Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 31
A Tempestade


Notas iniciais do capítulo

Espero que tenha muitos fãs de Calú e Peggy por aqui, viu? Porque esse conto é só deles, daquelas histórias de amor fofinhas que eu amo. O conto é bem singelo, tal como eu imagino os dois ♥3



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Nova York, 1995

O reflexo bonito no espelho fitava Calú de volta. O rapaz estava quase pronto na caracterização do próximo personagem que daria vida, Ferdinando de A Tempestade, mais uma peça de Shakespeare para o seu brilhante currículo.

Calú sentia-se afortunado por estar de volta aos palcos após uma longa temporada na televisão. Para ser franco, o jovem estava feliz demais por sair da frente das câmeras e diretores hollywoodianos mal humorados e “voltar para casa” que era o teatro. Os palcos não eram tão lucrativos, mesmo em Nova York, em comparação com os filmes e séries de TV, e ele trabalhava muito mais junto com a agenda lotada. Contudo, aquilo dava uma satisfação a ele que não conseguia por em palavras.

Calú ajeitou novamente o figurino tentando não se sentir exposto demais por aquela calça legging que apertava o calcanhar e partes íntimas — ossos do ofício, diria o pai se o visse agora. Pensar na família despertava saudades no jovem ator. Não foi tão fácil convencer os pais a deixá-lo seguir carreira na atuação quando ele se formou no Colégio Elite. Foram longos dias de discussões e muita persuasão por parte dele para convencer os pais a deixá-lo ir para Nova York estudar artes cênicas. Por fim, eles cederam aos apelos de Calú, mas o garoto teve que adiar a viagem em quase dois anos após ter sido convocado para servir o Exército, junto com Miguel e Crânio.

Para não botar mais lenha na fogueira com os pais, Calú adiou a viagem e se juntou aos amigos, e agora anos depois de todos esses acontecimentos, ele estava grato por ter tomado essa decisão. Os quase dois anos servindo o Exército foram uma das melhores fases da sua vida, perdendo apenas para a fase que vivia naquele momento.

O rapaz sorriu pelas lembranças… Ele, Miguel e Crânio se aproximaram de tal forma, que seria quase impossível separar os três depois de tantas aventuras, apuros e castigos que passaram juntos no quartel. Quase, quase impossível se não fosse o ciúmes de Miguel com Crânio por causa de Magrí que estragou tudo. Calú tinha vontade de dar um belo soco no dos dois para eles criarem vergonha na cara e se entenderem de uma vez.

Ele fitou a fotografia fixada no espelho. Aquele sorriso doce e os olhos bonitos sempre o acompanhavam de camarim a camarim, de trabalho em trabalho. O rapaz gostava de dizer para a namorada (ou melhor, noiva) que ela era o seu amuleto da sorte, e a sorte de fato sorriu para ele e Peggy nos últimos anos. Era irônico que a vida amorosa de Calú tinha muito menos dramas do que a de Miguel, Crânio e Magrí.

Claro que de vez em quando os dois tinham lá os seus desentendimentos, como ocorreu no ano anterior quando Calú recebeu uma proposta indecente de uma atriz muito bonita em troca de um papel no próximo filme dela, sem passar por audição e concorrência. Quando contou para Peggy, a moça ficou muito transtornada e as inseguranças dela retornaram com mais força, ocasionando na briga — talvez a briga mais feia que já tiveram. No final das contas, Calú conseguiu convencer Peggy da sua fidelidade e que jamais a trocaria por outra mulher.

Bom, vendo por outro lado, o casal não foi imune a pequenos dramas na trajetória do relacionamento desde o dia que se conheceram. Contudo, desde o dia que a viu pela primeira vez na meia luz do telhado do Colégio Elite — quando a viu de verdade, Calú sabia que queria passar o resto da vida ao lado de Peggy.

***

Nova York, 1985

Dez anos antes, Nova York já era a cidade badalada para os sonhadores tal como Hollywood. Calú aguardava com ansiedade na cafeteria do aeroporto, olhando a todo o tempo pela entrada. Já fazia dez minutos que estava ali e nada da sua querida Peggy aparecer. Calú começou a ficar preocupado. Tudo bem que não era a pessoa mais paciente do mundo — já havia consumido quatro xícaras de café pelando por não ter paciência de esperar a bebida esfriar. E nada de Peggy…

— Olha só quem chegou primeiro! Você não se importa de eu sentar um pouco aqui, não?

