Made of Stone escrita por littlefatpanda


Capítulo 52
XLI. O anjo que me visita à noite - Parte II


Notas iniciais do capítulo

Bom dia, panditores, espero que tenham começado 2023 bem. Minhas expectativas tão bem baixas, então eu desejei no mínimo sobreviver este ano, que já tá de bom tamanho ahahahhaa. Espero o mesmo pra vocês e um pouco mais ♥

Hã, eu tive que dividir os capítulos em 4 ao invés de 3 porque a parte II ficou GIGANTE e eu tive que dividir em 2. Então aqui vai o lado bom: vocês tão recebendo dois capítulos de uma vez. O lado ruim é que é muita palavra hhahahaha, e que talvez fique bem pesado e cansativo. A propósito, não tive tempo ainda de fazer isto mas eu percebi que a pt. I ficou beeem maçante e quero editá-la assim que eu puder pra ficar mais tragável. Acredito que apesar do conteúdo pesado, as partes II e III de agora não ficaram tão maçantes porque não são introdutórias, não tem explicação da terapia, e tem bem mais diálogos. De qualquer forma, espero feedback e se for muito ruim, eu também dou um jeito de melhorar. Amo vocês ♥

Agora, papo sério rapidão antes de lerem:
A parte II e III começa a pesar de verdade, viu? Então, se segurem em algo, peguem um copo d’água, meditem um pouco, porque este capítulo vai ser pesadinho. Vou colocar gatilho de luto, depressão, traumas, negligência familiar, lgbtfobia, e mais. Não sei bem como numerar os gatilhos, então se depois de lerem, tiverem sugestões de alguns mais, me avisem. Não sei qual parte é a pior, essas ou a IV que está por vir, mas acho que são ambas ruins de maneiras diferentes.

No mais, já sabem: se estão tendo um dia ruim, deixem pra depois, os capítulos não vão fugir. Beijo no core! ♥

OBS.1: Feliz dia das mulheres e dos trabalhadores atrasado! A gente é foda. Edit mais atual porque eu tô sempre editando o capítulo: feliz das mães também hahahah. Vocês são foda. ♥
OBS.2: Li os comentários, ok? Eu respondo assim que eu puder. ♥

Boa sorte & boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/746861/chapter/52

Desde sempre, meu pai me odiou e, desde sempre, eu soube disto.

Aquela, contudo, foi a primeira vez em que tive uma ideia do porquê - uma ideia vaga, ilusória, mas ainda cruel.

Eu tinha uns cinco ou seis anos, talvez mais, talvez menos. Tenho alguma noção da minha idade baseada na Agatha, que devia ter uns dois ou três anos. Nesta lembrança vaga ela estava deitada no sofá da sala, a cabeça repousada no colo da minha tia, uma mão segurava a mamadeira na boca e a outra segurava o próprio pé, os olhos vidrados no desenho infantil.

Por algum motivo, a casa estava lotada de parentes, então talvez fosse o aniversário de algum de nós ou alguma outra data comemorativa. Eu havia aproveitado a distração da Agatha para largar as bonecas e bonecos de lado e ir lá para fora, simular um jogo de baseball entre eu e eu mesmo. Devo  ter ficado tempo demais no pátio, porque quando eu retornei, minha presença sequer foi percebida.

— Ela é mesmo um anjinho, não é? — apontava a tia Ursula, referindo-se à Agatha. — Ela também ofereceu a própria chupeta pra Bee — contou, mencionando a Bianca, a minha prima — mesmo sendo a chupeta favorita dela, só porque pensou que a Bee havia esquecido a dela em casa. Que amor!

— É verdade — concordou a voz grossa do meu tio mais odioso, o tio Milton. — Ela é mesmo um anjinho, e pra ser sincero, já tava na hora dessa família ter uma bênção como essas. Porque se depender do outro filho...

Minha tia Gloria tinha o Ian nos braços, adormecido, já grande o suficiente para ficar esparramado em cima dela, os braços magros da mãe não parecendo o suficiente para sustentar seu corpo solto. Ela retrucou, incomodada: — Ele é só um menino, Milton. 

Meu tio estalou a língua, fazendo um gesto vago com a mão, descartando o que ela disse. — Um menino amaldiçoado, é isto que ele é — cuspiu, ajeitando-se na poltrona.

Apesar de eu não saber sobre quem eles estavam falando, no momento em que ouvi a expressão "menino amaldiçoado" pela primeira de muitas vezes, instintivamente soube que era eu. Meu avô, meus tios, minhas tias e alguns primos mais velhos sempre pareceram me ressentir, como se minha existência fosse uma ofensa para eles. Era um pouco diferente do desgosto que meu pai parecia sentir por mim, porque ao menos ele parecia haver aceitado que eu era filho dele e que teria que me aguentar por alguns bons anos. Os parentes dele, contudo, não haviam aceitado a ideia de que eu fazia parte da família.

A ideia de que falavam mal de mim pelas costas - quando também falavam na minha cara quando estavam à sós comigo - não era nada surpreendente. Mas ouvir que eu era amaldiçoado fez meus ossos gelarem e minha pele arrepiar, na minha visão infantil das coisas, por pensar que era algo literal. Seria eu vítima de alguma maldição e minha família tinha medo de mim por isto? Seria que algum bruxo ou demônio me marcou como fruto do mal, como vi em um filme de terror uma vez? Seria que eu fosse um lobo em pele de ovelha, como ouvi minha tia Veronica se referir a mim uma vez, com os dedos apertando a cruz pendurada no pescoço? Podia ser que havia algo de errado comigo e que apenas eu não podia ver? 

