A Lei dos Mortos escrita por Éden


Capítulo 1
× Riso dos Mortos




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Estêvão era só mais um adolescente amargurado no mundo e do mundo. Talvez fosse seu terceiro ou quarto enem, na casa dos 20, tendo começado no terceiro ano e nunca conseguido nenhuma vaga em nenhuma universidade. Era desesperador ver todos os seus colegas nas federais da região e ele ali: tentando, tentando e nunca conseguindo.
Tornou-se praxe: todas as vezes que via suas notas prometia que iria estudar, para que na próxima vez fosse diferente, todavia, nunca o fazia. Era procrastinador. Era preguiçoso. Era um lixo. Era um completo idiota. Não era digno de nada. Estudar para quê? Se afundaria mesmo. A mãe lhe compreendia — mas o tratava como doente, com demasiado zelo e pena; o pai o desprezava desde o dia que o pegou se masturbando com pornografia gay; os irmãos — estudiosos e bem sucedidos — o ignoravam, talvez não por maldade, mas sim falta de tempo… e compreensão.
Para Estêvão a vida seria sempre uma grande maratona dos desastres: uma pista cheia de obstáculos feitos para impedir a passagem e, caso chegasse ao fim, surpresa: ele era o começo. Então aprendeu a não correr. Aprendeu a se conformar com a monotonia e a monomania dos dias. Ignorava a implicância do pai, a pena da mãe, a inveja aos irmãos e a pressão da sociedade. Ele se mataria a qualquer instante mesmo. Não havia nada que o prendesse à vida então decidiu que seria melhor se conformar com a morte.
Conformismo humano é surpreendente: ainda que lhe batam, se lhe afagarem, conformam-se. Dor humana é surpreendente, assim como sua habilidade de superá-la. Era o fim. Ou o começo. Ou o começo do fim. Ou o fim do começo. Era dia de Enem e tudo mudaria.

Saiu do colégio de paredes azuladas, Firmino ou Armindo Costa, lá pelas cinco e quinze. Os aplicadores lhe atribuíram inteligência por ter sido o primeiro a deixar a sala, quando, na realidade, havia chutado toda prova e escrito uma poesia na folha de redação. Pronto. Era o instante que ele esperava. Essa vida maldita e egoísta que tanto lhe batia e pouco lhe afagava chegaria ao epílogo.
Quando viu estava no meio da avenida, de fones de ouvido, tocando The Cure, Lady Gaga, dançando como um embriagado. Suas lágrimas escorriam como cascata pelas bochechas anêmicas e molhavam o chão onde pisava.
Sentia-se como o célebre Brás Cubas: não deixaria, felizmente, um filho para herdar a miséria dos homens. Deixaria apenas uma rede de desgostos, depressões, uma coleção de livros que ía de Machado à Monteiro, seus rabiscos únicos e surreais, seus sonhos frustados e sua família que se aliviaria.
Era uma rua em cruz. De todos os lados os carros poderiam vir e lhe levar. Mas nenhum veio. Não, não porque a avenida estava vazia, até porque estava grandiosamente movimentada, também não porque os carros lhe tangenciavam: sentiu-se intimamente penetrado quando um corsa lhe atravessou, como se fosse um veículo fantasma. Um veículo fantasma em uma avenida cheia deles. Uma avenida cheia delas em uma cidade abarrotada deles: fantasmas.
Estêvão achou, por um instante, que havia morrido. Olhou por todos os lados, convicto, pensou em sorrir, mas chorou. Chorou por todos. O que diabos acabara de fazer? Não veria mais a mãe, o pai, os irmãos... eles podiam ser complexos, mas eram sua família, sua amada família. Não leria mais Dom Casmurro, Brás Cubas ou Quincas Borba. Não rabiscaria seus amores e desamores. Mortos não desenham. Fantasmas não tem família. Fantasmas não tem amores. Fantasmas não tem… felicidade.
— Ainda é cedo – a garota de cabelo chanel lhe disse. Estêvão se assustou com sua presença: outro fantasma? Ela riu — Me chame de Inês.
Estêvão quis fugir, mas estava paralisado pelo medo. Inês se aproximou. Seus olhos eram cinza e sem cor. Sua pele era amarelada. Era magricela e tinha cicatrizes. Em uma mão trazia um espelho, em outra, um livro. Ela riu novamente.
— O que quer de mim? — ele questionou assustado. Ela parou rente a ele.
— Ainda é cedo — ela repetiu — Você não está pronto para arcar com a morte.
Estêvão engoliu seco — ela tinha razão e ele sabia.
— Eu já me arrependi. Me leve de volta — suplicou. Ela riu.
— Ainda é cedo para isso também — seus olhos sem cor encontraram os escuros de Estêvão. As mãos do garoto tremeram — Há consequências para todo tipo de desejo, o de morrer, sobretudo.
— Consequências? Isso é uma escolha minha — ele disse trêmulo. Ela riu.
— Nunca leu Durkheim? O suicídio é um fato social. A escolha é sua, mas ela afeta todos a sua volta. — ela alisou o maxilar do rapaz com um temível olhar de alegria — E uma atitude egoísta custa mais.
— Estou enlouquecendo, – disse desacreditado — é a única explicação.
— Ainda é cedo também — ela disse pela terceira vez — Você ainda tem o que cumprir.
— Que diabos você está falando, garota? — perguntou impaciente.
— Você trabalha para Elas agora — respondeu de maneira eufórica — você tentou tirar a própria vida e se arrependeu. Se quiser, realmente, ter tudo de volta vai ter muito o que fazer — ela disse alegre com o medo aparente do rapaz. Ele engoliu seco.
— Elas quem? – perguntou a gaguejar. Ela riu diabomicamente, só que dessa vez sua risada se intensificou e pareceu vir de todas as direções, em tons e alturas diferentes, de vozes diferentes. Quando Estêvão olhou estava rodeado delas, deles:
— Almas. As Almas serão ouvidas por seu servo — a garota disse.
Estêvão se preencheu por um pavor imediato. Sentiu seu corpo arder em desespero, e o suor manchar sua camisa branca com estampa de cisnes. O coração batia mais que uma multidão de datilógrafistas escrevendo suas histórias. Os olhos ardiam como houvesse passado pimenta. Ele gritou e esfregou as pupilas com a manga da camisa.
Quando a ardência cedeu e ele abriu os olhos novamente, a garota estendeu o espelho diante de seu rosto. Ele gritou. Havia perdido a cor. Havia perdido a essência. Havia perdido... a alma.
Em um estopim de fúria ele tentou partir para cima da mocinha e lhe enforcar até que devolvesse o negro de seus olhos, porém, tudo voltou ao normal: ele estava, novamente, na rua frente ao Firmino Costa. Havia parado o trânsito. Estava estupefato demais para se mover. Os carros buzinavam, mas ele continuava lá, parado, refletindo sobre a cor de seus olhos.
— Ei, jovem — era um rapaz não tão mais velho que ele, com farda da polícia militar, que acabava de sair do camburão que dirigia e foi até Estêvão — Jovem? — ele tocou o ombro do rapaz, que tremeu por uns instantes e desabou, literalmente, nos braços do policial.


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