Calú fitou o rapaz parado a frente dele. Conhecia bem Adriano, o primeiro jovem ator revelado pelo grupo de teatro do Colégio Elite. O rapaz vivia fazendo viagens para os Estados Unidos para se apresentar, e agora aguardava ser chamado por um importante grupo de teatro da cidade para um breve curso de atuação nas férias.

— Claro, Adriano — Calú acenou — Sente-se. Eu não vou demorar muito, estou esperando a minha namorada…

Adriano levantou a sobrancelha direita com curiosidade. Pediu ao garçom, em um inglês perfeito, um café sem açúcar e continuou fitando Calú.

— Sabe, eu estou surpreso…

— Com…?

— Ah, bem… Estou surpreso das coisas estarem dando certo com vocês dois. Não me leve a mal — o garoto levantou a mão antes que Calú protestasse — É só que… Não se zangue comigo, brother, mas você teve quantas namoradas nos últimos meses? Quatro? Cinco?

Calú corou furiosamente enquanto Adriano ria. O garçom chegou com o café e foi o tempo que o ator dos Karas teve para se recompor. O que estaria o companheiro de palco insinuando? Calú pigarreou.

— Se você considera ir para o cinema apenas uma vez como namoro, então… Mas eu só namorei mesmo com a Marina.

Adriano gargalhou.

— Corta essa, Calú. O pessoal tira sarro da minha cara por eu trocar de namorada, mas você não é nenhum santo e sabe disso. Assim que se cansar da Srta. Mcdermott…

— Mas eu gosto muito da Peggy. É sério, eu não ache que eu vá “me cansar dela” como você está dizendo.

Adriano bebericou do café ainda com uma expressão divertida no rosto. Calú tentou não ficar bravo com o colega, mas sabia que em parte ele tinha razão, infelizmente… O ator dos Karas, quando o assunto era garotas, era como uma abelha sempre em busca do pólen mais atrativo. Por muito tempo ele foi assim, e muitas vezes os amigos — tanto os Karas como os companheiros de teatro — tiravam sarro dele por isso. Realmente não era um santo, concluiu. Mas Peggy não precisava saber disso, precisava?

Toda vez que o garoto pensava na filha do presidente americano, um sorriso brotava nos lábios de Calú e a saudade da menina apertava-lhe o peito. Nunca tinha se sentido assim com outra garota — nem mesmo por Magrí a paixão foi forte a tal ponto de deixá-lo com os pensamentos fora de curso. Tudo lhe recordava Peggy: o cheiro doce de algum perfume feminino, um entardecer ensolarado, os girassóis cultivados pela mãe no jardim de casa, os delicados cetins nos camarins… Tudo.

Adriano o trouxe de volta para a realidade.

— Foi mal, brother. Eu estava apenas brincando com você. Não sabia que a coisa estava séria assim com a Srta. Mcdermott.

Calú sorriu amarelo fitando novamente a porta da cafeteria, perdendo as esperanças de vê-la a cada minuto que passava. Alguma coisa deve ter impedido a garota de vir, e mesmo cogitando ter sido algo fora do controle de Peggy, Calú não conseguia conter a decepção.

— Eu realmente gosto dela, Adriano. Muito mesmo. E não é fingimento nenhum o que eu estou dizendo.

Adriano levantou de novo a sobrancelha e assobiou parecendo surpreso, mas ainda um pouco cético.

— Você sabe que eu tenho um opinião sobre namoros — disse ele terminando de tomar o café — Acho que isso só atrapalha a carreira de um ator. Diversão, sim, mas se comprometer só traz problemas e dor de cabeça.

— Sei bem o que você pensa, Adriano — Calú sorriu — Mas eu quero arriscar. Peggy vale a pena qualquer sacrifício.

O rapaz mais velho cerrou os olhos.

— Será mesmo? Então ela não deveria estar aqui com você neste momento ao invés de mim?

Aquilo desarmou Calú e a expressão determinada no rosto do ator dos Karas murchou. Adriano parecia que sabia ler mentes e tocar nos pontos fracos de qualquer pessoa. Porém, ele levantou o queixo sem se deixar abater.

— Eu vou ver Peggy. Seja hoje ou no dia do espetáculo, nós vamos nos encontrar, porque ela prometeu e eu confio nela.

