Yume escrita por Zatanna


Capítulo 4
Parte III: Regra III




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/747018/chapter/4

Terceiro: Juízes não podem sentir emoções,
afinal, eles são bonecos.

 

Nona subia, com o seu fiel escudeiro e ascensorista, Clavis, até o último andar, enquanto, de maneira impaciente, seu pé batia no assoalho do elevador. A moça tinha braços cruzados e uma careta de irritação por ter sido enganada por Oculus, visto que nem ela compreendia as motivações dele de manter Chiyuki na torre, se até mesmo Decim havia dado seu veredito.

As portas se abriram e, para sua surpresa, Oculus não parecia querer esconder a sua acompanhante de cabelos negros. Se fazia bem os cálculos, deveria estar quase um mês e meio jogando bilhar com o idoso. Aquilo deveria ser irritante.

— O que está fazendo com ela, Oculus?

O homem não respondeu, concentrado o suficiente na sua próxima jogada. Chiyuki a encarou, sorrindo levemente para Nona sem parecer reconhecê-la. A antiga juíza observava com atenção os movimentos da humana agarrada ao taco de sinuca cor verde fluorescente, prestando atenção aos movimentos de seu adversário – assim interpretou a nova integrante do grupo que se formava.

Mesmo após se concentrar e bater no Sol, Oculus errou a Terra e permaneceu entristecido enquanto observava de Chiyuki para Nona e continuou com esse processo mais duas vezes.

— O que acha que estamos fazendo? — questionou-a enquanto via sua parceira de sinuca se posicionar. — Graças a sua chegada, acabei perdendo a possibilidade de encaçapar a Terra. Agora, ela poderá me vencer.

E, antes que Nona pudesse perceber, a Terra havia entrado em órbita com os outros planetas. Chiyuki provavelmente havia vencido aquele jogo. Os olhos dela, no entanto, pareciam perdidos em algum lugar, mas não ali – como se a humana estivesse em um estado automático.

— O que você fez a Chiyuki?

— Eu não fiz nada, somente não a enviei para a Reencarnação — respondeu à questão de maneira irritada. — Como eu poderia enviar a Terra alguém que se lembraria de nosso sistema? Você acredita mesmo que é possível esquecer a Morte durante a Vida e não se recordar do que viveu entre essas duas instâncias?

— Como disse?

O homem, com uma flor de lótus na barba e outra na cabeça, suspirou. Nona não entendia da humanidade, mesmo que tentasse, como também não entendia da força da memória e do amor. Ela não entendia que a humana havia se apaixonado e nem mesmo ele tinha percebido isso quando a chamou para conhecê-la e compreender as escolhas altruístas que fez no julgamento de Decim.

Ele não podia enviar alguém à Reencarnação se esse alguém estava apegado demais a alguém que não pertencia a nenhum plano dos homens comuns. O que aconteceria com Chiyuki no mundo dos homens seria uma banalidade e, particularmente, seria mais fácil ser enviada ao Vazio do que viver uma vida que jamais seria realmente vivida.

Contudo, não havia sido esse o julgamento dado por Decim e, tinha confiança – ainda que não desejasse contar para Nona – de que o barman não havia errado em sua escolha, pois ele teria feito o mesmo. Ela ainda tinha falhas, ainda tinha que reencarnar, mas não daquele jeito, não do jeito que estava agora.

Apegada demais ao plano intermediário por culpa dos experimentos de Nona. Como a antiga juíza havia dito, não era porque os humanos eram simplórios que deveriam ser esquecidos. Depois de tantos anos no último andar, Oculus percebeu que esqueceu do primordial, do motivo de Deus colocá-lo ali. Era o mais próximo de Deus, porque era o próprio caminho das divindades.

— Ela se apaixonou por Decim — disse, tentando explicar a alguém que jamais havia sentido isso. — E talvez diga paixão por falta de conhecimento do próprio amor. Nona, devo lhe contar um segredo e, por isso, preciso fazer duas perguntas: por que nenhum de vocês questiona a própria existência do julgamento? E por que eu fico aturdido e pensativo quando você toma gosto pela morte por causa da vida?

— Mas é possível que ela sinta isso por... — sua fala com tom de dúvida se perdeu, confundida pelo que o outro havia dito. No entanto, Nona, ainda pensativa, reergueu seu pensamento. — Oh. Eu entendo. Ela deu a ele humanidade e ele deu a ela o sentido da própria vida. Foi isso que descobriram no julgamento. Seres humanos tendem se apaixonar por aquilo que dão valor.

— Certo, mas responda minhas perguntas, Nona.

A mulher mais baixa se aproximou da humana que a encarava e sorria sem realmente vê-la. Não havia sido essa humana que havia se apaixonado por Decim, porque ela obviamente não possuía memórias e nem ambições, não tinha voz própria como Chiyuki.

