Yume escrita por Zatanna


Capítulo 6
Parte V: Regra VI




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/747018/chapter/6

Quarto: Juízes não podem trabalhar lado a
lado com a vida porque isso irá quebrá-los.

 

Decim arrumava os copos, mais uma vez, mesmo sem motivo, visto que ninguém os tinha bagunçado. Talvez tenha se tornado um hábito nos últimos três meses quando não tinha o que fazer. Ele poderia também passar um tempo construindo os seus adoráveis manequins e usá-los como marionetes, porém estava sem vontade.

Olhou para a manequim sentada com os dois bonecos pequenos e toscamente construídos em seu colo. Decidiu ler Chavvot; seria uma boa lembrança e também um bom momento para entender e esperá-la um pouco mais.

Quando deu seu primeiro passo, o telefone tocou.

— Pois não.

Do outro lado da linha, ouviu a voz de Nona, reconhecível em todos os momentos – e também a única que o telefonava com exceção de Quin, pois algumas vezes desejava beber seus drinques.

Você atenderá um trio, dessa vez. Não me decepcione”.

— Eu nunca julguei mais de duas pessoas em jogos, Nona-san, talvez as minhas habilidades não sejam boas o suficiente para o que deseja.

Não me importa, faça e não erre seu julgamento. Use o que aprendeu com Chiyuki e minha vitória não será em vão”.

— Não consegui compreendê-la, mas cumprirei com o desejado.

“Enviarei as memórias, em alguns minutos, eles estarão aí”.

Nona desligou.

Chiyuki. Ela havia dito o nome e não, a humana ou a mulher. O que havia ocorrido naquele meio tempo? Decim não sabia dizer, mas gostou de saber que mais alguém se recordava de sua assistente por quem era e não, pelo que era

No entanto, o juiz não teve mais tempo para pensar nisso. Memórias invadiam a sua mente e traziam diversas lembranças unidas de três crianças que, separadamente, trilharam seus caminhos para depois se reunir.

Dois meninos que se apaixonaram por uma mesma garota. Os três eram melhores amigos, nascidos próximos. Ambos a olhavam com carinho, depois, com desejo. Ela os olhava da mesma forma. Mas os três morreram, juntos. Em uma loucura causada por uma outra pessoa.

Decim ouviu o elevador, eles haviam chegado.

Duas pessoas trocaram palavras brevemente, antes de seguir em frente e chegar ao bar da Quindecim. Os dois homens trajavam ternos elegantes e encaravam tudo com estranhamento. O homem loiro entrou primeiro por alguns passos, aturdido com o lugar que desconhecia, por sua vez, o jovem de cabelos escuros parecia entediado com aquela situação. 

— Entrem. Sejam bem-vindos ao Quindecim.

E sorriu. Como Chiyuki havia dito para fazer.

Os dois homens o encararam, até mesmo o mais desinteressado parecia prestar atenção agora.

— Eu sou o bartender, Decim — disse, fazendo sua reverência costumeira. Nenhum dos dois disse alguma coisa, nem mesmo um mísero olá. — Se me permitem, eu devo efetuar uma pergunta. Vocês se lembram de algo de antes de chegar aqui?

Um olhou para o outro por algum tempo, porém foi o loiro que respondeu:

— Lembro de estar indo para a casa da Misaki — Olhando para baixo, tentou se recordar de mais algo. — Também lembro de ter esbarrado com ele.

O humano apontou para o outro, que parecia pensativo.

— Muito obrigado — Mais uma vez, o barman fez uma leve reverência. — E você, senhor?

— A mesma coisa, mas não lembro de mais nada depois que entramos no apartamento.

Decim encarou os dois, ele poderia prosseguir se fosse como os casos normais, no entanto, não seria assim. Ambos se sentaram um de cada lado, com uma cadeira os separando – parecia que estavam preparados para a próxima cliente.

— Muito obrigado por partilhar — respondeu com educação. — Peço para que esperem um pouco, mais uma cliente chegará hoje. Os senhores desejam alguma bebida?

Antes que pudessem responder, os três ouviram o elevador. Passos eram ouvidos aos poucos, hesitantes e inseguros. O semblante dela demonstrava isso quando apareceu e viu três expressões curiosas voltadas à sua direção.

Duas eram suas conhecidas e amadas.

— Touya? Shion? — murmurou, com um sorriso nos lábios. — Onde estamos?

Ela andou até eles, aos poucos, olhando para todos os lados e para o barman, sem ainda perceber o manequim parado no balcão. A mulher encarava o luxo do bar, percebendo cada detalhe, até que parou seus olhos em algo que representava uma mulher, em seguida, encarou o homem desconhecido.   

