Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 27
A Ladeira da Memória


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores! Este conto é muito, muito especial para mim. Entrou para os meus favoritos desta fanfic. Espero que gostem :)

Boa leitura!



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"Agora, por exemplo, corpo e alma estão juntos num ponto de estrada, como duas patrulhas que se reencontram após uma ação de vanguarda da terra da Memória, e ficam juntos, atentos, como na porta duma guarita".

José Geraldo Vieira – A Ladeira da Memória

 

Existe uma linha tênue entre sonho e realidade. Existe também uma separação entre presente e passado, mas que às vezes ambos se misturavam na linha tênue entre sonho e realidade tornando-se uma só coisa.

O apartamento, que era antes tão silencioso, agora estava cheio de vida, com sons de risada e conversas. Magrí estava esparramada no tapete novo e fofo observando com seus grandes olhos o seu amado. Era às vezes esquisito pensar que ele não era mais um garoto e nem ela uma adolescente. Os anos passaram com tanta rapidez que ambos nem perceberam.

Ele estava segurando um martelo e alguns pregos para colocar os quadros favoritos de Magrí na parede — depois de colocar as prateleiras novas da cozinha, serviço que fez entre o riso e piadinhas, dizendo algo do tipo "Estou sendo explorado" para o divertimento de Magrí.

— Poxa, meu amor, não sei porque você quer tanto quadro na parede — Crânio brincou — Vai transformar sua casa numa galeria de arte?

Do seu lugar do tapete, ela riu e depois suspirou enquanto o contemplava. Ele continuava o mesmo de quando partiu para o EUA no início do ano. O mesmo sorriso, a mesma voz, as mesmas covinhas no rosto, o mesmo olhar que parecia estar sempre calculando e pensando em várias coisas. O sol do verão americano fez bem ao namorado, pensou, e os pensamentos passearam por outras conjecturas também que a fizeram rir e corar.

— Eu deixei todo o serviço pesado para você, meu amor — ela brincou — Até parece que eu ia me arriscar colocar tudo isso sozinha.

Crânio virou-se para ela com um sorriso sarcástico:

— Mas nem me ajudando você está. A vida está boa aí, hein?

Ela deu a língua para ele, o que só o fez rir mais. O rapaz a fitou com ternura. Deitada naquele tapete, Magrí parecia uma ninfa grega esperando seus súditos virem servi-la. A beleza dela não diminuiu no tempo que ficaram separados, pelo contrário, ela parecia ainda mais bela de quando deixou o Brasil, a ponto de fazê-lo suspirar e sentir um desconforto físico que já estava acostumado depois que ficou adulto. A verdade é que não se importava nenhum um pouco de ser um súdito dela.

Crânio terminou de pregar um dos quadros sob o olhar de Magrí, e em seguida se juntou a ela no tapete. A moça se aninhou no abraço do namorado, inalando o cheiro dele. Os dois evitavam pensar no pouco tempo que tinham antes de se separarem de novo, dentre outros assuntos delicados sobre o futuro do relacionamento. Havia um no qual estava tirando o sono de Magrí desde o dia Crânio ligou para avisar da visita, mas ela tinha medo de arriscar e assustá-lo.

O fim de tarde estava ensolarado e fresca depois de um inverno rigoroso, e o apartamento finalmente estava mais aquecido. Crânio beijou-a primeiro nas bochechas, nos olhos e depois nos lábios cheio de saudades. Aquele gesto denotava uma intimidade construída em anos, o que talvez muitos casais nunca conseguiam quando se perdiam demais em si mesmos. Era bom de se pensar que tudo ocorria de forma natural e espontânea no relacionamento, sem pressões, sem cobranças desnecessárias e desgastantes.

— O que mais você andou fazendo nos EUA além de se enfiar em bibliotecas dia e noite, hum? — Magrí brincou fitando-o com um sorriso irônico — Espero que não tenha enchido a cara em nenhuma daquelas festas, nem me traído.

Crânio riu alto jogando a cabeça para trás e apertando-a contra si.

— Magrí, olha para mim, vê se eu tenho perfil de um cara que faz uma coisa dessas — ele balançou a cabeça — E eu só fiquei meio bêbado uma vez na vida, e foi por culpa do Calú. Era mais fácil você ter me traído.

Ela bufou e em seguida riu com uma sobrancelha levantada.