— Por que não jogamos? — resolveu perguntar, esperando que a ansiedade e a competitividade do homem que também se dizia um boneco falassem mais alto. — E assim fazemos uma aposta. A cada vitória sua, eu respondo uma das questões. No entanto, a cada vitória minha, você trará de volta Chiyuki e irá estabilizá-la para que possa suportar permanecer aqui até que saibamos como devolvê-la ao mundo dos homens encarnados.

O homem coçou a barba de lótus, pensando na proposta de Nona. Poderia jogar com toda a sua vontade, como sabia que ela faria: aquilo seria interessante, embora pudesse perder.

Oculus percebeu que, de alguma forma, Nona se sentia culpada e as emoções – mesmo que não sendo um experimento como o jovem Decim – invadiam-na. Foi por esse motivo que havia dado outro cargo para ela, pois com emoções era incapaz de ser juíza, de julgar os humanos. Ainda assim, como boneca, ela não deveria ser capaz de sentir ou de desobedecer.

Será que finalmente ela o convenceria que estava errado?

— Então, finalmente quer jogar comigo?

A flor de lótus floresce mais linda
da lama mais profunda.

 

Os segredos da torre eram um mistério até mesmo para os juízes, não que de fato isso lhes importasse, pois não questionavam suas obrigações e nem os motivos para seguirem sua vida fazendo aquele trabalho.

Humanos eram simplórios, mas por que os bonecos continuavam a fazer aquele trabalho de enviá-los para o Vazio ou para a Reencarnação? Quais são os próprios desejos e objetivos dos bonecos? Os humanos escolhiam, muita das vezes, o que desejavam fazer – ou tentavam. Os humanos, como Mayu disse a Ginti, poderiam destinar sua vida para alguém ou poderiam viver sem motivos. Quais eram as motivações do juizado, dos juízes e da própria existência deles?

São algumas dessas questões que Oculus queria que Nona levantasse enquanto se preparava para jogar contra ele, olhando do taco para a humana. Certa vez, Deus havia dito para o homem de cabelo e barba de lótus que a mais bela flor nasce da lama mais profunda. Seria a sua adorável gerente a flor mais bela por nascer nas rotinas desgastantes que ele impôs? Por criar consciência por si mesma? Qual seria o sentido de fazer os juízes, os bonecos, sofrerem para julgar os humanos? A justiça? Que justiça os pobres bonecos teriam?

Ele tinha certeza que se questionasse a justiça dos bonecos, Nona levantaria a questão da justiça dos homens. Seria uma argumentação de dois pontos, muito embora a estrutura da torre fosse as ideias que ele tivera. Ele. Pois Deus havia o abandonado, ido para muito longe.

No entanto, Oculus parou para refletir. E, se talvez, a resposta estivesse na humana? Em Chiyuki, se bem lembrava do nome. Ela poderia ser a resposta e a flor de lótus que floresce na lama mais profunda, pois foi a mulher que experienciou a vida, a morte e o intermédio entre eles, vivendo na ponta do fio em declínio ao Vazio e a Reencarnação com ciência disso. Nenhum deles estava tão ameaçado quanto a jovem de cabelos negros e suas emoções.

Oculus coçou sua barba, vendo duas flores desabrochando de maneiras diferentes e com belezas ainda mais distintas. Nona parecia pronta para jogar, tão bonita quanto perigosa, como de costume.

A trança foi jogada para o lado e um sorriso escapou dos lábios dela enquanto batia em seu costumeiro e fluorescente taco de sinuca:

— Quem começa?  

— Primeiro as garotas más — murmurou o homem, sorrindo de canto e demonstrando a mesa.

Nona nunca imaginou que a partida seria tão rápida, em mesma medida, Oculus nunca imaginou que teria tanta sorte. Na segunda tacada, depois de encaçapar Venus, tentando mirar em Marte, a juíza simplesmente errou o buraco e encaçapou, ao invés do planeta, o Sol. O Sol era a bola chave, a bola branca. Aquilo contava como derrota total, ela mesma havia feito a própria cova – se isso fosse uma questão de vida ou morte, é claro.

Mas não existe vida ou morte para os bonecos. Havia?

Rindo, como se tivesse ouvido a melhor das piadas, Oculus encarou a mulher baixa e muito mais jovem que ele. Enquanto isso, Nona se questionava se de fato havia sido um erro seu ou uma manobra dele, encarando-o com o olhar irritadiço. Contudo, nada que ele tinha dito anteriormente havia sido ruim de saber, pelo contrário, muito embora pensasse naquilo como uma manipulação.

Qual era mesmo a pergunta?

Por que não questionam a existência?

— Você já se questionou por que você existe?

