Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 11
Affari di Famiglia - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores! Espero que curtam esta primeira parte que se passa logo após os eventos de Pântano de Sangue. Pensaram que a história da máfia acabou? Tsc, pensaram errado...

Música: This Must Be The Place I Waited Years To Leave - Pet Shop Boys



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O ar da sala estava muito abafado. A única janela minúscula grudada à parede estava trancada. A fumaça que saía do charuto do delegado impregnava cada partícula de oxigênio que entrava pelas narinas de Crânio.

As mãos do garoto suavam e a garganta estava seca, mas não queria beber da garrafa d'água sob a mesa à sua frente. Piscou várias vezes e calculou há quanto estava ali, sentado naquela cadeira dura e desconfortável. As costas queria começar a doer, mas não ligou. Nada poderia lhe distrair ou tirar sua atenção.

Ao lado do delegado, que lia suas anotações tragando mais uma vez o charuto, estava a única pessoa conhecida do garoto, o detetive Andrade. O gordo policial suava e tentava limpar os pingos de suor da careca sem muito sucesso. O olhar dele percorria das folhas nas mãos do delegado para Crânio, como se desejasse que aquilo tudo terminasse logo. E realmente queria, era fato que o gênio dos Karas constatou na expressão do policial.

Na última cadeira, ao lado do detetive Andrade, mais mudo do que um monge na clausura, estava um homem de mais ou menos trinta anos de uma expressão muito severa e feições bem desenhadas. Era o único que parecia estar mais à vontade no ambiente, pois suas pernas cruzadas sobre a outra e o olhar um pouco blasé ao mastigar as pastilhas para garganta da mesa do delegado, indicavam claramente para Crânio o tédio do homem. Não suava e o cabelo negro perfeitamente penteado continuava no lugar, ao contrário do seu próprio, que estava mais desgrenhado do que nunca e não sabia o que era um pente há mais de duas semanas. Na lapela do casaco do homem havia um crachá pendurado onde lia-se Samuel Tyler, Interpol.

O longo suspiro e estalar de dedos do delegado despertou Crânio de suas observações.

— Muito bem, meu rapaz. A sua história bate perfeitamente com as investigações feitas pela polícia de São Paulo nas últimas semanas, além das informações extras da polícia federal depois do ocorrido... — ele pigarreou — Pelo menos a impressa tem algo para se ocupar por um bom tempo... Depois da gafe da coletiva de imprensa, tanto melhor...

Crânio sorriu fracamente pelo comentário do delegado. Sabia muito bem o que, ou melhor, quem tinha garantido que as investigações em São Paulo continuassem. O coração do garoto sempre batia um pouco mais forte quando pensava nela. Sentia saudades da mocinha, principalmente depois dos horrores no Pantanal.

Após a chegada em São Paulo, Crânio esperava que tivesse um pouco mais de sossego quando retornasse à cidade. Porém, no fundo ele sabia que mais cedo ou mais tarde, a polícia iria procurá-lo para depor a respeito do seu encontro com tia Matilde e os acontecimentos que se seguiram. Até ali, as perguntas foram fáceis de responder e esperava que com o seu relato, o delegado ficaria satisfeito.

No entanto, sabia muito bem que as coisas não seriam tão simples assim. Teve certeza quando o delegado começou a falar numa voz pausada, medindo cada palavra:

— Eu ainda tenho algumas perguntas ainda para você, meu garoto. Talvez soem muito intrusiva, mas veja bem, o caso é delicado e pode até gerar um mal estar internacional se não tomarmos precauções. — ele pausou novamente para tragar o cigarro — A minha pergunta é: você sabe de algum envolvimento maior de algum membro da sua família com a máfia da siciliana?

Seis pares de olhos o fitaram. O delegado com curiosidade, o detetive Andrade com apreensão e a boca um pouco aberta e o agente da Interpol como se quisesse ver através de Crânio.

Andrade pigarreou:

— Olha senhor, eu acho que a questão não precisa ir para esse lado... Já temos provas o suficiente para...