— HA que bom que você lembrou deste fato, o que me recorda que preciso me vingar do Calú por ter embebedado meu namorado — ela fechou a cara, o que só fez Crânio rir mais ainda. O rapaz emendou:

— Ele e a Peggy mandaram lembranças. Sentem muitas saudades de você.

— Meus queridos amigos... — ela sorriu com carinho ao lembrar dos dois.

Magrí continuou com uma risada:

— Espero que saiba que eu precisei dar um fora em um monte de caras da faculdade que ficavam no meu pé.

— Nada de novo debaixo do sol — Crânio revirou os olhos — Pena que eu não estava para dar patada e tirar sarro deles.

— Eu senti falta dos seus comentários maldosos sobre os meus "pretendentes" — a moça encostou novamente a cabeça no peito do namorado — Como era mesmo que você chamava aquele carinha do curso de Engenharia que me mandava bilhetes?

— Ah aquele que o rosto parecia uma bunda de véia?

Magrí se tremeu de tanto rir. Eles se sentiam tão bestas por rir e fazer piada de 5ª série.

— Ele mesmo! Eu não consigo mais olhar para cara dele sem rir, tudo por sua culpa!

Crânio fez aquela sua famosa expressão de triunfo, expressão esta que não se perdeu da época das aventuras dos Karas.

— Eu tenho culpa se ele tem a cara no formato de bunda de véia? Ele é muito feio, meu amor. Você está mal das pernas atraindo essas jararacas!

Magrí o encarou bufando. Tirou as mãos que estavam no pescoço do garoto e colocou-as na cintura.

— Eu estou ótima, tá? Não engordei um quilo esse tempo todo estudando e trabalhando.

Crânio de um beijo no pescoço da namorada, fazendo-a suspirar.

— Que você está ótima, isso eu sei. — ele encostou a cabeça no ombro de Magrí — Humm acho que o problema talvez seja seu "carma". Ou já esqueceu daquele carinha com bafo de onça naquele aniversário que fomos?

— Ew! — Magrí fez uma careta — Não me recorde, se você não tivesse jogado ele no meio do mato, acho que eu precisaria de três banhos para me livrar daquele cheiro horroroso.

Crânio levantou a cabeça e fez uma expressão maliciosa.

— Eu ainda juro que ele não tinha... — ele levantou a sobrancelha.

Magrí franziu a testa.

— O quê?

Ela encarou o namorado, que soletrou uma palavra. De repente, ela arregalou os olhos, gargalhando, e dando um tapinha nos ombros dele.

— Você é terrível! Como você pode afirmar que o cara não tinha...

— Magrí, você reparou na calça dele? É sério, ele não tinha, se tinha, era minúsculo.

Ela riu sentindo-se corar e até ficar sem ar, enquanto Crânio a acompanhava gargalhando junto com ela. Por fim, eles se acalmaram com os rostos vermelhos.

Magrí limpou os olhos.

— Meu Deus, a gente tem quantos anos mesmo? Acho que já passamos da idade de rir dessas coisas, né? É tão...

— Adolescente? Nah, você ouvisse as piadas que os meus companheiros de quarto contam, Magrí, você ficaria muito chocada.

Eles se abraçaram de novo com ela rindo e balançando a cabeça.

— Prefiro mesmo não saber... Mas faz tempo que eu não ria tanto assim.

Ela se inclinou e deu um beijo carinhoso no rapaz.

— Senti muito a sua falta.

Crânio a olhou nos olhos enquanto acariciava o rosto de Magrí entre suas mãos.

— Ver você rindo é sempre um prazer, Mademoiselle. Senti muito a sua falta também, você não imagina o quanto.

Os dois permaneceram em silêncio ouvindo a respiração um do outro e o barulho das crianças do prédio ao longe brincando na piscina. Magrí fitava suas mãos entrelaçadas com a de Crânio com os pensamentos de mais cedo voltando a ocupar a mente da jovem. Mas não tinha coragem de falar sobre o futuro. Aquilo lhe dava ansiedade e temores há meses, e os receios dela eram altos.

De repente, ela arregalou os olhos e levantou o rosto para Crânio.

— Espere aqui que eu quero que você veja uma coisa.

Ela saiu rapidamente indo em direção ao corredor que ligava aos quartos antes mesmo que o rapaz perguntasse do que se tratava. Segundos depois, ela voltou com uma caixa de plástico nas mãos e sentou-se de novo no tapete. Crânio brincou:

— Minha Nossa Senhora, você trouxe as suas bugigangas do porão da casa dos seus pais também?