Eu me escondi detrás do batente quando percebi que eu era o centro da conversa e ninguém me viu. A titia Gloria fez um sinal com a língua para que meu tio odioso parasse, olhando para os lados para ver se mais alguém tinha ouvido, o cenho franzido. Mas ali na sala, além da Agatha e do Ian, haviam apenas a tia Gloria, o tio Milton e a tia Ursula, que ficou muda como se não quisesse discutir, mas ela mesma já havia me puxado a orelha e me xingado várias vezes quando via que não tinha ninguém por perto para me defender.

— Shh — ralhou, olhando para os lados. — Como pode falar isso na casa deles?! E se a Katya ouve? — reclamou, e ele estalou a língua, com desdém. — E como é que pode pensar algo assim de uma criança?!

Ele arqueou as sobrancelhas escuras, com escárnio, ao olhar para ela de cima a baixo, como se a julgasse por me defender. 

— Você sabe exatamente do que eu tô falando — apontou ele, em um tom superior. — E sim, eu sei que é uma criança, mas isso importa?! — retrucou. — Que ele seja uma criança não muda os fatos, e até mesmo o Henry sabe disso — apontou, ao citar meu pai, e eu apertei ainda mais os dedos no batente. — Nosso irmão sabe muito bem a cagada que ele fez e o sangue ruim que aquele menino carrega. Agora resta esperar que o pestinha não destrua a única luz que recaiu sobre essa família.

Instantaneamente eu dirigi meus olhos para a minha irmã, sabendo que ele falava dela, sentindo algo se apertar no meu peito. 

Eu queria entender de onde vinha todo esse mal que me envolvia para que eu pudesse consertar e não causar mais estragos. Para minha cabeça de criança, tudo aquilo era literal, então eu temi que fosse verdade e eu acabasse destruindo minha irmã com este mal que eu carrego. Aquilo me apavorou, me aterrorizou, me fez sentir culpa de algo que eu não sabia apontar o que era. Mas, no fundo, eu acreditei em cada palavra - não apenas porque era criança e facilmente manipulável, mas porque todas as palavras coincidiam com o comportamento de várias pessoas ao meu redor. Eu tive medo do que ouvi e não quis acreditar, mas quem eu queria enganar?

No fundo do meu peito, eu sabia que era verdade. 

Foi a primeira vez que desejei não ter nascido. 

*

Quando fui para a terapia naquele dia, eu fui com uma bagunça caótica de sentimentos. Estava envergonhado, angustiado, confuso e bastante covarde.

De fato, fiz outro argumento “hoje eu fui covarde”, porque já não restava espaço na terceira versão dele, então parti para um quarto pedaço de papel. Me perguntei, internamente, se eu deveria contar a Morgan sobre a única terapia que conheci a vida toda: a caixinha de argumentos. Mas, ao pensar que eu já tinha problemas demais dentro daquela sala sem que ela soubesse sobre uma caixa cheia dos piores demônios do meu peito, eu desisti de contar.

Passei a semana toda procurando uma resposta para a pergunta de lição de casa. Me peguei resmungando feito um velho pela casa: ora “livre do quê?”, vezes o suficiente para que Mason reclamasse. Escrevi e reescrevi em folhas e mais folhas de caderno respostas elaboradas, explicações dignas de um prêmio, uma diferente da outra, e não sabia qual delas Morgan queria.

Mas, no fim das contas, eu percebi que eu só estava tentando me enganar.

Fiquei pensando que a liberdade que eu busco é justamente aquela que me permitiria fazer o que eu quisesse sem amarras, ser quem eu quiser, construir o futuro que eu quiser. É sobre ser gay em paz, ser músico em paz, ser desconectado da minha família disfuncional em paz. Era sobre essa paz da liberdade, sobre estar livre de amarras, livre de problemas, livre dos demônios, livre de...

Eu parei de escrever, a ponta do lápis quebrando, quando por fim, percebi qual era a resposta certa. Senti o coração bater mais forte e mais apertado, como se afundasse em algum lugar dentro do meu peito. Fiquei pensativo pelo restante do dia, e pela manhã do dia seguinte, durante as aulas, e pelo início da tarde. Não consegui prestar atenção em nada, uma angústia crescendo cada vez mais e pesando em cima de mim, querendo me levar ao chão.

Eu não quis pensar demais sobre isto, então eu me recusei a me aprofundar em todas as maneiras nas quais aquela concepção era tão, tão, mas tão fodida.

— Fez a lição de casa?

Eu assenti, um tanto inseguro e receoso, e movi a poltrona mais umas cinco vezes - mais para frente, mais para o lado, um pouquinho mais para trás, afastei um pouco da janela, aproximei um pouco mais - antes de me sentar.

Só parei porque percebi que o desconforto era interno.

— Acho que me dei por conta de algo, mas não sei se é a resposta certa.

No fundo eu sabia que era a certa, mas eu ainda me perguntava se era ali onde Morgan queria chegar. Afinal, já  foram algumas vezes em que ela parecia querer chegar a um ponto e eu falava algo que a deixava surpresa e que ela também queria explorar, antes de voltar para o ponto que ela gostaria.

— Não existe uma resposta certa, Alex — informou ela, em uma tranquilidade invejável e um sorriso incentivador no rosto. — É uma pergunta com uma resposta. Dei como lição de casa para que você tivesse mais tempo para pensar nisto, para que você se investigasse um pouquinho. E aí, funcionou?

Suspirei, acabando por ficar em silêncio por um bom tempo antes de focar nela outra vez.

— Eu quero tanto ser livre porque se eu fosse, se eu abandonasse aquela casa, os meus pais, até a cidade em que eles estão... — comecei, sentindo minha voz falhar, a vergonha ardendo no peito. — Se eu fizesse isso, esta seria a solução dos meus problemas. Se eu abandonasse eles para ser livre, eu estaria abandonando os meus problemas e estaria livre deles também.

