Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 4
Verdade ou Xeque-Mate


Notas iniciais do capítulo

Conto após os eventos de A Droga da Obediência.

Eu adorei escrever esse capítulo pelo estudo de personagem que fui obrigada a fazer! Muito divertido :)

Músicas: The Chain - Fletwood Mac
Head Over Heels - Tears for Fears



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Um doce aroma de canela preenchia o ar do apartamento enquanto Magrí revirava os objetos do seu passado com uma caneca de chá nas mãos. O jornal do dia jogado ao chão, com a capa borrada pelo líquido, estampava 1 de Julho de 1995.

Era como se alguém lhe tivesse dado uma máquina do tempo que a permitia reviver todos aquelas lembranças dos anos no Colégio Elite. No entanto, aqueles momentos também traziam à tona coisas negativas, que foram motivos de dor de cabeça anos mais tarde para ela.

Um dos problemas mais complicados de lidar foi com Miguel. Por muito tempo, Magrí conviveu na dúvida sobre os próprios sentimentos em relação ao rapaz, seu coração adolescente não sabendo distinguir que tipo de amor tinha por ele. Lá no fundo ela sabia qual era, mas temia a reação dele no dia que descobrisse, pois não queria magoá-lo. Porém tudo estava equilibrado numa corda bamba e por conta disso, os Karas quase se separam por definitivo, enquanto ela estava nos EUA disputando o mundial de Ginástica Olímpica.

Bem antes desse triste acontecimento, porém, ela já reconheceu os sinais de que Miguel gostava mais dela do que uma amiga e que ele suspeitava da amizade dela com Crânio após os eventos da droga da obediência.

Era verdade que depois daquele aventura, o relacionamento dela para com Crânio passou por uma mudança esquisita que nenhum dos dois sabia nomear. O fato dela o ter beijado depois da briga no forro do vestiário complicou ainda mais as coisas. Mas lembrava-se de ter gostado, e também do embaraço quando precisou enfrentar as consequências.

***

O ruído de vozes soavam como uma música de fundo na sala de aula ocupada por alguns estudantes sentados em duplas. Era uma gostosa manhã de sábado, com um céu claro e vento ameno pelas ruas de São Paulo, um ótimo dia para correr, jogar bola ou andar de bicicleta.

Não para aqueles estudantes, entretanto. Todas essas delícias deveriam ser deixadas para mais tarde, pois aquela seria uma manhã de estudos para alunos com notas baixas, com a ajuda de seus instrutores.

Magrí estava acomodada em uma carteira quase no fundo da sala com sua “aluna” do sexto ano que parecia que o gato havia comido a língua. A garota apenas disse o nome - Carla - e sentou-se fingindo que a mais velha nem existia. Magrí suspirou já antecipando que aquela seria uma manhã difícil se Carla não estivesse disposta a melhorar o Espanhol.

Dar aulas de reforço, junto com os outros alunos, era um dos prazeres de Magrí além do esporte. As companheiras de time caçoavam dela por preferir passar duas manhãs de sábado por mês ajudando uma pirralha, do que se jogando na piscina dos clubes e paquerando os meninos. A garota aprendeu a ignorar e dar de ombros para as provocações, afinal foi a própria que se voluntariou para dar aulas de reforços, porque gostaria de ajudar e ser útil para outros alunos que em sua maioria, tanto a admiravam por suas habilidades na ginástica e no vôlei. Era a sua forma de retribuir tanto carinho.

Desde o início do ano, fez várias amizades e até marcou de dar aulas de vôlei para algumas meninas do quinta ano fora do horário de aula, depois de ter ajudado uma delas para uma prova difícil de Biologia. Aquilo gerava um sentimento bom de satisfação em Magrí.

Ela pegou a ficha de Carla com a matéria que a menina precisava estudar para ver por onde poderia iniciar.

—Muito bem, Carla. Que tal nós repassarmos os verbos irregulares primeiro? - ela começou com um sorriso afetuoso que não foi retribuído - É o mais difícil de entender e vejo que você tem muita dificuldade…

Carla nem se quer olhou para a instrutora.

—Tanto faz. Faça o que quiser…

Magrí suspirou de novo. A falta de interesse da garota em aprender estava contagiando o ânimo dela de forma negativa.