O detetive se calou por conta do olhar de repreensão do delegado. O único que permaneceu imóvel observando a cena com um olhar penetrante foi o tal do Samuel Tyler.

Crânio tinha ciência que uma hora ou outra as perguntas chegariam a esse ponto, porém pela primeira vez na vida, não sabia o que dizer. Sentia-se uma criança encurralada após fazer uma travessura, com toda a sua segurança e confiança em si mesmo, que adquiriu tão precocemente, se esvaziando como um balão de ar.

Não sabia nada a respeito de algum membro de sua família — tirando tia Matilde — que tenha tido algum envolvimento com a tal da máfia da Sicília. Era verdade sim, que alguns de seus ancestrais por parte de mãe viveram naquela famosa região da Itália. A própria mãe do gênio dos Karas viveu alguns anos no país antes de vir para Brasil, quando ainda era uma criança.

Mas ele sabia que sua mãe tinha apenas vagas memórias e quase nenhum contato com seus familiares de lá. Ele também tinha poucas recordações dos familiares quando passou férias na região quando era bem pequeno. Não vacilou ao responder:

— Eu não sei de nada, delegado. Não tenho contato com nenhum familiar que mora na Sicília.

O delegado tragou mais uma vez o charuto, ignorando os olhares raivosos de Andrade.

— Sua tia Matilde mencionou algum nome que possa nos ajudar?

Crânio balançou a cabeça em negação. O detetive Andrade não conseguiu mais se conter.

— Olha senhor delegado, a maioria das informações que o garoto sabe foi eu mesmo que passei. Só sabemos que tia Matilde estava viúva do irmão do avô de Crânio quando se casou com Don Vitório, o chefão da máfia siciliana, morto em circunstâncias misteriosas há pouco menos de um ano. Para sabermos mais precisamos da ajuda da Interpol para...

— Detetive Andrade, por favor, eu sei quais são os passos de uma investigação desse calibre — interrompeu o delegado secamente — O senhor, no entanto, deve saber que a situação é muito mais grave do que aparenta. O que aconteceu no Pantanal foi apenas a ponta do iceberg. E o garoto pode nos ajudar de uma forma ou de outra.

O gordo detetive se calou sem jeito. O delegado voltou a analisar a papelada diante dele, mas Crânio não desviou o olhar de Andrade com a testa franzida. Um pensamento passou por sua mente prodigiosa a respeito do significado das palavras do delegado.

O agente da Interpol continuava calado, apenas observando o desenrolar da cena como um espectador, mas não tão mais entediado como antes. Parecia compreender o que estava acontecendo, pois pela primeira vez se dirigiu ao delegado falando em um inglês carregado de sotaque afrancesado:

— I think these questions to the boy arrre enough, sir. I don't think he knows more than us.

Os dois trocaram olhares misteriosos, até por fim o delegado concordar com o agente, o que não passou despercebido nem para Crânio e nem para o detetive Andrade.

A entrevista aparentava estar encerrada, quando o delegado se levantou, acompanhado do agente, dirigindo-se a porta da delegacia. O garoto e o amigo detetive foram logo atrás.

Crânio ficou por último na fila, enquanto o agente Tyler estava à sua frente. O homem, no entanto, parou e girando os calcanhares para o gênio dos Karas e tendo certeza que ninguém estava mais prestando atenção neles — desferiu, com um olhar perfurante e o tom de voz seco:

—Anything you know about the past offf your family, you must tell me as soon as possible. Don't trrry to hide anything, boy. Take it.

O agente deu o cartão de visitas com nome e um telefone e saiu, deixando o garoto para trás, este que não mais sentia a gravidade fincando-lhe ao chão.

***

Magrí esperava de forma impaciente no meio da biblioteca silenciosa e quase vazia. Estava em um ponto estratégico entre duas grandes estantes abarrotadas de livros, folheando um edição antiga de Dom Quixote, mas olhando de tempos em tempos para a porta alguns metros à sua frente. Tentou em vão se distrair com as peripécias do Fidalgo de La Mancha que tanto gostava e que havia lido tantas vezes, porém tudo em vão. O tempo passava e a moça ficava cada vez mais impaciente, enquanto que a biblioteca ficava cada vez mais vazia, pois já era fim de tarde.