— Não são bugigangas — ela abriu a caixa — São coisas que guardei desde os anos de escola. Quero que você veja.

Crânio se aproximou e espiou o conteúdo da caixa. Ele enfiou a mão e tirou um punhado de cartas escritas por ele, que na realidade eram sonetos apaixonados que ele compunha para a garota nos anos de escola.

— Você guardou todos?

Magrí sorriu.

— Uhum. Estão todos aí, e acho que guardei em ordem cronológica.

O rapaz sorriu levemente enquanto corria os olhos pelos sonetos juvenis do adolescente que um dia foi. Ele sempre soube que Magrí guardava todos os presentes que deu a ela nos últimos anos, mas nunca imaginou que ela tivesse guardado tudo, até bilhetinhos.

— Tem mais coisas que eu quero que você veja — disse ela despertando-o dos devaneios dele — Aqui, eu achei esses dias.

Ela estendeu o que parecia ser um bolo de fotos da velha Polaroid — que inclusive também estava dentro da caixa já gasta pelo tempo e uso. Crânio virou as fotos entre os dedos e logo sentiu um embrulho no estômago quando viu a primeira foto. Era datada de 10 de março de 1984 com as cores já um pouco desbotadas, sem no entanto atrapalhar os sorrisos risonhos dos integrantes da fotografia, tirada num dia de sábado ensolarado no Parque do Ibirapuera.

Ao lado de um Crânio onze anos mais jovem, estava Magrí que parecia não ter mudado tanto assim em uma década. Na sequência vinha um Miguel sorridente, muito diferente da última vez que o viu, um Calú fazendo caretas — a única diferença do Calú atual era que tinha deixado um pouco de barba crescer para um filme que estrelaria — e Chumbinho com o seu sorriso arteiro, hoje crescido, mas sem perder a expressão de menino sapeca.

Aqueles sorrisos e rostos, aquela alegria que imanava da foto foi um soco forte no estômago de Crânio. A expressão dele tornou-se carregada conforme ele passava os olhos nas outras fotografias, todas dos anos do Colégio Elite, todas contendo os Karas. Até mesmo a foto do lendário aniversário de 18 anos do Calú também estavam lá. Sem mencionar as fotos das visitas ocasionais de Peggy ao Brasil para ver os seus amigos.

Crânio olhou todas as fotos rapidamente, e depois as colocou na ordem como estavam sentindo um bile na garganta. Magrí mordeu o lábio em aflição.

— Amor? Está tudo bem?

Ele de início não respondeu, fitando o bolo de fotos com um olhar distante. Por fim, ele levantou os olhos para a namorada, estes que pareciam carregar uma tempestade eminente.

— Por que você quis me mostrar isso, Magrí?

Não havia acusação na voz dele, mas o modo como falou fez Magrí sentir-se muito culpada. Ela se aproximou e segurou as mãos dele.

— Porque não? O que há de errado com as fotos dos Karas? Achei que gostaria de rever, já que eu achava que você nunca tinha visto essas fotos.

— Preferia não ter visto — ele murmurou desviando os olhos — Você está querendo me dizer alguma coisa isso, Magrí?

Ela balançou a cabeça com a expressão em choque.

— Eu não tinha nenhuma segunda intenção, Crânio! Porque está reagindo de forma tão esquisita? São apenas fotos dos Karas!

— Os Karas acabou, Magrí. Será que não percebeu ainda?

Ela abriu e fechou a boca tentando conter a indignação. A moça sempre foi sangue quente, e costumava contestar as coisas, às vezes sem pensar muito no que dizia. Com o tempo, aprendeu a controlar um pouco o gênio forte — ainda mais quando o namorado tinha o gênio mais forte ainda. Ambos precisaram amadurecer, incluindo até mesmo as discussões, e foi um dos fatores que fez o relacionamento sobreviver ao curso do tempo.

Crânio não disse mais nada, enquanto que Magrí o mirava arrependendo-se amargamente por ter mostrado aquelas fotos. Ela não imaginava que o rapaz reagiria daquela forma. Ela respirou fundo dizendo:

— Os Karas podem ter acabado, mas os nossos amigos ainda são nossos amigos. Estou errada? Olha para mim, Crânio.

Por alguns instantes parecia que o rapaz não obedeceria, até que enfim ele encarou a namorada com os olhos ainda mais carregados.