Correu os olhos pela sala vendo que todas as duplas já trabalhavam com afinco, aos cochichos. Na frente ela viu Miguel com um aluno do sétimo ano e Calú com uma do quinto ano, que olhava para o garoto como se ele fosse uma espécie de anjo. Riu da cena. Viu uma amiga da sua turma que acenou do outro lado da sala quando encontrou o olhar de Magrí, encorajando-a. A menina dos Karas acenou de volta.

Mais na frente da sala, quase perto da porta, estava o que seria a dupla mais animada que não parava de tagarelar desde a hora que entraram, que eram Crânio com seu pupilo do sexto ano, a conversa variando desde exercícios de álgebra ao último episódio de Além da Imaginação. A garota não conseguiu conter o sorriso ao observar a cena com uma pontada de inveja por Crânio ter feito par com um garotinho simpático e falante e pelo próprio garotinho.

Então vinha o sentimento não nomeável toda vez que Magrí pensava no amigo. Depois do que viveram com o terror da droga da obediência, existia uma camada de estranheza entre os dois que nem ele e nem ela queriam encarar.

Houve uma aproximação, mas ao mesmo tempo, um afastamento como se temessem avançar mais um passo com medo de cair em um abismo. Por que amigos não se beijam num forro de vestiário vazio e se abraçam dentro de um táxi como se fosse normal… Como se eles fossem…

Crânio levantou os olhos dando de cara com a menina que o encarava. Ela não sabia a expressão que estava fazendo, talvez de preocupação porque o garoto perguntou - literalmente usando o Código Morse piscando os olhos - se estava tudo bem. Ela disfarçando, respondeu que ainda não, mas ficaria. O garoto sorriu, voltando-se para o aluno concentrado na lição.

Com determinação e o ânimo renovado, Magrí virou-se para sua aluna que a observava com grandes olhos.

— O presidente do Grêmio Estudantil não para de olhar para cá. É verdade que ele gosta de você?

A menina dos Karas encarou Carla como se tivesse levado um soco bem no meio do rosto.

— O quê?! Quem te contou isso?

— Ouvi algumas conversas no banheiro – a garota deu de ombros – Mas é verdade ou não?

Magrí percebeu que de fato, Miguel observava com atenção a mesa onde estava sentada. Sentiu borboletas no estômago, esquecendo por completo de sua aluna.

Ela sempre soube desde o primeiro dia que Miguel nutria alguma paixão por ela – ora essa, a garota até deu um selinho nele como forma de carinho por ele sempre vê-las nos treinos!

Então por que a informação de que os fofoqueiros de plantão do Colégio Elite passaram a espalhar a história a incomodava tanto? Ela nunca foi de se importar com fofocas, mas nos últimos tempos – em especial desde a junção dos Karas – estava muito sensível ao falatório alheio.

— Olha Carla, não é da conta de ninguém, está ok? – respondeu secamente – E nós temos muito o que fazer do que falar da vida dos outros.

A garota mais nova fechou a cara e Magrí, de forma firme, colocou-a para estudar com afinco, sendo muito mais rígida do que o normal. Mesmo concentrada na lista infinita de verbos irregulares no Espanhol, a mente minava pelos cantos sobre o estado de confusão que se encontrava. Talvez ela precisasse das companheiras de time, piscina e conhecer outros garotos para esquecer tudo aquilo, pois alguma coisa dizia a ela que aquela história sobre Miguel não acabaria bem.

A aula de reforço passou sem nenhum incidente, até mais rápido do que das outras vezes para a garota por conta do inconsciente distraído. A sala esvaziou-se em minutos. Calú acenou de forma discreta para ela, Crânio e Miguel e se retirou, com a aluna que tutorava trotando atrás dele. Os amigos seguraram o riso.

Crânio logo saiu com o garotinho, restando somente ela e Miguel com sua dupla na sala. Quando deu por si, a dupla do último deixou a sala, com Carla logo atrás como se fugisse de Magrí, ainda de cara feia para ela. Ficaram somente os dois, e Magrí estava muito ciente da presença do garoto ao se levantar para arrumar suas coisas, com uma pressa incomum.

— Manhã difícil essa, você não acha? - comentou o rapazinho se aproximando de onde ela estava.