Nona já havia se questionado isso, como também todo o sistema que viviam. Ou por que não poderia viver? Ela entendia que não poderia julgar sendo humana, porém por que eles eram bonecos que não conseguiam ir para o mundo dos homens, ganhar experiências e adquirir sentimentos? Por que tudo aquilo existia? Era para servir a quem? Qual era o benefício?

— Muitas vezes, mas nunca com uma resposta realmente satisfatória a não ser que fui criada para fazer parte de algo, pode ser desse sistema ou de algum outro melhor — respondeu com sua língua ferina, encarando-o e tendo uma das mãos na cintura enquanto a outra apoiava o taco no chão. — Mas a motivação para a minha existência, o que eu servi ou sirvo inicialmente não me importa mais do que o que eu sirvo agora, por que existo agora.   

Ele coçou a barba, fingindo estar pensativo.

— Certo, deixe-me alterar a pergunta: de onde você vem? Para humanos, muitas das vezes, o seu existir se relaciona muito de onde você vem, eu esperava que você, tão entendedora da lógica deles, tivesse chegado a essa questão sozinha.

Oculus sorriu, devolvendo o favor.

Nona não sabia responder. Ela sabia onde modificar, onde eles nasciam, mas nunca se perguntou de fato como surgiam. Por fim, percebeu que pensava em si mesma – tal como os outros – equivalente a um ser humano. Elas simplesmente aparecem, as almas.

Talvez ela tivesse uma alma também.

Nona arregalou os olhos, mas não respondeu à pergunta de Oculus, não agora que tinha tantas dúvidas sobre de onde vem as almas. Ela poderia ter uma alma, pois evoluía. Os bonecos evoluem, ela é a prova disso.

Como gostava de pensar, a prova viva.

— Você existe para servir a essa torre — respondeu por ela, sem paciência para continuar esperando algo que não viria, ao menos, não tão cedo. Nona gostava de pensar em respostas malcriadas, demoraria até chegar à conclusão com um tipo de resposta que o atingisse. — E você serve a Reencarnação dos homens e o Vazio dos homens porque você já fez parte disso. Você fracassou como possível humana e foi mandada para o Vazio até perder tudo o que tinha. Por não ter mais nada, vocês não questionam o tudo que ganham.

Não houve nenhuma reação por parte dela.

Nem mesmo uma fagulha ou alguma emoção aparente em seu rosto. Oculus tinha tanto medo da presença fixa de humanos, ressentia tanto as emoções nos juízes porque eles se lembrariam de quem eram, de que eram humanos como todos os outros que vão. Eles poderiam decidir partir, nunca mais julgar os outros.

Não fazer mais um trabalho que os faz permanecer no mesmo lugar.

Como ela, por oitenta e cinco anos.

Nona sentiu vertigem, porém não sabia dizer o que vertigem significava. A tontura se instalou nela e a jovem apertou ainda mais o taco que segurava. Ainda tinha o objetivo de ajudar Chiyuki a sair do Vazio que tinha sido colocada, porque o Vazio não residia em outro lugar que não próximo de Oculus.

Agora, ela tinha certeza absoluta. Era por isso que era um segredo e ele tinha tanto receio, tantas regras sem sentido. Nona viu sentido, mas não viu justiça e, por isso, disse a seguir:

— Parece que eu questionei.

Um sorriso brincou na face dela enquanto algo a esmagava. Se eles eram humanos, tinham alma humana, como poderiam permanecer ali? Chiyuki não conseguia isso. Então, de repente, ela entendeu o nome dele.

Oculus.

Oculus era o homem que os modificava e, por isso, seus olhos eram tão diferentes dos humanos. Ela entendia agora porque os humanos diziam que os olhos eram a janela da alma, mas nunca pensou que era tão literal.

O que ele era? Dizia ser um boneco, mas isso não era verdade. Ou era?

O que ele lhe dizia fazia com que ela duvidasse disso.

Oculus não duvidava dela, por sua vez. Nona havia se rebelado, pois tinha tomado gosto pela morte. E o questionado. E evoluído. E ido contra o tudo que havia ganhado a favor do nada que havia deixado para trás.

No entanto, ela ainda estava ali. Mesmo se rebelando contra o sistema, Nona ainda o via como a possibilidade de mudança para manter a ordem, mesmo que a humanidade fosse egoísta o suficiente para se perder no caos. Por não se importar com mais nada além deles mesmos, às vezes, dos seus.

— Vamos continuar jogando? Ainda me deve uma questão.

Se ela não compreendesse tudo, Nona nunca pararia e ele não gostaria de perder a sua mais preciosa e bela parceira de bilhar. No entanto, tinha certeza que, dessa vez, Nona não erraria nenhuma jogada, pois seus olhos pareciam determinados na inexpressividade que viviam.

Ele iria e queria ver a flor de lótus sair da lama.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Yume" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.