Por fim suspirou de alívio ao ver a figura de Crânio adentrar a biblioteca, conversar rapidamente com a bibliotecária com uma pequena pilha de livros na mão e ir para perto dela. Com destreza, o garoto ia colocando os livros de volta na prateleira, não sem antes dirigir um sorrio tímido a garota como um pedido de desculpas pela demora.

Mesmo à meia luz, a menina percebeu que o rapazinho ainda estava muito machucado da sua aventura perigosa no Pantanal. As mãos ainda estavam um pouco esfoladas como se estivessem em carne viva, ainda enroladas numa bandagem. O rosto também continuava arranhando, mas parecia ter melhorado mais rápidos do que as mãos.

Haviam, no entanto, outros detalhes também que a deixaram até um pouco desconcertada, fazendo-a corar enquanto o observava. Estava mais bronzeado e um pouco mais alto e bem... Para sua surpresa, ocasionou que um calor que não tinha nada a ver com o tempo, subisse pelo seu corpo.

Balançou a cabeça se repreendendo pelos pensamentos não muito inocentes, tentando disfarçar o embaraço como se estivesse muito concentrada no livro.

— Tá tudo bem, Magrí? Por que você me chamou? — cochichou o garoto tentando falar o mais baixo possível para os outros alunos não escutarem.

A menina pigarreou, arrumando uma mecha de cabelo teimosa que lhe caía no rosto. Não tirou os olhos do livro ao sussurrar de volta.

— Eu é quem pergunto. Você prometeu no aeroporto enquanto voltávamos para cá que ia me contar detalhes do que aconteceu enquanto você estava sequestrado.

Crânio desviou o olhar do garota e acariciando uma lombada de um dos livros que havia guardado. Parecia protelar em um conflito interno por longos minutos. Magrí esperou tentando conter a impaciência e a curiosidade.

O gênio dos Karas omitiu alguns horrores que havia vivido dos amigos — mesmo tento ciência de que eles sabiam que não contou toda a história. No entanto, Magrí não ia se contentar com meias verdades.

Era um fato que ela sempre preferiu saber tudo, mesmo não sendo agradável. Era isso que a fazia ser uma garota tão extraordinária e até incomum, que ocasionava com que Crânio a admirasse tanto.

Com carinho, Crânio olhou-a como se acariciasse o rosto macio da menina apenas com os olhos.

— O que quer saber, então?

Magrí folheou com preguiça o livro e mordeu o lábio inferior. Suspirou e com uma expressão de dor, olhou para o rapazinho:

— Eles bateram muito em você?

O gênio dos Karas desviou o olhar da garota, aparentando estar muito concentrado nos livros à sua frente que mal conseguia ler os títulos. Alguma coisa o incomodava naquela conversa, porém ele não conseguia nomear propriamente o que era. Talvez outra pessoa ficaria aliviada por finalmente "falar de seus traumas". Mas não ele.

A experiência que viveu e os sentimentos que envolveram ainda estavam muito frescos no seus espírito para serem dissecados em uma conversa paralela no meio de uma biblioteca.

Ele se perguntava se Miguel compreenderia melhor, já que ele também caiu nas mãos de sequestradores. Contudo, esses sequestradores não o espancaram e o ameaçaram de todas as formas possíveis como o Centurião e seus capangas. E pior do que isso, estavam a mando de sua tia Matilde.

Ainda estava perdido nesses pensamentos sombrios quando sentiu que o Magrí o abraçou pela cintura, encostando a cabeça em seu ombro, com um leve suspiro. O garoto soltou os livros que arrumava na estante, abraçando-a de volta pelos ombros e evitando olhar diretamente para ela.

Aquela proximidade toda que possuíam ele se perguntava se era uma coisa só deles, ou se Magrí também demonstrava o mesmo afeto para Miguel e Calú. Era provável que sim, mas algo um pouco adormecido lhe dizia que a menina lhe devotava um carinho especial, mesmo seu lado racional dizendo que estava imaginando coisas.

