SANGUE E FOGO escrita por JWSC


Capítulo 1
Regium Sanguis




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O céu anunciava uma tempestade que jamais caíra.

Frio e imponente, o véu negro e sombrio da escuridão descia reclamando seu domínio eterno na cidade. Nenhuma fenda, nenhuma casa, nenhuma rua escapava do poder implacável da noite. Com mais ou menos intensidade, a noite eterna marcava sua presença entre ruas e becos.

Lockessia era uma das maiores cidades vampiras do mundo. Localizada na margem de um rio largo e profundo, a cidade sempre foi reconhecida por seus prédios de torres grandes e pontudas, com telhados negros brilhantes. Tal fato gerou o apelido de A Cidade Espinhosa, entre os viajantes.

Eram por essas torres que saia a fumaça escura que encobria o céu sobre a cidade, impedindo que a luz solar atravessasse com força, permitindo apenas que uma fraca claridade chegasse até o solo, o suficiente para que os humanos não se esbarrassem nas ruas.

Demérius olhava a cidade da janela de seu quarto. A taça de vidro com detalhes em ouro que continha o vinho sanguíneo estava quase no fim. Há anos os vampiros aprenderam a misturar seu alimento natural, o sangue, com outras bebidas e ingredientes criando pratos variados, despertando novos sabores e prazeres em se alimentar.

― Senhor. ― A humana entrou na sala de estar.

― O que foi, Amélia? ― disse Demérius sem se virar.

― O senhor seu pai, exige vê-lo, meu senhor.

Demérius virou-se para encarar a moça. Ela devia ter por volta de vinte e poucos anos humanos, de cabelos ruivos e olhos melancólicos. Para os vampiros, o tempo corria diferente, mais lento e preciso. Todo vampiro sabia quando chegava a sua hora de morrer e tinha plena consciência de seu nascimento. O medo da morte não significava nada para um vampiro.

Ele ouvia a pulsação ritmada do coração dela, levando o sangue rico em ferro por todo o corpo. Há anos havia aprendido a ignorar os batimentos cardíacos dos humanos, por mais tentadores que fossem às vezes. Não precisava retirar o sangue a força, ao contrário, bastava pedir e alguém logo lhe trazia a taça ou algum alimento feito com sangue. Retirar por meio de violência era considerado pela nobreza como um método arcaico e animalesco, ou então, um erro de jovens famintos recém-criados.

― Irei me encontrar com ele logo. Pode se retirar.

Demérius levantou-se e foi até a lareira onde as chamas crepitavam. Ele admirou os brilhos das chamas que certa vez, em um passado distante, lhe proporcionavam calor e segurança. Às vezes ele se encontrava pensando em como seria tocar nas chamas, sentir o calor, mas nunca poderia sentir nada disso, já que o fogo era um inimigo voraz dos vampiros. Sua pele não acolhia mais o calor, ao contrário, ela o repudiava. Se tocasse, mesmo que por um segundo nas chamas, sua pele entraria em combustão em questão de segundos. Seu mundo era o frio.

Saiu de seus devaneios e subiu as escadas até o escritório do pai. Não havia iluminação ali, os vampiros não precisavam de luz. A escuridão era a vida deles. Os olhos de Demérius rapidamente se adaptaram a escuridão, mudando o formato oval da pupila para algo mais redondo, captando todo e qualquer ponto de luz. Além disso, os vampiros ouviam e cheiravam melhor que qualquer humano. Tudo isso combinado permitia que os vampiros andassem a noite sem problemas e caçassem.

A porta de madeira negra rangeu ao ser empurrada. Demérius entrou na sala escura e banhada pela luz do luar. Era lua cheia.

― Queria me ver, pai?

O Gran Duque Vitrorius estava sentado em sua mesa. Assinava e revia documentos e livros. Como Gran Duque da cidade, era um dos responsáveis por administrar e manter a ordem dentro dos muros. Ele levantou os olhos verdes do papel que analisava e olhou para o filho.

― Tenha paciência ― bradou o Gran Duque. ― O que pensa que está fazendo? Quantas vezes já disse para não acender aquela maldita lareira? É um enfeite, uma decoração. Não nos serve para nada. O que os vizinhos vão pensar? Que aqui vivem um grupo de humanos? Você é o filho do Gran Duque e terá de começar a agir como a etiqueta exige. Estamos entendidos?

Demérius concordou e o Gran Duque relaxou.