— Olá, meu nome é Misaki — disse empolgada e estendendo a mão para Decim. — Qual é seu nome?

— Seja bem-vinda ao Quindecim — respondeu-a e reverenciou, sem pegar na mão dela. Na verdade, ele não havia compreendido o gesto para com ele. Humanos cumprimentam quem os atendia dessa forma? Ninguém nunca havia feito isso na apresentação. — Eu sou o bartender, Decim.

Misaki recolheu a mão, sorrindo sem graça. Logo, sentou-se entre os dois homens, segurando seus braços e, por pouco, não envolvendo suas mãos nas deles. Decim voltou a falar:

— Se me permite, eu devo efetuar uma pergunta. Você se lembra de algo de antes de chegar aqui?

— Eu lembro que Touya — Misaki encarou o moreno e, depois, o loiro. — E também o Shion chegaram em minha casa, mas não me lembro direito depois disso. Vocês combinaram de me trazer aqui? É um lugar incrível!

Ela girou na cadeira, observando tudo. Os detalhes do teto, as bebidas e o quatro atrás do balcão, as expressões dos três e percebeu que tanto Touya quanto Shion queriam falar. Mas não prestou atenção, sabia que algo estava diferente. Ela era uma artista, uma pintora, tudo aquilo parecia incrivelmente fascinante em sua mente, fascinante e único como se aquelas cores não pertencessem ao mundo. Mais uma vez, parou no manequim.

— Quem é ou era ela?

O barman moveu sua expressão para surpresa, o que fez com que a garota reparasse, desde o momento que sentou, alguma emoção em seus olhos. Sorrir, mas não sorrir com os olhos era triste.

— Minha antiga assistente — O sorriso voltou, mas Decim mascarou as emoções que passaram em seu semblante. — Alguém importante. Desculpe-me incomodá-los, mas preciso que escutem as regras com atenção. Primeira: eu não posso responder à pergunta sobre o lugar em que estão. Segunda: Agora, vocês jogarão um jogo. Terceira: o conteúdo de tal jogo será escolhido pela roleta. Quarta: Neste jogo, vocês apostarão suas vidas. Quinta: até que o jogo acabe, não poderão deixar este bar.

— O quê? Você está louco? Não vamos jogar nada até sabermos como paramos aqui, nem espere que vamos apostar nossas vidas com isso! — exclamou Shion, irritado, levantando-se de seu lugar e encarando o dono do bar. — Como você nos trouxe aqui? Por que você quer que joguemos? Misaki, nenhum de nós trouxe você aqui, acho que entendeu isso, certo? Não sabemos como viemos e ele ainda quer que nos arrisquemos! Vamos achar um jeito de ir embora.

— Sinto muito, mas vocês não poderão deixar esse lugar até que joguem — respondeu Decim as questões, chamando atenção dos três. — Infelizmente, não posso responder a outra questão, senhor Shion.

Shion esticou a mão para pegar a gola do barman, porém, Misaki o interrompeu, antes mesmo que Decim pudesse usar suas cordas para impedi-lo. A moça sorriu gentilmente, mais uma vez, e perguntou:

— Se jogarmos, podemos ir?

— Sim, senhorita.

— Então, jogaremos.

Os outros dois a encararam e depois olharam para Decim, vendo-o colocar um botão vermelho na frente deles e um painel com uma figura infantil aparecer. Shion reclamou, dizendo que ela não poderia decidir por eles, no entanto, Touya colocou a mão no botão e o apertou.

O homem de cabelos escuros observou o amigo de infância, aquele olhar transmitia segurança e foi dessa forma que Shion se sentiu. Seguro. Desde sempre, Touya era quem transmitia calma e tranquilidade para o grupo, pensando nas situações quando ninguém mais pensava.

Ele tinha se esquecido isso com o passar dos anos.

Uma pequena memória dele machucado na beira de um lago e chorando, veio a sua mente. Misaki estava desacordada, o menino já havia a chamado diversas vezes, mas ela não acordava. Touya segurou seu ombro para, após, pegá-la nos braços, levando-a para o médico. Estava tão desesperado que não tinha pensado em fazer algo tão simples como aquilo.

Ao apertar o botão, o painel com a menina estampada teve partes brilhante. Uma a uma. Até que finalmente parou e virou: pinball das memórias; estava escrito em neon. Os três se encararam e Misaki riu.

— Acho que vai ser diverti-

Interrompeu-se, quando ouviu uma explosão atrás deles. Um espaço grande se abriu e os humanos se encararam surpresos. Levantados e preocupados, observaram o barman ir à frente deles, sem alterar a expressão.