— Sim, eles me bateram e me ameaçaram — respondeu por fim, num sussurro inaudível.

Magrí estremeceu e o rapazinho apertou o braço em volta dela como se a consolasse.

— O que aconteceu no interrogatório? O que eles queriam com você?

Crânio engoliu em seco. As palavras do delegado ainda ressoavam em sua mente como um presságio macabro. O encontro com o misterioso agente da Interpol também o deixou mais perturbado. Havia um interesse quase maníaco nele sobre aquele caso, o que não era muito comum para policias do seu calibre, disso Crânio tinha certeza.

— Eles queriam saber se eu tinha alguma informação sobre o envolvimento de algum membro da minha família, além de Tia Matilde, com a máfia siciliana.

A voz do gênio dos Karas saiu em uma raiva contida que estava borbulhando no seu peito por semanas. Havia pensado demais em tudo o que aconteceu e as conclusões que chegava só piorava seu espírito e seu humor.

Magrí havia percebido isso, pois o rapazinho desde que chegou dificilmente sorria, estava mais taciturno e o humor espirituoso que tinha estava apagado, substituído por melancolia. Estava pior do que Miguel após os eventos da droga da obediência.

A garota não disse nada, ficando em estado contemplativo, ainda abraçada ao amigo. O calor de Magrí e o perfume que ela exalava era consolador para Crânio, em meio àquela confusão que havia se metido. Pela primeira vez, teve coragem de dizer um pouco dos pensamentos que o perturbava em toda aquela história triste.

— Você sabe o que é pior de tudo isso, Magrí?

Ela balançou a cabeça em negação.

— O pior de tudo é saber que a sua família tem envolvimento com uma máfia sanguinária e está envolvida no assassinato do seu professor favorito.

A raiva voltou a acentuar cada palavra do gênio dos Karas. Magrí enrijeceu e levantou a cabeça. Mesmo no escuro, fitou profundamente os olhos do rapazinho em meio ao frenesi de vários pensamentos que circulavam em sua mente.

— Crânio... Não me diga que você está com raiva dos seus familiares?

Ele não respondeu de imediato, fingindo estar concentrado nos livros que arrumava. Magrí suspirou e tomou o livro da mão dele com uma expressão de preocupação. Enfim, com um suspiro triste, o garoto desferiu:

— Eu não consigo olhar para a cara dos meus pais desde o dia que eu cheguei.

A menina o abraçou com mais força.

— Mas eles não têm culpa de nada, você sabe disso. Você está sendo injusto.

Ele trincou os dentes.

— Eu sei, eu sei. Mas eu... Bem, estou zangado com tudo. Só isso.

Os dois ficaram em silêncio, imersos em seus próprios pensamentos. Até por fim, Magrí quebrar o silêncio com um sorriso sapeca, mudando de assunto:

— Você não vai fugir da festa das famílias da "alta sociedade" — ela fez o sinal de aspas — Amanhã não né? Calú, Miguel e Chumbinho estão fazendo de tudo para fugir!

O garoto gemeu.

— Acho que eu também vou dar um jeito de fugir, Magrí...

— Eu sei que não é divertido, mas pode ser uma boa distração para tudo isso. E eu não queria ficar só...

— Mas e as suas amigas? Elas não vão?

Magrí fez um beicinho.

— Elas vão para ficar namorando e sempre me largam sozinha.

A festa referida era uma que acontecia todos os anos em São Paulo, onde reunia as famílias mais importantes e influentes da cidade para uma socialização. Normalmente era tudo uma burocracia para a família não ficar mal falada em tais círculos sociais, mas os mais jovens sempre odiavam o evento. Os Karas eram um deles.

Naquele ano, no entanto, pelo jeito não haveria escapatória ou desculpas para nenhum deles. O que servia de consolo era que pelo menos poderiam trocar mensagens e rirem discretamente de toda a pompa desnecessária de membros de outras famílias que gostavam de serem pavões.