― Ótimo. Agora, tenho que te informar que você irá para o Conselho de Lockessia comigo novamente. Vampiros de Sebathia virão e eu espero que você honre o nome da família Arkhaman com sua presença e boas maneiras. Entende?

― Sim, meu pai.

― E por Nerfaros e todo o Antigo Conselho. Trate de parar com essa loucura do fogo. Quer morrer? Fique mexendo com o fogo e logo vai ser consumido por ele. Não me venha com a porra do corpo em chamas pedir para te salvar. Ouviu? Agora vá, se arrume.

Demérius saiu da sala e foi para o quarto. No caminho chamou a humana:

― Amélia! ― chamou.

Ela logo apareceu em seu quarto e se deparou com o vampiro nu em frente ao espelho. Uma mistura entre um ser fantasmagórico e divino ao mesmo, Amélia não pode esconder o nervosismo que ele fazia surgir nela.

― Que bom que chegou. Quero aquele gibão negro com detalhes verdes. As calças sociais negras e os sapatos de bico fino cinza. Hoje irei com meu pai para a merda do Conselho.

Amélia tratou de ir ao closet do vampiro e remexer nas vestes até encontrar o que lhe foi pedido. O vampiro vestiu a roupa sem muita cerimônia e começou a se olhar no espelho. Arrumou os cabelos louros para que ficassem ao redor do rosto.

Amélia permanecia no canto, com as mãos juntas na frente do corpo, olhando para o chão, tentando evitar a encarar o vampiro. Demérius pouco se importava com a moça. Durante os duzentos anos de vida, havia tido diversas escravas humanas. Tivera amores com elas e lutas por elas, desentendimentos e alianças com humanas. Agora, pouco lhe importava os humanos, eram simples trabalhadores.

― Está bem. Será este mesmo. Não se esqueça de ir fazer sua doação Amélia e leve os outros. Na semana passada recebemos uma multa porque Erudios esqueceu de enviar os seus.

A moça concordou e logo saiu do quarto.

Quando a lua estava no centro do céu, os vampiros da família Arkhaman saíram de sua residência nos arredores do centro da cidade e foram para o Conselho. A família Arkhaman era uma família antiga, nascida de Luka Arkhaman, um dos membros do Antigo Conselho. Atualmente era comandada pelo Gran Duque Vitrorius e sua esposa a Duquesa Cassindra. Seus filhos eram Demérius, com duzentos anos, Anastacya, com cento e sessenta e sete, Erudios, com cento e trinta e dois anos, e Camellita, com apenas oitenta e sete anos. Além do Gran Duque, a Duquesa e os filhos, a família era constituída por três irmãos menores de Vitrorius e seus filhos, que ao todo faziam a família ter quinze membros.

Também haviam dezenas de humanos escravos da família, que cuidavam de sua residência ampla com jardins de rosas da noite, camélias, eustácias e outras plantas que apenas nasciam com a presença dos vampiros. Alguns desses escravos eram os encarregados de manobrar a carruagem da família. Grandes veículos com espaço para seis membros cada, pintadas do roxo e prateado, as cores da família Arkharam. Eram puxadas por grandes cavalos de tons escuros de marrom, cinza e azul, com asas negras que permaneciam recolhidas durante a maior parte do tempo.

As ruas no entorno do centro de Lockessia eram limpas e espaçosas. O chão onde a carruagem passava era de pequenas pedras azuladas, posicionadas com precisão para que não ficassem elevações que fizesse as carruagens balançarem. As calçadas eram de pedras maiores, em tons de amarelo nos cantos e branco no centro, também colocadas com extrema precisão. As ruas estavam repletas de vampiros e escravos humanos que acompanhavam seus mestres, carregando suas compras, bolsas de sangue e caixas de vestuário.

O Conselho era o maior prédio da cidade. Havia sido construído no formato de um pentágono com torres negras e altas em cada um dos cinco pontos. Era cercado por uma grande muralha de concreto negro com ameias de séculos atrás, quando os vampiros estavam em guerra diária com seus inimigos. Entre o pentágono e a muralha havia um grande jardim de flores, onde outros vampiros passeavam e admiravam a noite.

Os Arkharam desceram da carruagem e entraram no prédio do Conselho. Vários vampiros cumprimentaram os recém-chegados que respondiam com sorriso e comentários educados.