 No centro, havia uma máquina de pinball. Seus detalhes eram bonitos, havia uma bola colorida presa na trave, estrelas – como as pinturas de Misaki – desenhadas pela extensão do objeto e outros desenhos elegantes que ela tinha feito, tinha certeza disso. Na ponta superior, havia três bolas com desenhos toscos de crianças: uma loira, uma morena e outra ruiva.

— Somos nós? — questionou Touya, pela primeira vez. — As crianças desenhadas ali?

— Somos — murmurou Misaki, antes que Decim pudesse responder, com lágrimas nos olhos. — Como você conseguiu? Foi o meu primeiro desenho, o desenho que fez com que...

Ela virasse pintora. Como estava ali? Misaki não conseguia compreender como algo tão simples e antigo, que achou que havia se perdido no mundo, estava fazendo ali. Faltava a irmã mais jovem de Shion, Maria, mas era provável que não estivesse porquê ela não estava jogando também. Antes que pudesse fazer outra questão, o barman disse:

— Vocês possuem uma vida cada um. O que tiver maior pontuação irá ganhar o jogo, o de menor pontuação irá perder — explicou enquanto o olhavam atentamente. — A cada vez que uma bola alcançar um dos desenhos, uma frase ou palavra aleatória que corresponde suas memórias irá aparecer.

— O com menor pontuação estará arriscando a sua vida?

A questão não surpreendeu o homem de cabelos brancos.

— Todos estão arriscando suas vidas, senhor Touya — falou, sem muitas delongas. — Sinto muito. Quem irá começar?

— Divirtam-se, rapazes — Misaki bateu de leve nas costas dos dois, acariciando-os em seguida. — Façam muitos pontos!

Decim encarou-a. Algo nela estava errado, mas deixou que o jogo prosseguisse. O primeiro foi Shion que, por três vezes, parou no tempo e quase perdeu sua bola. Na quarta vez, não conseguiu se manter ereto e nem prestando atenção com a frase: ela sempre o amou.

E era verdade, para Shion. Ele tinha certeza que os sentimentos de Misaki sempre foram voltados para Touya. Desde o início, os olhos dela, a voz e todo o resto eram voltados para ele.

No mesmo instante, Touya sentiu o mesmo baque. A mesma insegurança. Recordando-se de uma discussão que tivera com Misaki, seguido de um beijo, ela disse estar confusa, mas era óbvio que amava Shion.

O menino loiro bateu na máquina quando a bola caiu.

— Ela sempre amou você — disse a Touya, mordendo os lábios e sentindo sua força se desmanchar. — Sempre, eu sempre estive a beira do sentimento que Misaki tinha por você.

— Shion...

— Não é verdade — retrucou, chamando a atenção do amigo. — Ela sempre esteve na dúvida entre nós dois. Eu nunca fui o suficiente para supri-la porque você existia no coração dela. Minha vez de jogar.

Por um momento, Decim acreditou que o humano soubesse que estava morto, mas foi por um ínfimo instante. Contudo, algo de surpreendente fez com que Decim encarasse o jogo com surpresa.

O humano simplesmente deixou a bola cair. Na primeira vez, quando a bola bateu em Shion e duas palavras apareceram: melhores amigos. O rapaz se afastou da máquina e ficou em frente a Decim, sendo observado pelos outros dois.

— Eu entendi agora.

Touya poderia não saber antes, mas sabia naquele momento o que estava acontecendo. Seus olhos estavam manchados de dor e uma vontade inexplicável de chorar, postado de costas para Misaki, entristeceu-se pelos dois melhores amigos.

O quanto não deu valor a Shion quando estava vivo? O quanto poderia ter dito para Misaki? Ele poderia ter deixado os dois juntos se não fosse tão egoísta de querê-la para ele, necessitá-la.

Se ele se sacrificasse, os dois poderiam ficar juntos?

— Misaki não precisa jogar, eu perdi — sussurrou o homem de cabelos escuros, tão escuros quanto a sua alma estava naquele momento, sozinho. — Ninguém precisa se sacrificar se eu estiver aqui disposto, certo?

Shion deu um passo à frente.

— O que você está falando, Touya? — gritou, puxando-o pelo ombro e o encarando de perto. — Você pode ser um detetive, mas não é melhor do que eu para se sacrificar. Eu me sacrifico, se tiver que ser, porque eu sou aquele que sempre esteve de fora.

Ele também se sentia sozinho.

Os dois perceberam que, ao mesmo tempo que estavam sós, também estavam perto um do outro, sendo melhores amigos e provocando, amando a mesma mulher que estava parada, encarando-os com um olhar de decepção.

— Não preciso que ninguém se arrisque por mim.

Antes que pudessem impedi-la, ela apertou o botão para destravar a bola. Ela não fez questão de chegar perto da máquina ou impedir a bola de cair, que foi de uma única vez, sem bater em nada particularmente.

