O Vazio do Fim do Mundo escrita por Gail Alesci


Capítulo 1
O Garoto


Notas iniciais do capítulo

Tenho um caderno do lado da cama, e sempre que lembro, anoto meus sonhos e pesadelos. Esse foi um sonho dessa semana.

Boa leitura!



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[ 09/11/2017, México. ]

Era uma tarde de um dia em que ninguém trabalhava ou estudava, um sábado fresco em que um garoto de treze ou quatorze anos andava na traseira aberta de uma caminhonete. Apoiava seu braço delicado em uma das vigas de madeira branca que construíam aquela traseira rústica, e olhava com um sorriso vago para o corredor de árvores e grama daquela avenida longa, sem quase nenhuma construção no caminho.

Quando me olhava, o fazia como admirava as árvores, me olhava como se eu fosse parte da natureza. Seus olhos verdes escuros brilhavam com os feixes e luz, e suas sardas pareciam dançar à medida que o carro se movia.

Aquele era o rosto alegre de um menino jovem prestes a chegar em uma grande festa, e assim que o carro parou eu o vi descer energético e ansioso, correndo para dentro de uma grande porta e se virando para me olhar, como quem não aceitasse entrar só no baile.

Eu senti meu próprio sorriso e segurei sua mão, empurrando a porta larga de madeira e explorando o corredor comprido da grande escola.

Amigos e colegas estavam em inúmeras rodas, ao som de músicas pop-rock animadas e risadas descompromissadas. Nada me trazia mais paz que todos os sorrisos daquela festa alegre, e tão logo eu senti meu próprio sorriso, meu pequeno companheiro soltou minha mão para correr no meio de toda aquela gente.

Eu o deixei e comecei a caminhar lentamente por meio das rodas dançantes, a luz das janelas era quente e aconchegante, como um almoço em uma casa com piscina em um sábado à tarde, e eu reconheci nas rodas conhecidos e amigos. Ninguém da minha família estava ali, mas muitos colegas da minha antiga faculdade dançavam com figuras familiares do meu passado.

Andei reflexiva até um grande salão: um lugar de ginástica e esportes onde mais colegas e amigos bebiam e gargalhavam com as conversas triviais.

Do lado de fora eu fiquei tão pouco tempo, eram quadras de gramado verde, tão cheias que eu não consegui sequer pensar em ficar ali. Todos caminhavam buscando seus conhecidos e se perdiam deles ao conhecer novas pessoas, como costumava ser do lado de fora das festas da adolescência.

Na sala de aula, porém, estavam os professores da escola em que minha mãe leciona. Sentados em mesas, rodeados de alunos discutindo novas ideias sobre seus projetos e criações. Assim que entrei senti as mãos delicadas daquele garoto me tocarem, e ele abriu o sorriso mais doce enquanto saia da sala.

Foi quando eu senti o frio.

...

Por um momento a imagem se congelou à minha frente. Os sorrisos, as expressões de descoberta, os corpos dançantes afora da janela, tudo parou e deu espaço para um homem coberto por plásticos e equipamentos médicos. Senti frio e tristeza, era hora já.

O homem parou perto de um professor gordo e sorridente, se aproximou e lhe disse o que precisava fazer. Segurou o braço do professor e injetou o líquido espesso e amarelado, e o professor perdeu o sorriso alegre. O sorriso agora era nervoso e o cenho franzido, e logo o relaxamento dos músculos tomava conta de seu corpo, e a morte tomava conta de seu brilho.

Uma a uma as pessoas daquela sala foram injetadas, e eu não pude ficar para assistir todos caírem. Caminhei atormentada rumo ao corredor de rodas alegres e pensei: “Eles são livres, felizes, cheios de amigos. Quando as pessoas entenderem o que é isso vão entrar em pânico, lutar, discordar, gritar e combater”. Era o que eu esperava, mas nada no mundo me preparou para ver o que seguiu.

Quando cheguei aos corredores vi as rodas formadas como estavam antes, mas os sorrisos agora eram lágrimas, e a dança eram corpos complacentes com a ideia de esse era o fim. Enquanto os amigos caiam mortos depois da injeção, as outras pessoas choravam suas mortes e se encolhiam sem forças.

Meu peito estava apertado, mas eu não sentia desespero, e sim uma tristeza profunda me cortar por dentro. No ginásio, sequer entrei. Desde o corredor se via as janelas de lá, e vi uma colega morta, jogada em uma pilha de corpos como uma boneca jogada no canto de um quarto.

Eu não queria mais assistir, mas era o que eu deveria ter feito. Como já não podia mais lutar contra a minha própria infelicidade, eu dei meia volta e caminhei curvada em direção a saída. No caminho, no corredor, meu pequeno companheiro sorriu para mim enquanto respirava o ar de sua última festa, dormindo até lhe escapar o último ar dos pulmões.

As pessoas ali não sabiam o porquê daquilo, e mesmo assim ficaram inertes como se tivessem armas apontadas a suas cabeças. Mas eu sabia o porquê, e sabia que os assassinos daquela gente nada faziam senão presentear a todos com um ato de piedade.

Ao sair, me virei para o caminho contrário de onde vim. Era um horizonte cuja estrada era somente de gramado e flores do campo. Suspirei com pesar ao ver o início do fim se formar no céu: nuvens gigantes e negras, e do centro de uma grande tormenta saíam raios vermelhos que sangravam a terra. Era a tortura e dor que seriam submetidas à todas pessoas daquele mundo pequeno.

Mas minha dor não estava no futuro, e por isso me virei para o lado oposto e vi a caminhonete parada e a estrada de onde vim. Finalmente me dei conta: por cada metro daquele caminho eu trazia para a festa uma criança que nada conhecia, e que iria conhecer. Enquanto todos morriam pelo veneno, eu morria pelo meu próprio desgosto.

Naquele dia eu levei uma criança para morrer, e eu, um dos executores, logo morreria do vazio do fim do mundo.


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