Morgan assentiu, pensativa, antes de questionar: — A quais problemas você se refere, Alex?

Mas eu não estava ouvindo direito e muito menos estava a fim de mergulhar fundo em mais perguntas complexas. Eu senti meus pulmões começarem a trabalhar com mais força, um nódulo na garganta se formando, e as mãos começarem a tremer em demasiado.

Quando eu falei em voz alta, pensar demais não foi mais evitável e aquilo se tornou embaraçosa e angustiosamente doloroso demais.

— Que ideia imbecil, né? — comentei, o rancor crescendo no peito. — Foi por isso que você me fez pensar sobre — apontei, vendo suas sobrancelhas arquearem —, porque se eu pensasse, eu me daria conta que é a coisa mais imbecil que já pensei na vida. — Então, explanei, desgostoso: — Eu não posso abandonar meus problemas, eles tão comigo, eles vão me seguir.

O que eu andei fazendo todo esse tempo?

Esse objetivo de vida que me empurrou por tanto tempo a me levantar da cama pelas manhãs e seguir vivendo era completamente falho. Era irreal, era ilusório, era uma mentira. E pior: era uma fantasia que eu me forcei a acreditar, sem ajuda de ninguém, e para quê?

Eu esperei tantos anos para poder ser livre, porque era a única - a única! - solução que eu conseguia achar para os meus problemas, e agora só precisei cutucar no lugar certo para que eu mesmo me respondesse que esta solução é impossível. Fugir de casa, dos meus pais e das minhas memórias não me faria superar nada, esquecer nada, e muito menos ser livre. Eu carregaria meus demônios comigo aonde quer que eu fosse, em meu sangue ruim, em minhas lembranças, no reflexo que vejo no espelho.

Que imbecil!

Que burro!

Que trouxa do caralho!

— Não é imbecil, é só humano — apontou ela, mas eu não conseguia mais acreditar. — Todos nós, em algum momento da vida, temos essa urgência de escapar do que nos aflige, do que nos dói, do que nos atormenta. Especialmente, Alex, quando não sabemos como enfrentar isso. É um mecanismo de defesa, de sobrevivência, é completamente humano.

Eu quis chorar ouvindo o que ela tinha a dizer, porque ela não percebia que aquilo não era apenas mais uma descoberta sobre mim, em uma jornada bonita que vivíamos juntos com o destino sendo uma vida saudável e feliz. Aquilo era Morgan erguendo um espelho para me mostrar que o objetivo que me empurrou para frente a vida inteira era uma farsa.

A minha vontade de viver diminuiu pela metade, por menos da metade, e ela já estava lá embaixo.

Se eu não posso ser livre da maneira que espero, por que caralhos de motivo eu vou levantar amanhã?!

— Olha aqui pra mim — chamou, e só então eu percebi que meus olhos estavam desfocados e dirigidos para outro lugar. Minha respiração estava falha. — Imagino como deva se sentir agora, mas não é o fim do mundo, Alex, nada está perdido. O chão ainda tá sob os seus pés e eu ainda estou aqui com você — numerou ela, como se me chamasse de volta. — Eu vou te dizer isso porque me parece que você não se deu por conta, mas: você não tá mais fugindo, você procurou ajuda e isso é o oposto de fugir. Agora que sabe que fugir não funciona, eu vou te dizer qual a solução que tende a funcionar melhor: enfrentamento. É o que estamos fazendo agora. Alex — chamou outra vez, quando eu dirigi os olhos para a janela —, nós já estamos fazendo isso há um tempo. Nós já começamos a nos mover, você já está começando a percorrer esse caminho. E eu vou te ajudar do começo ao fim.

Abri e fechei a boca por uns instantes, mas deixei os ombros caírem.

Dar-me por conta que o motivo de eu levantar todas as manhãs era uma ilusão que eu mesmo criei, talvez por sobrevivência, já era vergonhoso o suficiente. Mas, observando a cena que se desenrolava ali, percebi que não havia nada mais vergonhoso do que eu haver cedido à terapia das duas possíveis formas: procurar por ajuda e decidir estar ali; e aceitar a ajuda e decidir continuar.

Aquilo era um tapa na cara.

— Eu não posso — consegui murmurar, o peito ardendo. — Eu não posso percorrer esse caminho. Eu não posso me mover.

Morgan franziu as sobrancelhas, inclinando-se para frente quando pareceu perceber que algo estava mesmo errado. — Por quê? — questionou, com tanta cautela que parecia que eu iria quebrar.

— Eu não tenho esse direito — respondi, tentando forçar um sorriso, mas meus lábios não se inclinaram. — Eu sei que eu reclamo e eu sei que eu me sinto injustiçado, mas... As coisas são como são — declarei. — Eu não tenho por que me revirar do avesso aqui para entender o porquê da minha vida ser uma merda. Eu sei muito bem que eu sou a causa. E por mais que reclame dos meus pais, do destino, dos céus, eu sou o problema e eu não devia exigir nada de ninguém.

Morgan pareceu confusa, mas cautelosa, analisando-me dos pés à cabeça, focando os olhos especialmente nas mãos que tremiam.

— Alex, a vida é sua. Você tem o direito de construí-la da maneira que desejar, de manter relações saudáveis com as pessoas à sua volta — apontou, com a voz calma. — O que quer dizer com “não tem esse direito”?

Comecei a ficar impaciente e depois de algumas sessões, eu consegui realmente identificar os sintomas da crise de ansiedade. Ela estava começando, pinicando a minha pele, acelerando minhas batidas cardíacas, aumentando o nódulo na garganta e fazendo meus pensamentos dispararem tão rápido que eu sequer conseguia identificar todos eles.