***

Peggy suspirou de frustração quando adentrou o quarto. Jogou a bolsa no tapete tentando conter as lágrimas teimosas. Ela não iria se desmanchar em choro, pois tinha que dar um jeito naquela situação. Estar presa na própria casa não era o que Peggy poderia chamar de melhor momento da sua vida.

Fitou o relógio. Já era para estar no aeroporto esperando Calú, que naquela altura já havia chegado e a aguardava. Pensar no rapazinho fez o coração da menina se apertar. Não tinha nenhum meio de avisá-lo sobre a ausência e tinha receio que ele pensaria que ela fez de propósito.

“Se Magrí tivesse aqui… Ela saberia o que fazer”, pensou a garota dando um longo suspiro. Peggy admirava a amiga brasileira pela coragem e determinação, qualidades que não eram sempre frequentes na filha do presidente. Nas horas do sequestro de Magrí e quando denunciou o general Noland na frente do pai, sentiu-se a garota mais corajosa do mundo. Ali, no entanto, numa situação muito mais “simples”, Peggy sentia-se uma criança perdida.

A porta do quarto se abriu e a mãe espiou franzindo os lábios. Peggy fechou a cara. A mãe sentou-se na beira da cama e disse em um tom conciliatório.

— Vamos, my dear, anime-se. Você vai ter outras oportunidades de ver aquele rapaz.

— O que me garante que de última hora você e papai não permitam que eu saia?

A mãe suspirou massageando as têmporas.

— Você sabe que está tudo muito perigoso por aqui. Foi muito difícil convencer seu pai a deixar você vir conosco para Nova York, por causa das recentes ondas de violência na cidade. Se não fosse por mim, você teria ficado em Washington.

Peggy se segurou para não revirar os olhos.

— Eu sei, mom e sou grata pela a sua ajuda. Mas eu só queria ir até o aeroporto para receber Calú. Eu iria até com colete à prova de balas se isso deixasse papai feliz. Eu só queria ver meu namorado…

A mãe abraçou a filha com carinho e acariciou os longos cabelos de Peggy.

— Estamos tornando a sua vida muito complicada, não é meu bem? Mas entenda que agora que o seu pai é presidente, as nossas vidas não vão ser como das outras pessoas. Temos obrigações, e uma delas é se manter a salvo e não fazer nada imprudente.

— Eu nunca fiz nada imprudente, mom. Para falar a verdade, eu nunca fiz absolutamente nada…

A mãe segurou o rosto de Peggy.

— Lembre-se, minha querida, de quem você é daqui em diante. Eu sei que você queria ser uma desconhecida e ter uma vida mais normal, mas por agora eu e seu pai imploramos que você faça o sacrifício de se cuidar. Depois do que aconteceu no Brasil, estamos cada vez mais preocupados… E agora com essa história de cartas bombas…

— Cartas bombas? — Peggy arregalou os olhos — Quem está enviando cartas bombas?

— Nada para você se preocupar, my dear — a mãe beijou a testa da filha — Mas de agora em diante, a segurança da Casa Branca vai conferir com mais cuidado as correspondências, e não abra nenhuma carta que chegar sem ter o selo de segurança. Promete?

Peggy acenou sentindo-se preocupada. Temia não somente por si, mas pelas pessoas inocentes que poderiam se machucar ou serem mortas por aquelas cartas. Pensar em Calú só a deixou mais aflita. E se alguém enviasse uma carta bomba a ele?!

***

— Attention everyone! Please! Be quiet now!

O grupo de atores se calaram e várias cabeças se viraram para o diretor que entrou esbaforido pelo teatro pingando suor. Calú espiou por entre as cabeças dos outros atores que se juntaram à frente do palco. O diretor segurava o que parecia ser um telegrama e leu em voz alta.

— “For the security of actors, actresses and all the staff of the New York Theater, the play The Tempest by William Shakespeare which was scheduled for its opening night today 18 December 1985 at 8 p.m will be postponed to tomorrow until second command”. Isso foi um aviso da polícia de Nova York.

Todos os atores e funcionários do teatro ficaram em silêncio atônito fitando uns aos outros. Calú sentiu as mãos suarem. Aquilo era muito ruim. Qual seria as chances da peça ser cancelada por causa das brigas de ruas entre as gangues da cidade?

Os burburinhos e conversas paralelas ecoaram pelo teatro, mas Calú se desligou completamente da realidade e nem ouviu o que uma colega de palco disse a ele, até a garota sacudir o braço do ator dos Karas com impaciência.