Magrí sorriu fracamente.

—Verdade, mas já tive alunas piores – ela mordeu o lábio inferior protelando para tocar em um assunto que a preocupava - Como você está? Você sabe, depois de tudo o que aconteceu…

A expressão despreocupada de Miguel sumiu e uma sombra passou no rosto do rapaz ao se lembrar de todos os eventos com o terrível ex diretor do Colégio Elite. Aquilo ainda amargava o garoto.

— Já superei, eu acredito. Tento não pensar muito nas coisas que ele me disse… - Miguel parou, franzindo a testa - Mas sabe uma das conclusões que eu cheguei?

—Quais? - ela não conseguiu conter a curiosidade.

O garoto fitou o nada à frente dele.

—Que poder não é necessariamente algo ruim, que caso você o alcance você será capaz de fazer grandes coisas, coisas boas óbvio. O que o Dr. Q.I fez é um exemplo de como não usar o poder, mas não quer dizer que ele não deve ser usado. Então vale a pena sim ter poder e até mesmo fazer alguns sacrifícios por ele…

O garoto parecia dar um discurso para uma platéia invisível. Magrí processava as palavras do amigo. Ele não estava errado, porém havia uma nuvem negra de implicações que a incomodava, mas que não conseguia traduzir em palavras. Desferiu:

—Mas às vezes buscar o poder pode se tornar um fardo, você não acha?

Miguel despertou ao som da voz da garota, sorrindo:

— Não se você realmente o quer. Quem não quer poder, Magrí? Não era você que me dizia que queria mudar o mundo para melhor? Nós poderíamos fazer isso…

Ele parou um pouco embaraçado, ao passo que Magrí arregalou os olhos em surpresa pelas palavras impulsivas de Miguel. As sentenças pairaram no ar como fumaça. Ela resolveu quebrar o silêncio.

— Então você pretende ter esse poder, mesmo que às vezes, isso vá exigir de você sacrificar tudo?

Miguel forçou um riso que não chegava aos seus olhos, Magrí observou. Ele pegou na mão direita da garota apertando-a com carinho.

—Não tudo, Magrí. Algumas coisas, mas não tudo.

— Você seria capaz, então - começou ela medindo cada palavra - De sacrificar seu objetivo de poder por alguém?

O rapaz parou de sorrir, com os lábios crispando-se. Encarou toda a parede à frente dele para evitar os grandes olhos questionadores de Magrí, que exigiam uma resposta. A menina não soube quanto tempo se passou até ele responder.

Por fim, com um leve suspiro, Miguel beijou a testa da menina, como se quisesse descobrir a resposta que estava na mente dela.

—Isso eu não sei dizer. Eu não sei mesmo.

Ele pegou a mochila que deixou encostada em uma das cadeiras e saiu, sem olhar para trás. Magrí desabou na cadeira, o coração pesando no peito. Toda aquela conversa a desgastou como se ela tivesse corrido uma maratona.

Miguel não era mais o mesmo, no entanto só naquele momento ela admitiu a verdade.

Havia uma obsessão nele em querer mudar o mundo que a estava preocupando desde o dia da prisão do Dr. Q.I, mas que ela não havia comentado com os outros Karas, achando que era tudo passageiro. Quase meio ano se passou, porém as ideias de Miguel ganhavam mais força e espaço na mente dele para o desespero de Magrí.

A menina entendia muito bem o que significava buscar o poder como objetivo de vida, devido a tragédia que ocorreu em sua abastada família há alguns anos. Magrí era só uma criança pequena na época, mas aquilo a marcou de forma profunda, em especial quando seus pais finalmente, depois que ela cresceu, contaram o que de fato aconteceu com o querido tio Alberto.

Os olhos se encheram de lágrimas, que ela tentava secar de forma rápida para não marcar o rosto. Pulou na cadeira quando viu que alguém adentrava a sala de forma esbaforida.

Crânio, um pouco ofegante, vasculhava a carteira onde estava sentado xingando baixinho, sem perceber de imediato a presença de Magrí que já estava com o rosto limpo como se não tivesse derramado uma gota de lágrima.

—Achei! Ufa! Se eu tivesse perdido… - murmurou o garoto para consigo mesmo.