Escorreguei para a beirada da poltrona, encarando a porta e desejando fugir, e cocei o pescoço.

— Me desculpa — pedi —, eu falei todas as coisas erradas e agora você acha que tem que me salvar, mas não é assim. Eu sei que eu me sinto injustiçado, eu sei que eu imploro por mais, que eu choro e faço um drama inteiro só pra ter mais, mas a verdade é que não é assim — expliquei, tropeçando nas palavras. — Eu só sou um hipócrita egoísta. Eu fico pedindo por coisas que não são minhas, eu fico implorando por amor quando não me pertence, eu fico querendo uma vida normal sendo que eu não mereço.

— Alex...

Eu cheguei a ouvir a preocupação em sua voz, mas não consegui captar exatamente o que se passou em seu rosto, minha atenção inteira estava rodopiando dentro da minha própria cabeça.  

— Eu tô aqui por minha causa, Morgan, é um carma. Eu tô pagando pelos meus pecados — admiti, segurando o soluço. — Eu apodreço tudo o que eu toco. Eu só não acabei com isso porque eu sou covarde, Morgan — revelei, o gosto amargo na boca aumentado. — Eu tenho medo que a morte seja uma eternidade dos meus piores pesadelos e mesmo que eu mereça cair nesse abismo, eu insisto em fugir dele. Eu sou um covarde egoísta. É por isso que eu tô aqui. — Abri os braços. — É por isso que eu pedi ajuda para fugir do meu carma, mesmo que eu mereça cada segundo dele. Eu matei minha irmã, eu quase matei o Caleb e eu não devia ficar por aqui esperando a próxima vítima. — A agonia remexeu-se feito um ser vivo no meu peito. — Mas eu sou tão podre, Morgan, que é exatamente isso o que eu tô fazendo.

— Alex, por que você não tenta me explicar um pouco me...

Levei de súbito, encarando a porta.

— Eu me deixei levar — interrompi logo que ela pronunciou meu nome outra vez e esperei que as palavras dela morressem. — Você é tão boa comigo e me faz sentir como se eu realmente devia estar lutando por algo aqui mas na verdade eu sou a causa de todos os meus problemas. Você falou sobre responsabilidade, sobre as escolhas que tomamos, e tem razão. Eu sou responsável por tudo o que me acontece, e eu não tenho o direito de exigir nada diferente de ninguém. Meus pais tem razão em me desprezar — falei, um pouco confuso quando minha voz foi interrompida por um soluço até perceber que era meu. — Dói muito, então eu gosto de fingir que não, mas eles tem razão, sim. Eu tenho dor, e me aperta o peito, e eu sinto que vou morrer, então eu barganho. Eu peço pra me libertarem da dor, mas eu não devia ser liberto.

Morgan se levantou também, as mãos erguidas como se quisesse me acalmar, mas ela parecia também temer não conseguir.

— Alex, senta aqui, respira fundo. Bebe uma água. Por que...

Solucei mais alto, negando com a cabeça, sentindo meu corpo inteiro entrar em um frenesi, infelizmente, já conhecido. As palavras, novamente, começaram a escapulir para fora sem o meu controle. 

— Você quer saber o porquê de eu não me mover? O porquê de eu não haver ido embora, o porquê de eu ficar lá e não mudar a minha vida? — questionei, trazendo de volta as perguntas que ela fez na semana passada. — Quer saber o porquê de eu estar sempre no mesmo fim de poço e de não mover um músculo pra sair dali - pelo contrário, me afundar ainda mais? Porque sempre que eu vou me mover, sempre que eu me organizo, sempre que eu faço planos, sempre que eu decido lutar por mim, eu lembro que não devo — apontei, limpando o rosto com rudeza. — Eu devo ficar exatamente onde eu tô. Eu nem devia... — Olhei ao redor do consultório. — Eu nem devia estar aqui, eu nem devia ter a cara de pau de pedir ajuda, que coisa mais ridícula, olha onde eu tô! Como se eu merecesse conselhos, como se eu pudesse... Hipócrita egoísta do caralho, é isso que eu sou, eles tinham razão, todos eles, eu sou um monstro! Eu não devia ter nascido! Eu não devia estar aqui! Eu não devia estar aqui — repeti, dessa vez, olhando para o consultório. 

— Alex, não...

Antes que ela dissesse coisa que fosse, eu me dirigi até a porta, querendo fugir de toda a dor que ficava exposta feito um nervo naquela sala. Eu não soube como ela foi tão rápida, mas Morgan pôs-se à minha frente antes que eu alcançasse a maçaneta e disse coisas que eu já não podia ouvir, o choro tomando conta. 

Morgan me fez sentar e, com muita paciência, conseguiu me trazer de volta da crise ao repassar as técnicas e conversar comigo. Demorou alguns minutos até que meu choro cessasse e eu conseguisse prestar atenção em algo além da confusão que gritava dentro da minha cabeça. Eu havia levado a cabeça entre meus joelhos e encarava os tênis surrados quando ela me chamou a atenção e eu ergui o rosto novamente, mais composto. 

Ora, isso é vergonhoso, pensei, os pensamentos organizando-se outra vez dentro da minha cabeça, como se desacelerassem. A humilhação foi grande e a vergonha maior, mas não me fez mudar de ideia, eu ainda estava preso na ideia de que seria impossível ser livre de mim mesmo. 

— Olha para mim, Alex — pediu ela, calmamente, havendo saído detrás da mesa e sentado em uma das poltronas arrastadas para ficar de frente para mim. — Se você quiser realmente ir embora, se quiser cancelar nossas sessões, eu não posso te impedir. Lembra? — perguntou, e eu fiquei em silêncio. — Você faz as suas escolhas. Mas, ao menos beba uma água, coloque os pensamentos em ordem, me escute um pouco, e então decida o que fazer. Combinado? — questionou, e eu não consegui negar. — Não faça decisões tão importantes de cabeça quente. 