MORTE. Estava escrito em letras garrafais.

Os dois que restavam lembraram da situação. Alguém entregou uma encomenda enquanto Touya e Shion discutiam, uma carta vinha com ela. Misaki leu as poucas palavras:

 

Se eu não posso ficar com Touya, você também não ficará.

Ass, Maria.

 

— O que é isso? Maria está brincando comigo? — questionou Misaki em voz alta, chamando atenção dos outros dois e abrindo a embalagem. — Ela me mandou uma mensagem dizendo que eu não posso ficar com o Touya, como se...

Assim que tirou o lacre, explodiu.

 As lágrimas manchavam o rosto de Misaki. Se ela não tivesse aberto a embalagem perto deles, os dois estariam vivos – a culpa era dela de estarem ali. Em mesma medida, Touya já se culpava, pois já havia lembrado de como tinha morrido, era culpa sua não ter dado um basta em Maria.

— Minha irmã... Como...

Nenhum dos dois se surpreendeu quando Shion caiu no chão, culpando-se por sua irmã. Misaki agachou, tentando reconfortá-lo, porém não estava melhor que o outro, levando a culpa pelo ocorrido também.

Os três se sentiam da mesma forma, Decim percebeu.

— Sinto muito pelo ocorrido e por ter mentido para vocês — Ele reverenciou como de costume. — No entanto, posso remediar a situação, levando dois de vocês de volta a vida. Basta escolherem.

Os três pararam. Shion e Touya encararam-se, sem pestanejar, pensando em salvar Misaki. Mas qual dos dois iria ficar morto? Eles conseguiriam voltar a vida pensando que sacrificaram o melhor amigo?

— Eu fico — afirmou a mulher, erguendo-se do chão e caminhando para Decim com lágrimas escorrendo pelo rosto. A voz falhava. — Eles merecem alguém que não os atrapalhe, alguém que seja capaz de escolhê-los por quem são. Alguém que os olhe todos os dias e diga o quanto são incríveis. Alguém que limpe a baba do Touya e alguém que escute cada aventura de Shion, uma pessoa que seja incrível e sorria quando eles dormem e espera que sejam felizes a cada segundo, sem hesitar em nenhum momento numa escolha que os faça feliz.

 Alguém que seja capaz de aceitar o primeiro beijo, a primeira noite, o pedido de casamento. Tudo. Tudo que eles mereciam. Decim a encarou, tentando imaginar seus sentimentos.

Ela tinha memórias tão doces dos dois enquanto, cada um, tinha as mesmas memórias, mas focados em outros pontos. Em olhares mais intensos para o outro do que para si mesmo, na sua insegurança própria.

— Não, serei eu! — os dois gritaram ao mesmo tempo, agarrando-a.

Os três se abraçavam enquanto Misaki chorava, negando com a cabeça. Ela não podia deixá-los se sacrificar mais. Nunca mais. Não por ela. Implorou a Decim que fosse a escolhida, havia perdido o jogo e ele prometera.

— Não vamos, vamos ficar juntos para sempre — fungou como se falasse Shion, beijando a testa dela e colocando a mão no ombro do melhor amigo. — Se nenhum de nós consegue decidir, ninguém volta, simples, vamos ser felizes se estivermos juntos, independente do que aconteça, não é?

Misaki chorou mais alto, sentindo as cores dos três moverem-se como se fossem um só. Era um sonho, ela não queria aceitar mais um sacrifício deles por sua causa. No entanto, Touya interrompeu o pensamento dela:

— Pare de pensar que nos sacrificamos por você, eu amo você tanto quanto o amo — O homem mais alto e seguro falou, sentindo que sua voz se perdia um pouco, sua mão alcançou a cabeça do rapaz loiro e a esfregou. — Sempre fomos uma família.

— Não vou dizer que te amo também, Touya, isso é estranho.

— Sempre um fraco por não conseguir mostrar seus sentimentos mais profundos, não?

— Os senhores já decidiram? — interrompeu Decim ao questioná-los, com um sorriso e lembrando-se de Chiyuki. Ela teria se sacrificado por qualquer pessoa, qualquer uma, principalmente, alguém que ama. — Quem irá?

Misaki observou cada um deles, garantindo uma certeza.

Uma certeza que não seria apagada.

— Ninguém.

Ele sentiu a importância dessa palavra nos gestos e nos sorrisos, principalmente, nas lágrimas. Era como Chiyuki, chorando e sorrindo ao mesmo tempo. Talvez juízes não pudessem conviver com a vida porque seriam contaminados pelo amor que transbordava dela.

Ele já tinha um veredito.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Yume" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.