Crânio iria protestar que não iria, mas a carinha de súplica da menina realmente o desarmou por completo. De novo, perdeu um pouco o curso do pensamento.

Revirando os olhos, confirmou que iria e o rosto de Magrí se iluminou. Pelo menos vê-la feliz valeria a pena em tudo aquilo.

— E eu faço questão de ouvir seus comentários sobre as figurões da festa — disse ela sorrindo.

Pela primeira vez em quase duas semanas, o gênio dos Karas sorriu de verdade:

— Então eu faço questão de deixá-la feliz.

***

No aeroporto de Congonhas, um homem esperava com paciência pela chegada do motorista particular que havia contratado ainda em solo italiano. Franziu a testa ao observar a loucura da capital paulista, que era um pouco diferente da loucura de Nova York ou de Roma em alta temporada. Ainda estava imerso naqueles pensamentos quando o motorista chegou, já colocando as malas no carro.

O homem entrou rapidamente. Do bolso do pesado casaco retirou um papel fino que mostrava a riqueza do remetente. Era um convite para a festa das famílias importantes de São Paulo, no qual estava se auto convidando a participar. Esperava que encontraria quem estava procurando para finalmente ter o seu acerto de contas.

Sorriu.

***

Crânio jogou-se na cama com um suspiro de cansaço. Olhou para o teto numa tentativa frustrada de não refletir em tudo o que o atormentava. Havia um bilhete no bolso da calça jeans que parecia queimar sua pele, cada poro dela. Precisaria sair novamente dali a meia hora para uma reunião urgente dos Karas que ele mesmo convocou. De novo.

No entanto, pareciam que suas forças estavam querendo sair do corpo. Não estava com medo. Não, era o medo propriamente dito do inimigo que estava se aproximando dele a cada segundo. Era o medo do que ele seria capaz de fazer para conseguir o que quer.

Pegou novamente o papel já amassado. A letra era garranchada, escrita às pressas e num frenesi de nervosismo. O gênio dos Karas imaginava o quão nervoso ou nervosa o remetente estava quando escreveu:

Ele está atrás de você. O herdeiro da máfia siciliana quer se vingar.

***

Em uma café em Roma, 2 anos antes

O sol estava a pino no famoso Baccio Cafe, que como sempre estava lotado de turistas falando e gesticulando alegremente. Em uma mesa distante, próxima a janela que dava vista pela bela esquina de Via del Corso, estava uma senhora muito elegante de mais ou menos cinquenta anos que tragava um cigarro, enquanto que o café à sua frente esfriava. Estava um pouco frio naquele dia, por isso seu corpo delgado estava envolto num luxuoso casaco de lã preta que lhe caía até a cintura.

Um homem bonito da mesma idade da senhora elegante adentrou o café, seguido por um outro rapaz bem mais jovem. A luz do café refletiu nos fios corretamente brancos do homem mais velho no lado esquerdo da cabeça, parecendo que eram luzes a tinta. Os olhos negros e miúdos cravaram na senhora que fumava. Com passos largos, o grisalho dirigiu-se a ela, com o rapaz mais novo em seus calcanhares.

Ambos sentaram-se nos dois lugares à frente da senhora. Chamaram o garçom e pediram café preto sem açúcar e alguns biscoitinhos.

Apesar do calor do dia, os dois homens estavam com trajes sociais, porém o mais novo claramente suava e os pingos apareciam em parte do seu cabelo cor de areia.

Os olhos negros do homem mais velho cravaram-se de novo na senhora. Com uma voz abafada e um pouco seca, quase sussurrando, ele comentou:

— Não tinha outro lugar mais reservado, Matilde? Aqui está apinhado de turistas...

Matilde sorriu sem humor, enquanto bebericava do seu café.

— Ora, Vitório. Não havia lugar mais perfeito e menos suspeito do que aqui — fitou o rapaz mais novo com carinho maternal — Como está meu bambino favorito?

O rapaz sorriu sem graça. Sem responder, acendeu um cigarro e passou o observar o nada à frente dele. O homem chamado Vitório estalou a língua em desdém.