Magrí que observava a cena de forma divertida, comentou:

— Falando sozinho, Crânio?

O geninho a encarou em um estalo levando um susto.

—Meu Deus eu não te vi aí sentada! E não, eu não falo sozinho - Ele segurava uma caixa retangular que havia tirado debaixo da carteira - Estava com medo de ter perdido o meu tabuleiro de xadrez da sorte. Eu não deveria ter deixado isso em casa...

Magrí riu, esquecendo-se por completo do assunto da conversa com Miguel. Ela sempre se divertia com as peculiaridades de Crânio.

— Ah então você vai jogar com aquele seu fã do sexto ano? Esqueci o nome dele…

Crânio revirou os olhos, mas sem esconder o sorriso, sentando-se na cadeira em frente à garota.

— É do Denis que você está falando? Não, com ele vou jogar com as peças da escola - disse ele dando de ombros - Aliás, o Denis era o moleque que eu estava dando aula hoje. Ele e o Chumbinho poderiam competir para ver quem é o mais tagarela!

Magrí riu alto.

—Achei bonitinho ele ter feito você falar por mais de meia hora, o que é um feito e tanto.

Crânio revirou os olhos pela segunda vez, com a expressão irônica.

—Muito engraçado… Mas acho que ele quer compensar pela história do relógio.

— Que relógio? Não sei dessa história.

— Ah essa é longa, depois eu te conto - balançou a cabeça, rindo de algo que só ele sabia - É melhor eu voltar para casa e guardar essa belezinha antes que eu perca de novo.

Magrí puxou o tabuleiro apoiado na mesa para si com uma cara de desafio.

— Não antes de uma partida comigo, pelo menos. Vamos ver se você é tão bom ou só é exagero.

Crânio levantou uma sobrancelha, o rosto espelhando a mesma expressão de Magrí.

— Então você está me desafiando? Pois eu aceito.

— Mas não vai ser um jogo normal de xadrez – começou a garota tirando as peças e o tabuleiro da caixa com um sorriso malicioso – Antes de fazer a jogada, a pessoa terá que responder uma pergunta do adversário sobre qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo.

O rapaz à frente dela arregalou os olhos ponderando a informação.

— Humm... E o porquê disso, posso saber?

— Para ficar mais interessante. Vai me dizer que está com receio agora?

Magrí não conseguiu esconder o riso da cara apreensiva de Crânio. Aquilo ia ser muito divertido, pois o garoto falava tão pouco de si mesmo, tanto para ela como para os outros Karas, que não poderia deixar essa oportunidade passar. Tal como Calú que adorava implicar com o geninho sobre garotas, Magrí às vezes também pegava no pé dele para que compartilhasse mais coisas sobre sua vida.

— Não. Eu topo. Mas você joga com as peças brancas. - ele sorriu de forma misteriosa -Damas primeiro.

O lado mais competitivo de Magrí, o mesmo que a fazia ser a campeã de ginástica olímpica, aflorou com força. Era óbvio que Crânio não ia facilitar as coisas para ela, e o fato dele deixar ela ficar com as peças brancas, que saíam jogando primeiro, não era apenas questão de cavalheirismo, mas sim porque ele iria iniciar a sessão de perguntas.

Os dois dispuseram as peças no tabuleiro e Magrí, já sabendo com qual peça iniciaria o jogo, aguardava com expectativa pela pergunta de Crânio. Havia um leve sorriso brincando no rosto dele.

—A pergunta que eu vou fazer é simples para começar. Você ainda dorme com ursos de pelúcia? Não vale mentir, lembre-se disso.

A garota corou se remexendo na cadeira de forma desconfortável, enquanto Crânio já estava sorrindo de forma vitoriosa. Se ela mentisse, ele saberia. Então já pensando em perguntas para não facilitar o jogo para ele, a menina respondeu:

— Sim, eu durmo. Inclusive ele se chama Pluff.

Ela mexeu a peça ao som da risada de Crânio. Quando ele conseguiu se controlar, comentou:

— Eu não sei o que é mais engraçado, você ainda dormir com um urso de pelúcia ou o nome do coitado. De onde você tira esses nomes estranhos?