— C’mon boy, telephone for you!

Calú piscou três vezes antes de ir até a recepção do teatro e pegar o gancho do telefone. Não fazia ideia de quem queria falar com ele aquela hora inconveniente.

— Who wants to talk to me, miss? — ele questionou de forma educada a recepcionista.

A moça, que parecia ser mais velha do que ele por pouca diferença, balançou a cabeça e deu de ombros.

— I don’t know, sir. The person didn’t want to give his or her name.

O ator dos Karas colocou o gancho na orelha.

— Hello?

Do outro lado, uma voz melodiosa e um pouco rouca cantarolou, enquanto que a expressão de Calú foi da confusão para o seu sorriso de galã.

— Moon river, wider than a mile

I'm crossing you in style someday

Oh, dream maker

You heartbreaker

Where ever you're going I'm going your way

Two drifters off to see the world

There's such a lot of world to see

We're after the same rainbow's end

Waiting round the bend

My huckleberry friend

Moon river and me

Parecia que o rosto de Calú jamais iria voltar ao normal de tanto que ele sorria. Ele disfarçou um pouco para não chamar a atenção da recepcionista, que o fitava de forma curiosa.

— Eu acho que você é quem deveria ir para Hollywood, não eu — disse ele.

A garota do outro lado riu de forma cristalina, o que só aqueceu o coração de Calú que havia se esquecido do som da risada de Peggy.

— You know, eu aprendi a cantar essa música quando pequena? Eu fingia que era a Holly Golightly* e sentava na janela do quarto à noite.

Calú falou com o tom de voz mais carinhoso e interessado.

— E para quem você cantava?

Peggy pareceu cogitar por um tempo antes de responder.

— For my dolls, I guess.

Eles riram sem nenhuma razão, e se a garota estivesse ali na frente dele, Calú a teria abraçado sem querer mais soltá-la. Passado alguns segundos, Peggy continuou num tom de voz um pouco mais triste.

— I’m so sorry por não ter ido te ver no aeroporto e também sobre a peça. Eu fiquei sabendo por aqui. Essa é uma das vantagens de ter toda a cúpula do governo na sua casa.

Calú riu com o seu conhecido bom humor, mesmo nas situações adversas. Até tinha se esquecido da peça adiada, da decepção no aeroporto e da conversa com Adriano. Na imaginação do garoto só havia o sorriso de Peggy, o olhar de Peggy, o cheiro de Peggy…

Até que o rapazinho entendeu e sentiu como se alguém tivesse lhe batido bem no meio da cara. Uma ansiedade incomum tomou conta dele.

— My dearling, você vem para a estréia, não vem?

Peggy pareceu hesitar por alguns instantes.

— Of course, eu vou fazer de tudo para ir. Mas Calú me prometa que vai se cuidar, que não vai sair por aí sozinho e que vai tomar cuidado na hora de abrir correspondência. Promete?

— Sim, claro que prometo — o garoto ficou um pouco confuso — Mas o que há com a correspondência?

— Long story… Por favor, se cuide. Vejo você amanhã.

— Ah Peggy? — Calú chamou antes que ela desligasse — Amanhã eu tenho que te dizer uma coisa.

— O quê? — a garota não escondia a curiosidade — Por que tem que ser amanhã?

Calú deu um risinho.

— Amanhã. Não seja tão curiosa…

***

Na noite seguinte, Peggy aguardava com ansiedade o motorista que a levaria para o New York Theater. A guarda do presidente queria fazer um esquema de segurança que ia do exagerado para o espalhafatoso, mas Peggy conseguiu convencer o pai a ser mais flexível e deixar que apenas um carro da guarda acompanhasse a jovem, ao invés dos cinco que o pai pedia. A garota seria vigiada de perto, mas ela deixou claro que queria um pouco de privacidade quando fosse cumprimentar o namorado no backstage.

A noite já estava caindo na cidade quando o carro deu partida. Peggy tentava conter a ansiedade retocando a maquiagem impecável pelo espelho que carregava na bolsa. As luzes passavam tranquilamente pela janela do carro. As travessas do New York Theater, no entanto, não estavam tão tranquilas assim.

Um grupo de forasteiros estava se formando em torno da avenida do teatro. Estavam com roupas casuais e não havia nada de extraordinário em seus portes físicos, mas as expressões não denotavam que vieram ali para curtir uma noite de espetáculo teatral. Porém, ninguém desconfiou de nada enquanto aguardavam na calçada para adentrar ao prédio.