— Você não imagina o quanto eu desejo a reunião dos Karas o tanto quanto você. Não imagina o quanto que chorei quando achei essas fotos durante a mudança. Mas foi bom tê-las encontrado, porque são uma prova de que o passado não morreu.

— O passado não volta mais, nem mesmo as memórias podem revivê-lo — Crânio fechou a cara — Então para quê revirar velharias se elas só fazem mal?

Magrí balançou a cabeça. Ela o conhecia bem, sabendo que o rapaz não queria dizer o que de fato estava pensando.

— Você está muito equivocado, meu amor. O passado faz parte da nossa história — ela apontou para as fotos — Isto é a nossa história, você não pode simplesmente querer apagá-la como se apaga uma lousa. Então você me diz que a nossa história, como nos conhecemos foi algo ruim?

A carranca de Crânio aumentou porque ele sabia que não teria como rebater aquele argumento. Os olhos de Magrí estavam cheios d'água enquanto apertava as mãos dele. O rapaz estava confuso com os sentimentos uma grande bagunça.

Havia um objeto que carregava no bolso que o perturbava, o avisava dos reais motivos que o fez tirar aquela folga e voltar para o Brasil. A determinação, no entanto, estava muito abalada por causa das lembranças que jorraram na mente do ex-gênio dos Karas.

Magrí deixou uma lágrima cair, mas secou-a rapidamente. Ela se recostou no peito dele de novo querendo mais que tudo que o rapaz parasse de ser tão teimoso e cabeça dura e admitisse os seus reais sentimentos. Sussurrou:

— Você se sente culpado, não é? Você acha que a culpa foi sua dos Karas terem se separado?

Crânio abriu a boca, mas Magrí o cortou:

— Eu sei que é isso. Mas deixa eu te dizer uma coisa: todos nós tivemos culpa.

— Eu poderia ter evitado, Magrí — ele emendou depressa — Eu poderia ter sido honesto com... com o Miguel e ter dito a ele a verdade desde o começo. Eu fui muito burro.

— Ele sempre soube, Crânio, mas Miguel se fazia de sonso — ela suspirou — Ele nunca aceitou a verdade.

Crânio estreitou o braço em torno de Magrí ainda sem se deixar convencer pelas palavras dela. Ele pensou por alguns instantes e falou medindo as palavras.

— A reunião dos Karas... É o seu maior desejo agora, Magrí? É o que você mais quer?

A moça levantou a cabeça e o fitou nos olhos. Haviam diversas coisas escritas naqueles olhos, coisas que ela queria dizer a Crânio, mas não conseguia encontrar as palavras.

Desde quando se mudou para o apartamento novo ela pensava em como às vezes era ruim estar sozinha o tempo inteiro, sem ouvir a voz de nenhuma outra criatura humana. Toda a decoração que pensou com tanto esmero, não pensou apenas para si, mas com a intenção de que outra pessoa também desfrutasse do conforto e da beleza que transformara o até então imóvel sem graça.

Mas tinha medo, muito medo de dizer o que queria de verdade. O que desejava também ia além disso, um desejo antigo que nunca sumiu com o tempo. Como ele reagiria? Ele desejava isso também? Às vezes, era tão difícil entendê-lo..

— Sinceramente? Eu quero os meus amigos de volta, sim. Porém não é meu maior  sonho por agora...

Ela respirou fundo tentando tomar coragem, mas vacilou. Crânio parecia querer dizer alguma coisa e estava muito inquieto. Inseguro, o que era raro de se ver. Por fim, ele baixou a cabeça pegando uma das fotos dos Karas entre os dedos. Falou evitando olhar para Magrí.

— Acho melhor eu voltar para casa...

Ela precisou de toda a força de vontade para não gritar.

"Aqui é a sua casa!"

***

A foto antiga entre as mãos de Crânio ganhou cores e formas ao passo que o passado renascia. A foto era de um acampamento na mata que os Karas fizeram juntos em um fim de semana de 1985. A ideia de acamparem juntos era bem antiga, mas somente naquele ano conseguiram se reunir e viver "aventuras", que só ocorriam no imaginário deles.

— Então a Cuca sequestrou o menino malvado para fazer canjica no seu caldeirão fervente — Calú fez um sorriso maldoso olhando para Chumbinho — E ela pode estar por aí agora neste momento na floresta esperando o momento certo para pegar meninos desobedientes.

Chumbinho fez cara feia.