Relutei por um instante, torcendo o nariz. 

Eu odeio a maneira como ela é sensata o tempo inteiro, feito uma deusa intocável pela selvageria emocional na qual nós, meros humanos, nos afogamos diariamente. Eu surto e penso que tudo o que se passa pela minha cabeça faz todo o sentido e já consigo imaginar o restante da minha vida miserável dentro do cenário que criei, e com um par de palavras sábias, ela consegue me fazer sentir uma criança boba e imatura. 

— Alex — chamou ela, e eu dirigi meus olhos aos seus. — Escuta bem o que eu vou falar. Eu já tive muitos pacientes e é muito comum que eles sejam o próprio obstáculo na vida deles.

Desviei os olhos, sentindo-me humilhado pela confirmação de que eu realmente sou a pedra no meu próprio caminho. Era degradante demais. 

— Eu vou usar a sua metáfora do poço, ok? — continuou ela, e eu suspirei. — Ninguém acorda pensando: “hum, vou me atirar no fundo do poço e não sair nunca mais”. Ninguém faz isso. Não acontece de algum amigo chegar para você, desabafar sobre um problema cuja solução é óbvia, e quando você aponta isso, o amigo dá uma desculpa para não seguir o conselho? — Voltei os olhos a ela, assentindo. — Por que você acha que eles fazem isso? Talvez porque eles gostem do fundo do poço? Talvez porque eles, na verdade, querem ficar ali? — Me senti uma criança ao negar. — Não. Alguma coisa os impede de sair. Pode ser medo, pode ser insegurança, pode ser uma falta de autoestima, pode ser uma limitação financeira, pode ser muita coisa. E para que eles saiam de lá, eles precisam de uma ferramenta.

Morgan inclinou-se um tanto para frente, e eu já havia aprendido que ela fazia isto inconscientemente quando eu estava prestes a falar algo que ela julgava importante ou ela diria algo importante. Ela espalmou a mão no peito. 

— Eu sou um tipo de ferramenta, Alex — anunciou, e eu senti os olhos marejarem outra vez. — E agora que você tem acesso a essa ferramenta, por favor, não largue. Você já está preparado para subir, você tem a ferramenta para subir, e ainda assim, você quase deixou esta sala porque algo, de novo, te impediu. — Ela sorriu tristemente ao declarar, o tom baixo: — O mesmo "algo" de sempre. Não foi? — Fechei os olhos, triplicamente envergonhado, ao passo que as palavras dela faziam mais e mais sentido. — Nós conversamos sobre autosabotagem, não é? — Abri os olhos novamente e assenti. Morgan suspirou, parecendo aliviada que eu houvesse cedido, e checou o relógio de pulso. — A gente ainda tem um pouco menos de meia hora e a gente vai passar ela inteira tentando descobrir o que é este “algo” para que nós dois não deixemos que isto se repita. Mas eu não posso fazer isso sozinha — acrescentou, olhando-me com uma pontada de esperança. — Você precisa estar no mesmo barco comigo.

Esfreguei os olhos, e então, o rosto inteiro. 

Morgan esperou, pacientemente, enquanto eu pensava sobre o que ela havia dito e sobre como responder.

Minha cabeça estava uma bagunça revirada, como quando eu começo a fazer faxina e parece que eu apenas baguncei mais antes de começar a ficar limpa e organizada. Ainda assim, eu cheguei à conclusão mais sensata durante minha terapia inteira: eu não era a pessoa mais confiável para me guiar psicologicamente sem ajuda alguma. Apesar de haver perdido todas as esperanças, pensar que eu sou um lixo irrelevante que sequer merece uma mão estendida, eu finalmente entendi que esse tipo de autocrítica que decide a minha vida inteira também é algo que precisa de conserto. E que a sensatez da Morgan é muito mais confiável do que a minha suposta sensatez momentânea. 

Assenti, exausto emocionalmente, encarando a bagunça caótica da limpeza.  

— Ok. Vamos remar.  

*

Mason esteve resmungando o dia inteiro e, a princípio, eu consegui ignorá-lo, dando atenção para a mãe dele apenas. No entanto, quando voltei para o quarto com um copo grande de refrigerante para que dividíssemos, a rabungentisse desse senhor de quinze anos terminou com a minha paciência.

— Mason, se você tá tão incomodado com isso, podia simplesmente deixar que eu conte pra ele que eu tô aqui.

Mason deixou o fone gigante que tapava metade de sua cabeça resvalar e ficar preso em seu pescoço quando virou bruscamente para mim, deixando o joguinho online de lado. 

— Não! — enfatizou, irritado. — Ele não pode saber que você tá aqui comigo. — Então, voltou os olhos para a tela, resmungando por fim: — É pro bem dele.

Tomei mais um gole grande do refrigerante antes de fazer uma careta, me esparramando melhor no puff pequeno de canto de quarto. Rolei a última conversa com o Caleb pelas mensagens, nas quais ele insistia mais uma vez para saber onde eu estava passando as noites e se realmente não me faltava nada: cobertas, travesseiro, comida, etc. 

— Isso não faz o menor sentido — reclamei, mandando um oi para ele por mensagem. — Ele já tá bem chateado por eu não contar, e vai ficar mais ainda quando souber que você sabia e que era você o tempo todo.

Mason deu de ombros, sem sequer virar-se para trás. 

— Eu sei — mrumurou, mas descartou a ideia rapidamente: — Mas ele não vai ficar chateado por muito tempo.