A Sala de Reunião do Conselho estava repleta de atividade. Os vampiros se reuniam em grupos onde conversavam sobre assuntos diversos. Os humanos passavam pelas mesas deixando taças de sangue alcóolico e bolos cor de vinho. O cheiro ferroso e energético de sangue estava em vários cantos.

― Gran Duque Vitrorius, é um prazer.

Um vampiro alto, de pele morena e cabelos longos negros aproximou-se sorrindo. Atrás dele vinham mais vampiros de pele morena e cabelos longos, todos vestiam sobretudos longos de cores vivas. Demérius soube que eram de Sebathia, A Cidade Colorida, como chamavam.

― Gran Duque Svinose, o prazer é meu. Lhe apresento minha família, os Arkharam de Lockessia. Minha querida esposa, Cassindra, meus filhos, Demérius, Anastacya, Erudios e Camellita. Meus irmãos, esposas e filhos.

― Possui uma bela e grande família, Gran Duque ― sorriu Svinose e fez um cumprimento a todos. Em seguida apontou para aqueles que os seguiam. ― Esta é minha família, os Mohandis de Sebathia. Minha esposa Andrya, meus filhos Closter, Sevina e Igórius. Meu irmão, sua esposa e filhos. Todos os saudamos.

― Nós é que o saudamos em nossa cidade. ― Vitrorius apontou para uma das várias mesas dispostas no espaço.

Foi quando Demérius sentiu alguém esbarrar nele. Ao se virar viu Nox passar por ele. O pequeno ser ignorou a presença dos vampiros e atravessou entre Vitrorius e Svinose, como se não houvesse ninguém ali. Demérius nunca entendeu bem o que era o Nox, pois não possuía sangue humano e não era um vampiro, mas com o tempo aprendeu a ignorar a criatura que andava cambaleando com as pernas tortas, assim como todos os vampiros ignoravam ele e suas frases desconexas.

― Quando todos os demônios se reunirem, as lágrimas cairão ― disse Nox ao passar por eles, ignorando a presença deles em seu devaneio, assim como todos o ignoravam.

Os mais importantes de cada família sempre se sentavam em uma mesa e os das ramificações e níveis inferiores nas mesas ao redor, era esse o costume dos vampiros. Sentaram-se Vritorius, Cassindra, Demérius e Anastacya dos Arkharam e Svinose, Andrya, Closter e Sevina dos Mohandis na mesa principal.

Se serviram de comidas e bebidas, conversaram sobre as famílias e as cidades. Demérius se empenhava em participar e responder com educação sempre que lhe era perguntado, poderia receber um prêmio pela sua participação exemplar naquela conversa. Desde quando era humano, possuía uma habilidade especial para fazer as pessoas acreditarem que se interessava pelo que diziam.

Depois de algumas horas as famílias se despediram e foram para suas respectivas carruagens.

― O que achou dos Mohandis? ― Vitrorius questionou Demérius.

― São interessantes. Sua cultura é diferente da nossa, mas ainda assim, parecem ser bons vampiros.

― E são bonitos ― completou Cassindra. ― Viu como a filha deles Sevina o olhava, meu filho?

Demérius não gostou do rumo da conversa. Uma troca de olhares entre o pai e a mãe confirmou o que imaginava. Ele olhou rápido para Anastacya, mas ela estava curiosa em saber o desenrolar da conversa. Erudios estava distraído, olhando pela janela, e Camellita comia um dos bolinhos servidos, despreocupadamente.

― O que achou de Sevina? É bonita, não? ― Vitrorius questionou.

― Sim, ela é ― respondeu Demérius.

― Que ótimo que pensa assim. ― Vitrorius recostou-se no estofado. ― Por quê esse encontro não foi para fazermos laços políticos, mas sim conjugais. Foi para que vocês dois se vissem e se conhecessem um pouco, pois vocês dois irão se casar. Faremos uma grande aliança com os Mohandis.

O restante do caminho até a residência dos Arkharam foi floreado de planos e sugestões para o casamento. Anastacya participava ativamente da conversa, opinando pelos melhores arranjos e peças de vestuário.

Demérius sentiu-se satisfeito de chegar em seu quarto. Dispensou a criada com grosseria e fechou as janelas, a porta e tudo que pudesse denunciá-lo. Foi então que acendeu a lareira e passou a observar o fogo de longe. Pois a proximidade o machucava. Ficou ali por horas relembrando tempos a muito vividos e rostos que já não tinha certeza se eram reais ou coisa de sua imaginação.

― O sangue real pulsa ― disse para o vazio.


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