— Ah corta essa, Calú! Até parece que eu tenho medo dessas histórias de criança!

— Você está se borrando de medo que eu sei. Você não me engana.

— Você só está dizendo isso porque está bravo porque eu comi os seus marshmallows!

Crânio riu do outro lado do fogueira assando os marshmallows no espeto.

— Isso é verdade, Calú. Deixa o coitado do Chumbinho em paz.

— Em paz? Não se deixa crianças encrenqueiras em paz! Eu estou te dizendo, Chumbinho: a Cuca vai te pegar esta noite!

— Vá plantar bananeiras, Calú!

Por mais que se fizesse de valente, Magrí percebeu que Chumbinho tinha mesmo se assustado com aquela história da Cuca. Ela riu:

— Mas a Cuca só não vai atrás das crianças que não querem dormir? Pelo menos foi isso que a minha mãe dizia para mim.

— E também das crianças que fazem birra e são mal criadas — Crânio emendou — Mas eu nunca tive muito medo da Cuca. Eu tinha medo mesmo era da Mula Sem Cabeça.

Miguel que estava assando três espetinhos de marshmallow de uma voz só, riu:

— Mas eu também acho que a Cuca era pior. Minha avó costumava descrevê-la de forma tão nítida para mim quando pequeno que eu ficava bem impressionado.

Chumbinho engoliu o marshmallow e falou petulante:

— Vocês não vão me assustar com essas histórias de criança! Sabia que já está nascendo barba em mim?

Calú caiu na gargalhada ao lado dele.

— Você chama de barba três pelinhos? Puff, me poupe, Chumbinho. Sinto muito, mas você ainda é o pivete aqui. Eu sim já tenho um pouco barba.

— Nem vem, Calú, que você não tem é nada aí — Crânio provocou.

— Olha só, Crânio, eu só não te respondo como se deve em respeito aos ouvidos da Magrí, tá legal? Por que do contrário...

Magrí estava vermelha de tanto rir.

— Eu não sei de nada, não me envolvam nessa história.

Todos riram, mas logo se dispuseram a comer os marshmallows já assados, com Calú olhando com desconfiança para Chumbinho o tempo inteiro. Miguel quebrou o silêncio:

— Calú, tem um monte de marshmallows prontos. Tem para todo mundo.

— Eu sei, mas só eu sei assar da forma correta e do jeito que gosto...

Miguel revirou os olhos. Pelo jeito, aquela história ia longe.

— Aliás — continuou Calú — A Cuca também pega meninos que comem a comida dos outros, tá?

Crânio jogou um saco de marshmallows crus na cara de Calú.

— Assa logo do jeito que você quer e para de ser chato!

O ator dos Karas bufou indignado enquanto os amigos caíam na gargalhada. O ator dos Karas se aquietou mais no tempo que esperava os marshmallows ficarem prontos. Crânio ficou imerso em pensamentos até dizer:

— Engraçado, vocês já pararam para pensar que daqui a pouco tempo seremos maiores de idade?

Miguel beliscava um espetinho quando falou:

— Eu já tinha pensado nisso, Crânio. É esquisito... Deixar o Elite e tomar novas decisões.

— Eu já decidi que quero trabalhar por um tempo antes de ir para a faculdade — Magrí sorriu — Lembra do meu tio que tem uma agência de turismo? Ele disse que se eu quisesse eu poderia trabalhar com ele.

Chumbinho riu.

— Seria engraçado ver você vendendo pacotes de turismo, Magrí.

— Por quê? — ela passou as mãos no cabelo de forma orgulhosa — Meu tio diz que eu sei ser persuasiva.

Ela ouviu Crânio comentar bem baixo ao lado dela.

— Sempre foi...

A menina olhou para o garoto pelo rabo de olho com um belo sorriso, mas que passou despercebido para os outros, tão entretidos estavam pela fogueira e os marshmallows.

— Vocês estão esquecendo de uma coisa — disse Miguel — Aos 18, temos que nos apresentar ao Exército. Eu quero servir por pelo menos um ano.

Crânio se remexeu no seu lugar.

— Eu não esqueci a respeito disso. Não sei se vou passar na avaliação, mas se eu for chamado, não vou reclamar de servir por um tempo.

Calú franziu a testa.

— Eu não sei se quero ser chamado para servir o Exército. Quero ficar no teatro o máximo que puder e continuar estudando. Tem um curso rápido de atuação lá em Nova York que quero muito fazer... Também é uma forma de eu ficar mais próximo da Peggy.

