peso não consegui, então o máximo que fiz foi arrastá-lo até deixá-lo sentado em um canto apoiado nas paredes. Assim que terminei Klaus entrou na salinha. 

— Onde ela está? - olhou para os lados procurando Julie. 

— Tá aqui. O que vamos fazer? - Daniel dizia tão rápido que mal dava para entender suas palavras. 

— Vamos levá-la pra minha casa até ela acordar. - Klaus se aproximou para pegar Julie, mas Daniel fez questão de carregá-la 

... 

Juliana estava deitada na cama do quarto de hóspedes. Daniel estava sentado do lado dela em um banquinho e eu encostado na porta do quarto. Klaus foi fechar a loja enquanto Beatriz e Martim davam um jeito de levar Nicolas para casa. 

O silêncio pairava no quarto, e isso já estava se tornando constrangedor, mas Daniel não parecia se importar, o mesmo quase não piscava os olhos. Acariciava os cabelos de sua amada com um cuidado que eu jamais imaginara que esse cínico tivesse. Eu sabia que ele não tinha esquecido dela, aquele teatrinho não foi o suficiente para me enganar. Também estava preocupada com Julie, mas ver Daniel sendo tão carinhoso e mostrando se preocupar com alguém que não é ele mesmo me fez sorrir. 

— Por que está rindo? – ele me olhava curioso, mas antes que eu respondesse alguém acordou. 

— Da-n. D-ani-el? 

— Tô aqui, Julie. – beijou a mão dela enquanto a mesma se esforçava para abrir os olhos. Mas assim que o fez ambos se encararam, e pude ver um sorriso de admiração nascer no rosto de Daniel. Senti que estava sobrando, então sai do quarto deixando os dois sozinhos. 

... 

— É isso. – sussurrei espantado. Daniel deve ter se referido a esse momento. 

Eu não era de fazer isso, mas decidi espionar os dois. Daniel está realmente apaixonado por uma humana, e tem chances desse amor ser retribuído. Isso é errado, mas faz meu amigo feliz... 

Hum. Acho que se eu ver que Julie realmente gosta dele vou apoiar, é o mínimo que posso fazer. E depois, claro, dar um jeito disso não chegar aos ouvidos da Polícia Espectral. 

Estou quase saindo da edícula quando Martim acorda: 

— Onde você vai? 

— Hu-h.- engasguei. Não era bom com desculpas. – Resolver umas coisas, consegue distrair o Pedrinho hoje? 

— Claro. - disse sorrindo maroto. – Saquei, “umas coisas” hein. Se for com uma gatinha pode contar comigo que te ajudo de boa. – piscou. 

— Tchau Martim. – balancei a cabeça em negação. Ele não tem jeito mesmo. 

Entrei na casa e ouvi uma falação na cozinha, me aproximei tentando não ser visto. Acho que o pai de Julie não estava em casa pois a mesma conversava tranquilamente enquanto lavava a louça. 

— ... Já pensou? - Julie perguntou olhando Daniel que estava sentado na mesa. 

— A gente poderia assistir um filme, tocar, sei lá. Não estou tão animado pra sair hoje, mas se quiser... – respondeu dando de ombros. 

— Filme tá ótimo. – Julie sorriu satisfeita. 

— Só não pode ser romance. – Daniel respondeu brincando, mas dava para perceber que falava sério. 

— Nem terror. – ela fez um biquinho. Espero mesmo que não seja terror, não gosto muito de filmes assim.... 

— Ah, mas esses são os melhores. Não vai me dizer que tem medo. 

— É-ér... N-ão. – respondeu nervosa. 

— Qual é Julie, você fala com pessoas mortas, não tem que ter medo de nada. – disse rindo. - Ainda mais quando se tem eu, um fantasma lindo e forte pra te proteger. – concluiu piscando. 

— E muito convencido. – Julie riu enquanto secava as mãos. 

— Só um pouco. – levantou. – Mas pode ser terror né? 

— Pode. – suspirou derrotada. – Mas saiba que se eu não dormir de noite a culpa é sua. – disse apontando o dedo para Daniel, que abriu um sorriso satisfeito. 

Os dois subiram para o quarto, não muito tempo depois fui atrás. Estava me sentindo mal por invadir a privacidade deles assim, mas antes eu do que a Polícia Espectral. Fora que Daniel sempre fazia isso com as pessoas, então isso contribuía para que eu não me sentisse tão mal.... 

Assim que cheguei no quarto a luz estava apagada e as cortinas fechadas. Enquanto Julie dava play no DVD, Daniel se posicionava na cama, estava ocupando boa parte dela com as pernas esticadas e os braços atrás da cabeça. 

— Chega pra lá Daniel, assim não vou conseguir deitar também. – reclamou. 

— Não tenho culpa se alguém é muito espaçosa. – Mesmo tentando conquistar a garota não perdia uma chance de provoca-la. 

— Está insinuando que eu estou gorda? – Julie colocou as mãos na cintura e o olhou incrédula. Quase ri disso 

Daniel por pura provocação a olhou dos pés à cabeça. – É.... talvez. – ela abriu a boca para protestar, mas ele a interrompeu. – Relaxa Jú, tô brincando, você e perfeita assim. – sorriu. Mesmo no escuro pude ver o rosto da sua amada ficando vermelho. – Deita aqui que o filme vai começar logo. – disse dando umas batidinhas no lugar que ela ocuparia. 

... 

Já estava na metade do filme e nada demais tinha acontecido. Julie escondia o rosto no peito de Daniel quando uma parte do filme a assustava e o mesmo sorria orgulhoso. Estava desistindo de espioná-los, acho que por mais que Daniel queira conquistá-la não quebraria as regras fazendo algo absurdo, como beijá-la ou sei lá. Mas pra ser sincero, não duvido de nada, ainda mais vindo dele, podemos esperar qualquer coisa... 

— Daniel? – Julie o chamou. 

— Hum? – respondeu ainda prestando atenção no filme. 

— Sobre aquela hora... – ele a olhou. – Acha mesmo que tô gorda? 

Ele riu. – Claro que não boba. – tocou seu nariz. – Gosto de te provocar. 

— Mesmo? 

— Achei que já estivesse acostumada. 

— É que você anda diferente... – ela comentou, porém eu também havia percebido isso, ele estava mais atencioso e passava por cima do seu orgulho pedindo desculpas, mas só para ela. Com o nós continuava o mesmo grosso de sempre. 

— Diferente como? – agora ele dava total atenção à conversa, ignorando os gritos do filme. 

Julie abaixou a cabeça e sorriu tímida. – Ah. Sei lá. – pegou a mão dele e começou a brincar com os dedos. – Tá mais atencioso, menos irritante. – fez uma careta enquanto Daniel apenas sorriu. 

— E isso é bom? – perguntou levando a mão no rosto de Juliana e acariciando. Ela fechou os olhos sorrindo com o gesto. 

— Acho que sim. – disse rouca. Abriu os olhos e viu Daniel se aproximando. Fiquei de boca aberta com a cena, Julie não parecia surpresa com a atitude e assim que eles juntaram os lábios sai indignado do quarto indo para a edícula. 

Ele quebrou as regras, e o pior, ela retribui o sentimento dele. Ou talvez essa seja a parte boa, não sei. Mas o que mais me espantou não foi nem o beijo, mas a tranquilidade dos dois. Ambos não estavam receosos, parecia algo tão normal. Talvez isso tenha acontecido mais vezes... Desde quando eles escondem isso? Mas acho que o mais importante é: esse relacionamento entre uma viva e um fantasma vai dar certo? 

 
 

 


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler.



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