Ela deu a língua, o que fez que ele risse de novo, ao mesmo tempo que analisava o tabuleiro para sua primeira jogada. Quando viu que ele estava pronto, Magrí com um sorriso malicioso, questionou:

— Qual é a música que você tem vergonha de admitir que sabe a letra de cor?

Um vinco se formou na testa do garoto junto com uma expressão de cautela. Se alguém soubesse do que estava prestes a dizer, ele trocaria de escola.

— Bem... Err – suspirou e pegou a peça que iria mover falando o mais rápido que era capaz – Material Girl da Madonna.

Magrí caiu na gargalhada, esquecendo-se que deveria se concentrar na próxima jogada e na pergunta de Crânio, este que a encarava com indignação. Ele a faria jurar que nunca comentaria aquilo com Miguel, Calú, Chumbinho e nenhum outro amigo do rapazinho.

— Se você contar para alguém, Magrí, eu juro...

Com lágrimas nos olhos de tanto rir, a menina acenou compreendendo o que ele queria dizer.

— Eu prometo não contar – disse ela entre risos – Mas nunca que eu imaginei que você gostava da Madonna!

Crânio fechou a cara.

— Eu não gosto das músicas da Madonna, mesmo achando ela bonita... Eu só acho essa música dela, legal. Só isso – o garoto olhou de forma muito interessada para o tabuleiro - Sua vez agora.

Magrí analisou as peças e sem pensar muito, sinalizou que iria fazer a jogada.

— Se hoje fosse o último dia da sua vida – começou Crânio com um brilho curioso no olhar – qual seria a única coisa que você faria?

A garota, já recuperada de tanto rir, piscou digerindo a pergunta do amigo. Aquela era um pouco mais elaborada e demandaria mais tempo para ela pensar e responder. Crânio não parecia estar com pressa, mas demonstrava curiosidade enquanto a fitava. Ela desviou o olhar do rosto dele, pois o garoto a estava distraindo, como sempre. Pequenas cambalhotas saltitaram no seu estômago por ser o objeto de interesse dele.

Mas a pergunta era difícil. O que faria? Crânio deixou claro que só poderia fazer uma única coisa antes de morrer. Imaginou a si mesma naquela situação, para compreender o que seu coração diria.

Com o seu sorriso mais bonito, veio à mente a resposta:

— Eu iria dizer eu te amo muito para cada pessoa importante na minha vida.

Qualquer que fosse a reposta que Crânio esperava, aquela dada por Magrí pareceu ter lhe pegado de surpresa. A garota fez a sua jogada, evitando encarar o amigo que permanecia em silêncio, mas que ela sentia os olhos dele observando-a. Brincou, finalmente o encarando de volta:

— Pode rir, não vou ficar magoada.

Havia um sentimento traçado no rosto de Crânio que Magrí só conseguiu definir como ternura.

— Não, não o que você disse é... – começou ele com a voz mais baixa e suave – É lindo. Só prova o grande coração que você tem.

Os dois sorriram, e Magrí sentiu as bochechas muito mais quente e uma doce onda de calor percorrer o corpo. Talvez outro garoto teria dito que aquilo era muito piegas, e teria zombado dela de verdade. No entanto, não o seu melhor amigo... O seu Crânio...

Ainda estava perdida nesses pensamentos até se lembrar da partida. Analisando o tabuleiro, ela percebeu que o garoto a estava encurralando para todos os lados com suas tropas de peões, e que ficava cada vez mais difícil proteger o rei. Como ela não percebeu isso, não sabia dizer e nem se lembrava quando foi que perdeu o cavalo da ala esquerda do tabuleiro. Estava encrencada.

Vendo que Magrí encarava o jogo com preocupação, Crânio deu uma risadinha:

— Ah vejo que alguém está se dando muito mal agora...

— Como você faz isso... – murmurou assombrada.

— Campeão de Xadrez Juvenil, querida – ele deu de ombros sorrindo abertamente – E eu não mandei você me desafiar.

Ele parecia uma criança feliz por estar dando “uma surra” no jogo, que Magrí não pode evitar não rir do comentário que para ela, soou fofamente arrogante.

— Certo, senhor campeão – riu -  Aí vai minha pergunta: estamos eu e você presos em uma ilha. Só há um barco que só cabe uma pessoa. Os dois não podem usar o barco ao mesmo tempo para sair da ilha, e estamos ficando sem comida e sem água. O que você faria?