Chumbinho baixou um pouco a cabeça.

— Enquanto vocês vão estar todos ocupados, eu ainda tenho mais tempo no Elite. Parece que vou ficar sozinho...

Magrí passou com ternura os braços pelos ombros do rapazinho.

— Que nada, Chumbinho. A gente vai ser ver muito, independente das escolhas que fizermos — ela olhou para os outros garotos — Mas se vocês servirem o Exército... Não sei, é tão restritivo em tanta coisa.

— Que nada, Magrí — Calú riu — Eles só vão limpar privadas, coisa que eu não quero mesmo.

Eles riram de novo como sempre riam dos comentários do ator dos Karas. Às vezes eles pensavam se a verdadeira vocação de Calú não era ser ator comediante em vez de ator de dramas.

Miguel se levantou e se despediu dos amigos indo para a sua barraca dormir. Chumbinho bocejou e também disse que ia dormir, mas não antes ouvir uma última provocação de Calú:

— Graças a Deus que cada um trouxe a sua barraca, porque eu não ia querer dormir perto do Chumbinho soltando pum adoidado.

Chumbinho ficou muito vermelho e tão indignado que não conseguiu articular palavras, enquanto Crânio e Magrí — e Miguel da entrada da barraca — faziam um esforço heroico para segurar o riso.

O garoto pegou o outro saco de marshmallows crus e repetiu o gesto de Crânio, jogando-o com força em Calú, que perdeu o equilíbrio e caiu para trás.

— Você me paga por isso, Calú!

Quando o menino entrou na barraca e fechou o zíper, os outros soltaram o riso preso na garganta. Miguel deu boa noite novamente e entrou.

— Olha a Cuca! — gritou o ator dos Karas.

— Meu Deus, Calú, você acordou inspirado hoje — comentou Magrí.

— Acordei tão inspirado que agora preciso repor minha inspiração — o garoto sorriu mostrando os dentes brancos — Boa noite para vocês, mas estou de olho, hein? Nada de se pegarem dentro de barraca.

— Como se você fosse um santo, né? — Crânio levantou uma sobrancelha.

O garoto apenas riu e deu o boa noite para os dois amigos. Sozinhos perto da fogueira, Crânio se aproximou de Magrí e a menina deitou a cabeça no ombro do rapazinho, enquanto ele a abraçava pelos ombros. Ficaram em um silêncio amigável ouvindo o som dos grilos e corujas ao longe na noite.

— Me promete uma coisa, Crânio? — disse ela em voz baixa.

— Sim?

— Me promete que ficaremos juntos?

O garoto levantou o rosto de Magrí com um sorriso carinhoso.

— Eu prometo que ficaremos juntos. Para sempre.

***

Aquela tarde de domingo estava bela e ensolarada. Magrí caminhava de forma preguiçosa pela calçada, voltando para casa após um almoço em família. Mal viu Crânio nos últimos dias após a conversa no apartamento. Ela compreendia que o silêncio dele significava que o rapaz estava pensando sobre o que ela disse — mas aquilo não ajudava a conter a ansiedade da jovem.

Magrí estava imersa naqueles pensamentos melancólicos quando viu pelo canto do olho que um carro andava devagar ao lado dela na calçada. O som da buzina a fez pular. Ela não conseguia ver quem era o motorista e já estava cogitando o pior — que seria sequestrada no meio da rua em plena luz do dia — quando o motorista saiu de dentro do carro e foi em direção a ela com um sorriso.

Ela não reconheceu o namorado de imediato por causa dos óculos escuros que ele estava usando por causa do sol forte, mas assim que se deu conta que era Crânio, ela arquejou e foi de encontro a ele.

— Você me assustou, sabia? Não faça mais isso — disse ela abraçando o rapaz pelo pescoço.

— Desculpe, minha querida — riu ele — Foi sem querer, eu juro. Eu fui no seu apartamento, mas você não estava. Eu estava indo em direção oposta quando te vi na calçada, daí dei meia volta.

O rapaz estava alegre e de bom humor, muito diferente do humor taciturno e melancólico dos últimos dias. Crânio tirou o óculos e abraçou Magrí com aquela força que não era nada violenta, ali mesmo no meio da calçada. Ela sentiu-se pega de surpresa pelo gesto, ainda mais quando ele baixou o rosto e deu-lhe um beijo apaixonado. A demonstração pública de afeto deixou a moça sem ar.