Franzi o cenho e falei, sério: — Você não sabe disso.

— Sei, sim! — insistiu ele, sem me dirigir o olhar, antes de dizer com tanto ênfase que parecia uma criança birrenta: — Caleb é o meu melhor amigo.

Ajeitei-me na poltrona, pensando sobre isso, e acabei falando: — Mason, de certa forma, o Caleb é meu melhor amigo também.

Desta vez, no entanto, Mason tirou o fone de ouvido e largou em cima da mesa, antes de fazer a cadeira de rodinhas virar totalmente na minha direção, com um olhar obstinado. 

— Não é a mesma coisa, e você sabe disso — retrucou, e eu arqueei as sobrancelhas. — Eu conheço ele de uma maneira que você nunca vai conhecer. Ele tá chateado com você porque, olha que novidade, você o magoou de novo!

Caralho, Mason, que bela maneira de tacar sal na ferida! 

Eu realmente gosto muito do Mason e tenho gostado mais ainda nessas semanas que tenho ficado aqui, mas francamente, eu não sei como o Caleb e a Cristina aguentam passar tanto tempo com ele. Ele é muito direto e cruelmente honesto, de maneira que faz qualquer pessoa com senso não simpatizar de primeira. 

Ele ainda continuou: — E quando ele fica chateado, ele não conversa com ninguém sobre isso, mas eu consigo fazer ele conversar comigo. Eu sou o melhor amigo dele também e todo mundo sabe — resmungou, chateado. — Ele sabe que pode contar comigo sempre. E se ele souber que você tá aqui comigo esse tempo todo, ele não vai conversar comigo e não vai ter ninguém pra desabafar.

Juro que tentei entender mas aquilo não fazia o menor sentido. 

— Isso não faz o menor sentido, Mason — verbalizei, com uma careta. — O que uma coisa tem a ver com a outra?

Mason suspirou, empurrando os óculos para cima, e em seguida, baixou o tom de voz e explicou como se desse aulas há anos:

— Ele não vai querer conversar comigo sobre coisas que envolvem você sabendo que eu tô com você aqui em casa o tempo todo. Ele vai se sentir estranho por isso, mesmo que saiba que eu não vou estar contando as coisas dele pra você, porque é o Caleb — explicou e, por incrível que pareça, aquilo fez sentido. — Você não entende nada, Alex? Eu acho incrível isso, você não tem jeito, parece que...

Revirei os olhos quando ele continuou a resmungar consigo mesmo feito um velho rabugento. 

— Tá, você não quer contar. Beleza — concordei, embora relutante. — Mas então para de resmungar pelos cantos feito um velho — reclamei, incomodado. — Todo mundo se ofereceu pra me ajudar, eu não preciso ficar aqui com você, já que tá tão emburrado com isso. Bex ainda hoje me ofereceu um quarto. De novo — reforcei, levando o copo à boca outra vez. 

Mason suspirou outra vez, checando alguma mensagem no celular, antes de dizer distraidamente ao digitar na tela: — Não, você vai ficar aqui comigo.

Larguei o copo de refri no chão e me inclinei para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, bastante intrigado. Genuinamente curioso, perguntei: — Por quê?

Mason pareceu ponderar se me responderia ou não, antes que eu finalmente ouvisse algo sair de sua boca e a resposta me surpreendeu.  

— Porque enquanto você tiver aqui, eu consigo manter um olho em você e me certificar de que não vai fazer besteira.

Franzi o cenho, mais intrigado ainda. — Tipo o quê?

— Tipo, querer dar no pé de novo antes do ano acabar — apontou, certeiro, mais um pouquinho de veneno na ferida. — Depois de toda a bagunça que você fez, e de ter magoado tanto o Caleb, é melhor que você pelo menos fique até o fim do ano e não faça nenhuma merda antes disto. — Em seguida, como se não houvesse acabado de chutar o cachorro morto que sou eu, ele ainda concluiu, convencido: — É por isto que você tá aqui e é por isso que vai continuar aqui. 

Demorei alguns segundos para ter uma reação, sentindo o coração pesar no peito, e finalmente cheguei a uma conclusão. 

— Isso é muito ridículo... E estranhamente fofo — acrescentei, sorrindo fracamente para a maneira como Mason zelava pelo Caleb e tentava cuidar dele à sua maneira. 

Caleb merecia ter toda uma rede de suporte para cuidar dele e eu me sentia aliviado por isto, embora sentisse um gosto amargo na boca por sentir que não faço parte desta rede. Sempre que tento protegê-lo, acabo magoando-o. 

Apenas quando Mason suspirou pesadamente outra vez, percebi que ele ainda estava virado na minha direção e sequer olhava para a tela do computador ou o telefone na sua mão. Arqueei as sobrancelhas, percebendo que ele ainda me encarava com uma seriedade estranha. 

Abri a boca para questionar, mas ele foi mais rápido: 

— Você vai quebrar o coração dele, não vai?

Aquilo me pegou desprevenido e eu não consegui responder, as palavras travadas na minha garganta.

Você vai quebrar o coração dele, não vai?

Eu queria dizer que não, dizer que eu amo o Caleb como nunca amei ninguém, dizer que eu quero protegê-lo de tudo e ser motivo dos sorrisos dele. Mas o que eu quero fazer e o que eu faço são duas coisas bem diferentes, infelizmente. Eu gostaria de quebrar esse padrão, mas por mais que me empenhe, eu não consigo. E não é só porque eu não tento o suficiente, é porque realmente está fora do meu alcance.

Machucar o Caleb é inevitável, porque este sou eu.

Isto tem muito a ver com o motivo pelo qual eu nem devia buscar terapia ou qualquer tipo de ajuda: eu não mereço porque eu sempre vou acabar fazendo merda. É intrínseco, é imutável, é genético.