O rapazinho franziu a testa e era quase possível ouvir as engrenagens daquele cérebro prodigioso pensando na resposta, enquanto Magrí aguardava com expectativa. Mesmo perdendo o jogo de forma espetacular – e o xeque-mate estava cada vez mais próximo – aquela era a melhor partida de xadrez que já havia jogado na vida.

Em menos de meia hora, tinha arrancado informações de Crânio mais rápido do que qualquer um dos Karas. Estava muito orgulhosa de si mesma. Contudo, ainda havia algumas informações que ela ainda queria saber a respeito dele - só esperava que o jogo não terminasse cedo demais e ela perdesse a oportunidade.

— Já sei! – começou Crânio – É fácil, mas vai dar trabalho para mim: você usa o barco que é mais seguro e eu fico para trás com uma jangada que eu construir, porque é improvável que eu te acompanhe, por conta da diferença de velocidade. Você provavelmente vai chegar primeiro a uma guarda costeira, então você pode de lá pedir ajuda.

— Esperto... – comentou Magrí com um sorriso, muito ciente de que naquela pequena história, o garoto estava mais preocupado com a segurança dela do que a própria vida dele. O coração pulsou um pouco mais rápido.

Olhou novamente para o tabuleiro e com tristeza, viu que na próxima jogada dele, ela perderia o segundo cavalo. Não tinha outro jeito, precisava movimentá-lo.

Vendo que a garota já havia decidido a próxima jogada, Crânio perguntou:

— Qual é o seu calcanhar de Aquiles, Magrí?

Ela arregalou os olhos em surpresa, pois não havia cogitado esta pergunta. Refletiu olhando para a própria vida, mas a primeira coisa que veio à cabeça foram os acontecimentos da droga da obediência e a conversa com Miguel mais cedo ali naquela sala.

A menina sabia muito bem que toda pessoa tinha um calcanhar de Aquiles, uma fraqueza difícil de lidar. Mas qual era a maior fraqueza dela? Poderia dizer que era indecisa, às vezes um pouco impaciente quando as coisas não saem do jeito que gostaria... No entanto, aquilo não era o problema maior ainda. Qual era, então?

Pensou e finalmente, descobriu a resposta:

— Sou muito impulsiva. Eu não penso muito nas minhas ações e nas consequências dela.

Crânio acenou em compreensão, demonstrando que já havia pensando muito nessa questão.

— O meu é o orgulho – compartilhou ele enquanto analisava a próxima jogada que prepararia o xeque-mate – Não aceito facilmente se alguém diz que estou errado.

Magrí, com carinho, afagou a mão esquerda do garoto apoiada na mesa.

— Pelo menos você sabe disso e pode se esforçar quando tiver o seu orgulho à prova.

Crânio sorriu, retribuindo o carinho ao afagar de volta a mão da garota e ficaram daquela forma sem perceberem.

— Minha vez – disse Magrí com a melhor cara de que iria aprontar alguma coisa – Diga com sinceridade para mim: quantas garotas você já beijou?

O garoto pareceu que levou um tapa na cara, tal era a expressão de surpresa que estava estampada em suas feições. Magrí sabia que estava tocando em um assunto muito perigoso, mas ela queria realmente saber, mesmo que as consequências não fossem muito agradáveis.

Crânio passou a mão livre pelos cabelos, e mexeu os pés como se quisesse fugir dali o mais rápido que conseguisse.

— Você não tem outra pergunta não? Por que você quer saber disso, Magrí?

— Ei mocinho, é a minha vez de fazer as perguntas. E eu quero saber, ué, não posso?

O rapazinho suspirou e revirou os olhos, resmungando alguma coisa entre “garotas são loucas” e “você é pior do que o Calú”. Magrí riu com gosto e acariciou de novo a mão dele, como uma forma de encorajá-lo a falar.

Sem graça, Crânio finalmente respondeu quase sussurrando:

— Quatro.

Agora quem parecia que havia tomado um murro de novo foi Magrí.

— Quatro?! Como assim?!

Crânio deu de ombros sem responder e dispensou as perguntas de Magrí, mais preocupado com a partida que no seu último movimento encurralava o rei da garota.