— O que você está aprontando? — murmurou ela entre os lábios dele — Eu te conheço bem, você não me engana.

Crânio riu abertamente e beliscou a bochecha dela com carinho.

— Você está ocupada agora?

Magrí franziu o cenho e em seguida sorriu.

— Não, por quê?

— Ótimo, eu estou te sequestrando neste momento. Vamos fazer um passeio na praia.

Magrí piscou.

— Mas... Mas eu preciso arrumar minhas coisas, trocar de roupa, pegar minha bolsa...

Ele sorriu:

— Você consegue fazer tudo isso em dez minutos?

***

Exatamente dez minutos depois, Crânio abriu a porta do carro para Magrí e os dois deixavam o apartamento dela e seguiam para descer a serra paulista. A moça conseguiu trocar de vestido colocando um mais leve, soltou o cabelo e para combinar com o namorado, também colocou óculos escuros. O rapaz a contemplou por alguns instantes antes de piscar e dar partida outra vez no carro.

— Qual praia estamos indo, meu amor?

— Ah isso você não vai saber, é surpresa — ele sorriu largamente.

Magrí fez m beicinho e durante o trajeto que saía de São Paulo, ela tentou de tudo para arrancar a informação dele sem sucesso. O casal ligou o rádio do carro deixando que suaves canções do Phil Collins ressoasse. Para a surpresa de Magrí, Crânio até cantou junto com ela várias músicas, que dez anos antes ele detestava.

A estrada para a serra estava com bom trânsito, e quando saíram da Rodovia Ayrton Senna, os corredores estavam quase vazios, para a sorte dos dois. Magrí conhecia bem as estradas de São Paulo e já levantava hipóteses para onde estavam indo.

— Deixa eu ver... Estamos indo para Caraguatatuba?

— Não.

— Bertioga?

— Humm, não... Se bem que eu cogitei Bertioga.

— São Sebastião, então?

— Não, mas é perto. Só que eu quero te levar em um lugar mais bonito.

Magrí tentava ao máximo se lembrar de todas as praias de que recordava, mas não conseguia adivinhar para onde estavam indo. Ela o abraçou, beijou, fez carinho e ameaças, sem sucesso. Crânio não disse uma palavra sobre o nome da praia — apesar de ter quase vacilado em vários momentos.

Quando chegaram em São Sebastião, foram até o centro da cidade. Crânio segurou a mão de Magrí com um sorriso. A moça sorriu de volta.

— Já sei para onde você está me levando.

Ele riu, beijou a mão dela enquanto embarcavam na balsa que já tinha uma fila formada. Tiveram sorte de chegar e embarcar logo em seguida, indo em direção a belíssima Ilhabela. Magrí não conseguia conter a ansiedade em descer logo da balsa e colocar os pés na areia macia.

Quando a balsa aportou em Barra Velha, Crânio guiou o carro em direção à praia da Feiticeira. O local tinha algumas famílias visitantes, mas o casal escolheu um canto mais afastado para ficar, em meio à vegetação da Mata Atlântica ao fundo. 

O azul da água brilhava como se fosse uma jóia reluzente se quebrava na encosta. O som da maré era suave em meio ao barulho ao longe dos banhistas. O sol ainda estava alto, deixando a temperatura perfeita para um banho de mar.

Magrí tirou algumas fotos com a velha Polaroid. Depois puxou a mão de Crânio e os dois correram como crianças felizes para o mar de roupa e tudo. Os dois pularam as ondas entre gracejos e risadas, jogaram água um no outro, nadaram, se abraçaram e amaram.

Crânio levou Magrí no colo de volta para a areia onde os dois se jogaram e deixaram o sol secarem suas roupas. Eles continuaram abraçados na areia, os dois com os olhos fechados e com sorrisos de felicidade. Magrí murmurou contra a pele do pescoço de Crânio.

— Sabe o que isso me parece?

— O quê? — ele murmurou de volta.

— O Jorge e a Renata de A Ladeira da Memória. Você já leu, né?

Crânio acenou.

— Lembra daquela cena que os dois fogem para a Pedra da Gávea? Parece a gente agora.

— Só que eu não sou um romancista como Jorge — o rapaz sorriu — E graças a Deus, você não é comprometida com outro como a Renata.

"E espero que não tenhamos o final trágico deles", pensou Crânio. Ele a abraçou com mais afinco.

Magrí suspirou.