Calú repassava as falas aproveitando o quase silêncio da coxia direita do palco, se não fosse pelos burburinhos do elenco nos camarins no backstage e dos funcionários do teatro dando os últimos retoques no cenário e na iluminação. 

A fala que repassava era de Ferdinando, o filho de rei de Nápoles se dirigindo a bela Miranda, filha do legítimo Duque de Milão, que teve o posto usurpado e havia se isolado em uma ilha junto com a filha.

O ator dos Karas baixou o papel e fingiu que via Miranda, ou melhor, a atriz que faria Miranda na frente dele. Mas a imaginação do garoto só conseguia ver outra pessoa.

— “A numerosas damas dirigi olhares ternos, por vezes tendo-me ficado preso os atentos ouvidos na harmonia de seu doce falar” ...

Calú respirou fundo e fechou os olhos. Já podia vê-la na sua frente, muito mais real do que Miranda.

 “Dotes variados me fizeram gostar de outras mulheres, sem contudo empenhar nisso a alma toda, porque sempre se opunha alguma defeito às qualidades mais sublimes, para o valor manchar-lhes. Vós, no entanto, ah!”

O garoto deu o seu sorriso mais belo, e esse seria o momento, se ele estivesse no Elite, em que todas as meninas da plateia suspirariam ou daria gritinhos. Mas na sua imaginação era o sorriso de Peggy que derretia o coração dele.

 “Tão perfeita e incomparável, fostes feita de tudo o que de mais custoso pode haver na criação”.

Ele quase podia tocá-la, próximo o suficiente de dar um beijo na garota melhor do que qualquer beijo de Casablanca ou O Vento Levou.

Antes mesmo que voltasse a realidade, o alarme ecoou de forma infernal e o caos se instaurou no teatro.

***

— Miss Peggy, don’t get out of the car!

— I’m not gonna stay here and be killed, Mr. Manson!

Peggy protestava tentando abrir a porta do carro. Mr. Manson, o segurança, segurava o braço da menina para impedi-la, enquanto que vários vultos queriam se matar no meio da rua. Porém a situação era muito crítica: se o carro continuasse parado no meio da rua como estava ele se tornaria um alvo fácil para depredações. 

Peggy pensou rápido, sabendo que os seguranças discutiam o que fazer para preservar a filha do presidente.

— I need to go inside of the theater. É o único lugar que seguro para mim.

A menina não estava pensando na segurança do prédio, mas sim no Kara que estava lá dentro.

— Miss Peggy, this is too dangerous — Mr. Manson protestou — O teatro está sob alarme e estão todos presos lá dentro sem poderem sair enquanto a polícia não controlar a situação.

— Please, Mr. Manson! There is no other way! If we stay here it will be a way worst!

Peggy olhava de forma suplicante para o segurança, enquanto ele trocava olhares com o motorista. Segundos depois, o motorista deu a ré freando de forma barulhenta e continuou o caminho até o teatro. Assim que o carro estacionou de forma segura e sem incidentes, Peggy sorriu de forma brilhante e abriu a porta do carro.

Antes que Mr. Manson mandasse ela voltar, a garota desferiu:

— Don’t worry, Mr. Manson! The Prince of Napoles will take care of me!

***

Calú andava de um lado para o outro se sentindo uma barata tonta. Burburinhos, gente falando com ele para lá e para cá já estava o deixando zonzo e confuso. A única coisa que sabia era que todo mundo estava preso no teatro e não poderiam sair enquanto a polícia desse a ordem.

O ator dos Karas conseguiu escapulir para a entrada do estacionamento sentando-se na escada de emergência. Colocou a cabeça entre os braços e suspirou alto de frustração. Não ouviu os passos rápidos de um sapato de salto que se aproximavam dele, até sentir uma mão carinhosa lhe acariciar os cabelos.

Calú fechou os olhos. Era bem provável que tivesse dormido e estava sonhando.

— What are you doing here, my prince?

Aquela voz estava tão próxima, tão real... O garoto sorriu. Não queria acordar de jeito nenhum, mas levantou a cabeça e abriu os olhos. A mão que estava no cabelo foi parar na bochecha. Ela estava corada e sorridente. Calú piscou e a puxou pelo braço, o que ocasionou num barulho de surpresa de Peggy, seguido de um riso.