Magrí estava em uma confusão de sentimentos. Sabia que não conseguiria arrancar mais nada dele, e se amaldiçoou por não ter pensado melhor na pergunta para obriga-lo a falar.

Não sabia o que estava sentindo com aquela informação de que outras três garotas já haviam beijado ele... A quarta tinha certeza de que se tratava dela mesma, mas as outras? Quem eram? Quando e onde foi? Ele gostava de uma delas ainda? Elas eram bonitas? Foi antes ou depois dele ter beijado ela? Urgh tantas perguntas...

— Minha vez.

Crânio a despertou do debate interno, o garoto com um estranho brilho no ar. Havia alguma borbulhando naqueles olhos que demonstrava que ele também estava em um debate consigo mesmo. Fitou o tabuleiro e então, perguntou quase sussurrando de novo:

— Xeque, Magrí. Por que você me beijou no forro do vestiário?

Magrí abriu a boca e fechou rapidamente sem saber o que dizer. A mente estava uma bagunça, o coração estava querendo sair pela boca e Crânio estava atento a cada expressão que ela fazia, como se quisesse entrar na mente da menina e tirar a informação de lá ele mesmo.

O que iria dizer? A verdade, mas o quê? Nem ela mesma sabia o que sentia pelo amigo e a história do beijo ainda estava fervendo no seu sangue. Estava encurralada, tal como o seu rei no tabuleiro, sem chance de escapar do xeque-mate.

A porta da sala se abriu e a figura de Miguel apareceu. Magrí fitou o recém-chegado com um susto quase aliviado, enquanto Crânio que estava de costas, virou-se para o amigo.

— O que vocês estão fazendo aqui ainda?

A voz do líder dos Karas beirava a uma ordem, como se exigisse a resposta imediatamente.

— Nós já estamos indo – disse Crânio da forma mais tranquila possível – Estávamos só jogando uma partida.

Magrí seguiu o olhar de Miguel que estava cravado nas mãos ainda juntas dela com Crânio. Percebendo o fato, soltou a mão do amigo e se levantou, dirigindo o olhar a ele para que não a deixasse ir sozinha, com ele se levantando em seguida e guardando as peças de xadrez.

— Vai ter uma reunião rápida do Grêmio agora nesta sala e já passou da hora do almoço. É melhor vocês irem.

A preocupação de Miguel pelo bem estar dos amigos era de fato genuína, mas havia uma sombra de raiva no tom de voz dele que não passou despercebido nem para Magrí, nem para Crânio. Os dois acenaram sem graça para o líder dos Karas como se fossem crianças pegas fazendo traquinagem. Miguel os encaravam como se nunca os tivessem visto antes.

Antes de sair da sala atrás de Crânio, Magrí deu um último vislumbre em Miguel. O que viu no rosto do rapazinho não conseguiu interpretar naquele momento. Pouco mais de um ano depois, ela finalmente entenderia aquele olhar que era de puro ciúmes.

***

Magrí adentrou o apartamento batendo os dentes e abraçando as sacolas de compras, como se o plástico fosse protegê-la do frio daquela tarde invernal típica de São Paulo. Precisou deixar a bagunça de lado para abastecer a geladeira quase vazia, o que fez a muito contragosto.

Quando voltou da cozinha, percebeu que a luz do telefone piscava, sinalizando que alguém havia ligado, mas como ninguém atendeu, a pessoa deixou recado. Com o coração pulsando nos ouvidos, Magrí apertou o botão de ouvir a mensagem na caixa postal, esperando que fosse a voz que queria tanto ouvir naquela sala tão silenciosa.

Era uma voz de homem, porém não daquele que estava com imensa saudades de ouvir, para a sua decepção. No entanto, passado a tristeza inicial, ela reconheceu de quem se tratava, e com um sorriso afetuoso no rosto, ouviu a mensagem pela segunda vez:

MARRIE IJUDIS MIGSA CEM I MUDILCI. LIE ICOAPE LIE! CIMBIE, CHUMBALHE.


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: Crânio lá no EUA, revirando suas memórias e saudades da amada Magrí, se recorda também do querido amigo Chumbinho (não tão mais menino, no entanto) e do perrengue que os três Karas passaram com a "gangue do fliperama"...



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