Eu sou mesmo alguém amaldiçoado.

*

— Você parece estar bem longe daqui. Gostaria de compartilhar o que se passa aí dentro?

Apenas quando ela me chamou de volta à realidade, percebi que eu não ouvi nada do que foi dito ou questionado no último minuto. Inclusive, apenas me dei conta do silêncio mortal no cômodo quando ele foi quebrado pela Morgan.

Parei de balançar a perna, meus olhos que estavam fixos na parede piscaram e focaram nela, e eu tirei a mão da boca. Ardia porque eu havia arrancado mais um pedaço de pele ao redor da unha e o gosto férrico do sangue tomou conta da minha boca.

Engoli em seco, pensando sobre, e minha perna tornou a balançar.

— Não. — Mas meu murmúrio saiu murcho e falho, e nem um pouco convincente.

— Não? — insistiu ela, com um indício de sorriso.

Suspirei, deixando os ombros caídos, ao passo que não me sentia preparado para verbalizar nenhum desses demônios ainda.

— Ainda não — especifiquei, dando de ombros.

Morgan foi obrigada a desistir momentaneamente, assentindo. Contudo, desta vez, como ela sabia que eu evitava o tópico da minha irmã, porque eu ainda não estava preparado a me aprofundar, ela acabou ressuscitando meus pais um tempo depois.

— Você me disse que a relação de vocês é ruim — apontou ela, relanceando o caderninho. — Posso perguntar se é assim desde sempre ou se algo aconteceu para que mudasse?

Suspirei, mas era compreensível que ela quisesse saber sobre isso, principalmente depois de saber que minha irmã morreu quando éramos pequenos. No entanto, era justamente sobre algo dentro deste tópico que eu queria conversar mas não me sentia preparado.

Tentei evitá-lo ao responder:

— Meu pai sempre me odiou — comecei, franzindo os lábios. — Desde que me conheço por gente. E eu sei, eu sei — acrescentei, quando ela pareceu prestes a falar algo. — Eu não devo falar como as pessoas se sentem a não ser que elas me digam. Mas ele nunca precisou dizer, tudo o que ele fazia sempre deixou isto óbvio. De que cor é o céu? Azul. Quem meu pai odeia? Eu. — Apontei para mim, graciosamente, soltando um riso amargo. Fiquei um tempo em silêncio antes de acrescentar, baixinho: — Agora, mais do que nunca.

Morgan pareceu querer dizer algo, mas ela seguiu:

— E quanto à sua mãe?

Olhei para ela, os olhos um tanto perdidos, antes de baixá-los.

— Minha mãe... — murmurei, sentindo o coração sangrar. — Minha mãe, ela... — Engoli em seco. — Com minha mãe é diferente. — Pensei por mais alguns minutos. — Eu sei que ela me ama, mas é complicado.

— De que forma? — Morgan insistiu, como quem diz: é aqui que iremos pousar hoje. De alguma forma eu senti que ela queria pousar no tópico do meu pai, mas achou melhor mudar a direção.

Por mais que ela gostasse de virar a própria TCC dela para mim, nem isto era o suficiente para eu entender por completo. Havia coisas que apenas ela sabia como fazer e eu não saberia dizer se essas coisas eram realmente aprendidas na faculdade ou se era uma própria experiência pessoal dela que a guiava.

— Ela me acolheu desde pequeno — murmurei. — Ela é do tipo que, por exemplo, se eu pedisse sorvete antes do almoço e meu pai tivesse presente, ele diria que não e ela reforçaria. “Escuta o teu pai”, ela diria — comentei, os olhos focados em algo que eu não podia ver. — Mas, se ele saísse da cozinha, ela me entregaria um pote de sorvete e iria cochichar: “coma rápido, antes que seu pai venha”.

Morgan sorriu e só então eu percebi que eu sorria também. Pigarreei, deixando o sorriso morrer, e olhei para longe, para a rua.

— Mas, se ele me batesse na frente dela até a minha pele erguer em vergões — continuei, baixinho —, ela só assistiria chorando. Se ele jogasse meu violão pela janela e dissesse que nunca mais quer ouvir aquele barulho de novo, ela só tentaria me confortar sem fazer nada a respeito. Se ele me desse um soco quando eu dissesse que sou gay, de novo, ela só choraria. Se ele ordenasse, logo depois, que ela não me seguisse de jeito nenhum, a última visão que eu teria antes de sair de casa seria dela prostrada no chão aos prantos.

Morgan assentiu, soltando um suspiro também.

— Estes são exemplos hipotéticos?

Sorri, os olhos nos carros lá embaixo, e não ousei olhar para ela. — O que mais seria? — brinquei, mas nós dois sabíamos as respostas para isto.

Morgan soltou o ar pelo nariz, provavelmente um riso triste.

— O que você pensa sobre isto? — questionou ela, ignorando a minha réplica. — Gostaria que ela fizesse diferente?

Estalei a língua, voltando os olhos para Morgan.

— Querer não é poder — apontei, com um sorriso fraco. — Ela faz o melhor que pode. Eu sei disso. Ela é muito dependente do meu pai e do deus dela, ela é praticamente uma marionete. Ela tem um relacionamento abusivo com ele. Com o meu pai, no caso — acrescentei, uma pontada de humor. — Mas quem sabe se com o deus dela também não? — Morgan arqueou as sobrancelhas. — Eu respeito, eu respeito — defendi, e ela usou uma expressão exagerada. Soltei um riso. — Eu só gostaria que ela me amasse tanto quanto ama eles dois, mas aparentemente eu tô muito abaixo nesse ranking. Não a culpo — acrescentei, mais uma vez. — Eu só tenho sentimentos conflitantes sobre isso. Ao mesmo tempo que quero que ela faça mais por mim, eu também entendo completamente por que ela não faz. Minha mãe é tão fodida quanto eu. Quanto ao meu pai, ela sempre foi submissa a ele, cuidava de mim como podia, mesmo com a interferência negativa dele. Ela era uma boa mãe — admiti — e eu sei que o rancor que sinto por ela talvez seja um pouco desproporcional. Ela não é ruim. Também nunca foi ruim pra mim. Ela só é ausente. Desde que minha irmã se foi, ela só é ausente. E eu não posso culpá-la por ficar imersa no próprio sofrimento. Eu não faço o mesmo?