— Eles se amaram muito, até a morte. Gostavam de ir para pequenos paraísos e acreditarem que tudo ficaria bem...

Os dois ficaram em silêncio deixando o sol beijarem as peles molhadas da água do mar. Crânio se mexeu e olhou para o rosto de Magrí.

— Você me perdoa pelo o que disse na sua casa sobre os Karas? Eu fui um idiota e você tinha razão. O passado faz parte de quem somos, por mais que doa.

A moça abriu os grandes olhos e sorriu sentindo um peso sair do seu coração.

— Claro que perdoo, meu querido.

— Acho que eu não sei lidar muito bem com isso como você tem lidado...

Ela apoiou os cotovelos na areia ficando com o busto levantado em direção ao rosto do namorado, fazendo carinho nos cabelos dele.

— Eu tenho um pressentimento de que as coisas vão se resolver mais cedo ou mais tarde.

Crânio, com os olhos semicerrados, franziu o cenho.

— Você acha mesmo?

— Sim, eu acho.

Os dois ficaram em silêncio e Magrí achou que o rapaz havia dormido ali mesmo na areia. Contudo ele abriu de novo os olhos, se levantou e ficou sentado puxando-a para perto de si. Ele parecia querer começar um assunto. Antes que ele dissesse qualquer coisa, Magrí começou:

— Eu estava pensando... Se você já tomou uma decisão sobre aquele assunto?

Crânio apenas acenou. Magrí sentiu o estômago afundar. Decidiu mudar a conversa rapidamente.

— Sabe, você não precisa ficar na casa dos seus pais o tempo inteiro... Sei que é muito cavalheiro, mas... Bem... Eu... Queria...

O rapaz a fitava com curiosidade e um sorriso brincava nos lábios dele.

— Queria...?

— Ah... Não sei...  

De repente ela o metralhou com palavras: 

— Estamos há tanto tempo juntos, nos damos muito bem. Eu não acho que brigaríamos muito, sabe? Eu sei que você deixa meia espalhada por aí, mas nada que umas ameaças não resolvam. Além do mais, tem espaço para os seus livros, e eu juro que não faço muito barulho, a não ser quando faço faxina...

Ele a interrompeu carinhosamente e dando risada.

— Magrí? Eu já entendi. Você quer que eu more com você enquanto eu estiver aqui?

Ela corou até o raíz dos cabelos e acenou timidamente. Na realidade, ela tinha um objetivo maior com isso para o futuro, mas não tinha tanta coragem assim naquele momento para aludir a outra palavra — pois dependia da decisão dele sobre a oferta do MIT. Sobre isso, ela temia mais do que tudo saber o que ele decidiu.

Crânio segurou o rosto dela entre suas mãos, e olhar que tinha era um que ela nunca tinha visto antes. Era de uma ternura, de um amor difícil descrever.

— Você sabe que eu amo muito você e quero vê-la feliz. Você merece muito, muito mais, Magrí. Nestes últimos dias, eu entendi finalmente porque às vezes você me olhava com súplica me pedindo alguma coisa, mas sem coragem de dizer em voz alta. Você não quer simplesmente que eu more com você, você quer mais. E eu já descobri há muito tempo, quando ainda estava nos Estados Unidos.

Crânio respirou fundo e continuou. Parecia que havia pensado naquelas palavras há muito tempo.

— Você vai me chamar de antiquado, mas eu quero fazer do jeito certo. Você merece isso. Eu sempre gostei de planejar toda a minha vida, seguir um curso que quando eu chegasse ao final dela eu pudesse dizer: "Puxa, vivi e não há nada de que me arrependa. Faria tudo de novo". E quando eu quero uma coisa, eu não desisto dela tão fácil assim.

Ele tirou um pequeno embrulho enrolado em um tecido do bolso da calça — que por incrível que pareça não tinha se molhado por estar bem guardado — retirando o pano.

O que Magrí viu fez ela arfar, colocando a mão na boca e sentindo os olhos lacrimejarem. Crânio abriu a caixinha de veludo contendo um delicado anel com três pedrinhas brilhantes no topo.

— Eu já me decidi, Magrí. Eu quero você. Você quer se casar comigo?


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: Um assassinato brutal nas redondezas do Colégio Elite deixa os alunos assustados. A notícia de que um "cachorro do demônio" estava matando gente por aí também perturba os Karas. Dani também fica muito perturbada, mas porque ela conhece os envolvidos do crime...



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