— Ele não é mais uma criança, Matilde.

A mulher deu de ombros sem dizer nada. O mais velho continuou:

— Está tudo resolvido por hora sobre a papelada do testamento. O problema agora são as malditas taxas bancárias que está dilacerando nossa fortuna. Não podemos deixar mais nada na Suíça, minha querida.

Matilde acendeu mais um cigarro acompanhando seu bambino, ainda sorrindo por detrás da fumaça. Com um leve suspiro, acariciando a mão de Vitório que descansava à mesa, disse:

— Eu sei, eu sei meu querido. Sei que isto está lhe tirando o sono. Mas temos que ter paciência e cautela. O que acha que podemos fazer, Paolo, meu querido?

O rapaz arregalou os olhos, enquanto Vitório o encarava com crítica, um contraste do olhar maternal da mulher. Paolo pigarreou.

— Ãnham... Eu não sei exatamente, signora. Seria bom se pudéssemos ficar próximos da fortuna, não?

— Exatamente, meu querido. Por isso gosto tanto de você — ela sorriu — Pois pensamos iguais.

— E qual seria a sua ideia, Matilde? — Vitório soou impaciente.

Matilde tragou mais uma vez o cigarro e tomou um gole do café que ainda fumegava. A impaciência de Vitório só aumentava a cada segundo que se passava.

— Podemos esconder a fortuna em um local onde sempre estaremos vigiando. Paolo sabe deste plano, não sabe meu querido?

Paolo assentiu nervoso evitando o olhar desconfiado de Vitório. Este último franziu a testa, bebendo mais um vez do café quase frio. Os olhos faiscavam.

— Não temos muito tempo para brincadeiras, Matilde. Os Cordopatri não vão esperar de braços cruzados nós tomarmos uma atitude. Lembre-se que eles irão fazer de tudo ao alcance deles para pegar nosso dinheiro.

— Eu sei bem disso, querido. Não se preocupe, você irá gostar do que planejamos e espero que aprove.

Com uma voz mais sussurrada entre as baforadas do cigarro, a mulher contou ao marido o que tinha pensado para salvar parte da soma considerável de dinheiro da família, que estava guardada nos bancos da Suíça.

O problema era que a família rival, os Cordopatri, estavam no encalço desta herança acreditando ser do direito deles usufruí-la, já que foram eles que ajudaram os Franchetti a se tornarem influentes na Sicília.

Os Cordopatri estavam usando de influências econômicas na Europa e até alguns diplomatas que serviam a família esperando obrigar Don Vitório Franchetti a pagar as tais "taxas de câmbio", que nada mais eram do que uma maquiagem que seria paga à família rival por baixo de panos quentes.

Havia mais nessa história, no entanto. Poucos tinham ciência do real motivo da rivalidade dos Franchetti e dos Cordopatri, que ia além da rivalidade no comércio de armas de fogo ou da influência sob as outras famílias sicilianas. Os detalhes ninguém, a não ser os seus protagonistas, sabiam.

Don Vitório escutou todo o plano inicialmente com desconfiança, mas pela persuasão de Matilde e alguns comentários adicionais de Paolo, deixou-se convencer e de fato achou a ideia brilhante. Ninguém jamais encontraria a herança da família daquela forma!

Satisfeito, Don Vitório pela primeira relaxou com um cigarro. Fitou Paolo com um olhar que se aproximava da ternura, o que muito satisfez Matilde.

— Espero que você dê conta de cuidar de sua mãe e dos negócios da família se um dia eu deixar esta vida cedo demais, meu garoto. Não me decepcione.

Com uma expressão mais lívida, porém ainda séria, Paolo não desviou o olhar do pai.

— Eu não irei, pai. Prometo.

— Você é genial — Com amor, Don Vitório segurou a mão de Matilde.

Ela sorriu satisfeita retribuindo o carinho.

— Quem vai desconfiar de uma velha fazendeira vivendo no Brasil com o seu jatinho particular?

Continua...


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Notas finais do capítulo

A coisa vai ficar um pouquinho feia, só avisando rs.

Até a próxima!



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