O rapazinho segurou o rosto de Peggy com as duas mãos e a beijou logo em seguida, com toda a saudade que sentia, até deixá-la sem ar. Continuaram abraçados, e Calú sorria. Relembrou mais uma fala de Ferdinando para a bela Miranda, quando o príncipe se deixou virar prisioneiro pelo pai da jovem para ganhar a confiança dele:

 “Minha alma é que vos vai falar agora. No mesmo instante em que vos vi, voou-me do peito ao coração, para servir-vos, razão de eu me ter feito escravo. Por vossa causa, apenas, transformei-me em um paciente lenhador”.

— Ah Calú, mas você não está como um lenhador agora, está? — Peggy brincou.

O garoto cogitou com uma expressão brincalhona.

— Humm... Ou eu poderia dizer “transformei-me em um impaciente apaixonado”?

— Well... Acho que soa melhor para nós, não é?

Peggy suspirou baixinho quando o rapaz a abraçou de novo. Nem ela acreditava às vezes que aquele garoto tão lindo — por dentro e por fora — era dela. Em sussurros rápidos, ela explicou como havia parado ali, e Calú contou o seu lado da história. Talvez não tivessem muito tempo antes de alguém se dar da falta do ator dos Karas ou o segurança de Peggy achá-la e trancá-la no carro de novo. Por isso tinha que aproveitar cada segundo juntos.

— O que você queria dizer para mim hoje? — Peggy deu um beijo no rosto de Calú — I’m dying to know.

O rapazinho levantou a cabeça que estava apoiada no ombro da menina. Os olhos dele brilhavam. Dessa vez não assumiu a voz que usaria para interpretar Ferdinando (se fosse interpretar ainda) mas usou a própria voz, e cada palavra dita fazia com o que o coração de Peggy galopasse no peito.

— “Ó céu! Ó terra! Sede testemunhas do que ora vou dizer, e com o propício resultado coroai meu juramento, se eu falar a verdade. Sendo eu falso, por desgraças trocai quanto o futuro me reserve de bens. Mais do que a tudo neste mundo, eu vos amo, estimo e honro”.

Mal o garoto terminou de recitar, Peggy se jogou nos braços dele tentando conter as lágrimas que se misturavam com o riso de alegria.

— Oh my darling, I love you! Eu amô vócé, Calú!

***

Calú sorria com carinho pela lembrança que se repassava na sua mente. Aquela foi só a primeira de muitas das loucuras que ele e Peggy fizeram e se meteram ao longo dos anos para terem um tempo juntos — pelo menos até o fim do mandato da presidência do pai da jovem.

Nenhum dos dois imaginaria que, naquela ocasião específica, o diretor do teatro havia ocasionado aquele cerco e revolta no envolvimento dele com envio de cartas bombas a pessoas próximas de seus credores, sendo um deles um chefão da gangue de drogas de Nova York. Não demorou para que a gangue quisesse se vingar, mas o diretor foi esperto em se aliar a uma gangue rival, o que ocasionou na briga de rua que deixou dois mortos e quarenta e dois feridos naquela noite.

Durante todo o tempo, Peggy permaneceu ao lado de Calú dentro do teatro, até ela retornar para o carro e ser levada de volta em segurança para casa. A peça foi adiada mais uma vez, e a companhia apresentou A Tempestade sem nenhum diretor. Mesmo assim, foi uma grande sucesso e Peggy chorou do começo ao fim. Dez anos depois, Calú iria reviver o papel que fez o seu nome conhecido na terra do Tio Sam, e aquela iria ser uma noite memorável.

Calú arrumava os pertences espalhados pelo camarim — que era só dele — quando ouviu uma batida suave na porta.

— Ready, my prince?

Ele virou-se e lá estava a sua “Miranda”, bela como sempre com o seu característico doce sorriso. Dez anos e os sentimentos de ambos não mudaram desde o dia que se conheceram.

— Sempre, honey...


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Notas finais do capítulo

* Holly Golightly é a protagonista de Bonequinha de Luxo interpretada por Audrey Hepburn. A canção que Peggy canta (Moon River) é interpretada pela personagem durante o filme.

No próximo conto: A festa de debutante de Magrí está chegando. A menina está nervosa e ansiosa, enquanto que Crânio está desesperado: Como aprender e quem o ensinaria a dançar valsa em menos de uma semana?! Talvez aquele fosse um desafio do gênio dos Karas não superaria...



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