Minha pergunta era retórica, mas Morgan ainda assim interrompeu o silêncio:

— Não tem nada de errado em querer mais da sua mãe — apontou ela, e eu desviei os olhos, estranhamente envergonhado por admitir isto. — O papel parental é cuidar dos filhos e, pra que isto seja possível, é necessário estar presente e não ausente. É interessante que você consiga enxergar o lado dela, afinal, ser mãe não faz dela menos humana. Mas — enfatiza ela, puxando meus olhos para si —, também, ser humana não deveria fazer dela menos mãe. Tem que haver um equilíbrio. Você discorda, Alex?

Hesitei por um momento, quase com medo de concordar com o que ela disse mas, enfim, neguei.

— Entendo o que você quer dizer — apontei, depois de pensar um pouco —, mas isso não é mais importante. Eu tenho dezoito anos, tô finalizando o colégio e eu já disse em alto e bom som que eu vou embora. Mais de uma vez e na última vez também. Ela sabe disso, os dois sabem — expliquei. — Eu já me humilhei de tantas formas quase implorando por atenção — admiti, chateado — e ainda assim não existe resultado bom. Quando eu saí de lá, eu deixei os dois pra trás. Eu não vou voltar. Eu dei a eles mil chances e agora não dou mais. Agora eu só quero ser li... — Interrompi minha fala, dando-me por conta do que diria, e senti as orelhas queimarem. Pigarreei, olhando para longe, tentando não cair no redemoinho que me faria querer fugir da terapia outra vez, e continuei da maneira que pude: — Eu só quero viver minha vida sem interferência deles. Eu achei que eu não conseguiria deixar a casa e parte de mim ainda tem medo de eu não conseguir deixar a cidade, mas eu consegui. E foi um alívio, pra ser sincero. Foi um peso, mas também foi um alívio.

Morgan ainda anotou algumas coisas, pensativa, antes de voltar os olhos castanhos para mim.

— Eu não disse que você tem que ficar na casa dos seus pais ou mesmo ficar na cidade, ou deixar de ser livre — elucidou ela, arqueando ambas as sobrancelhas, e eu desviei o olhar. — Inclusive, de acordo com o que você me conta, acho que você fez bem em sair de lá. Depois de sair de casa, você, inclusive — brincou —, decidiu começar terapia.

Acabei sorrindo, e assenti, revirando os olhos para a bobisse.

— A gente só está conversando — apontou ela, em um tom calmo. — Acredito que conversar sobre os seus pais é importante, não pra mim, mas pra você. Lembra do nosso objetivo? — questionou, e eu assenti. — Não é que eu pense que você precise dos seus pais na sua vida para que consiga viver mais tranquilamente, não mesmo — garantiu ela. — Mas já deu pra perceber que eles tem um papel muito importante na sua vida, positivo ou negativo. Se não for possível, trabalharemos com isto, mas se for possível — enfatizou — mantê-los na sua vida de uma maneira saudável e funcional — enfatizou novamente —, isto poderia nos ajudar a alcançar aquele objetivo. E, para isto, a gente precisa dialogar pra ver se essa possibilidade existe, mesmo que você não consiga vê-la. Porque se ela existe e você não consegue vê-la, eu tô aqui pra te entregar um pouquinho de luz. Esse é o meu papel.

Pensei um pouco a respeito, os olhos fixos nela e na maneira como ela deu dois tapinhas e acendeu a luz da sua luminária de mesa para demonstrar o que diz, como se iluminasse as coisas para mim.

Soltei um riso e ela o devolveu.

Que mulher boba - e genial.

Assenti, pensativo a respeito, e pensei que fazia sentido o que ela dizia. Ela queria descobrir se seria possível mantê-los na minha vida de uma maneira que não fosse a maneira tóxica de sempre, se poderíamos ser uma família saudável, porque se fosse possível, a gente tentaria fazer isto acontecer. Só que ela não entendia que as coisas estavam além da salvação. Eu não queria tentar, não queria dialogar, não queria mantê-los comigo, especialmente depois do que aconteceu.

Aquela noite miserável. 

— O que foi que você disse?!

Eu ouvi uma janela bater com força nos fundos da casa com o vento. 

Minhas mãos estavam fechadas em punho ao passo que eu o encarava com tanto ódio quanto ele me olhava. Minha mãe já havia desistido de ficar sentada para a conversa, havendo levantado depois de mim, e meu pai, todo superior, sequer colocou a bunda na poltrona desde o começo dessa intervenção ridícula. 

— Abe... 

Meus olhos se dirigiram para a minha mãe, tão pequena e miúda perto dele, em todos os sentidos da palavra. Eu podia sentir emanar preocupação dela ao mesmo tempo que seus olhos pareciam mais e mais culpados. Pelo jeito, ela havia começado a entender que aquela conversa a três foi uma péssima ideia. 

— Eu disse que não vou fazer merda nenhuma por vocês — repeti, assim que ele pediu. — Eu não preciso de um médico ou de um terapeuta pra me dizer qual é o problema comigo. São vocês — gesticulei, com raiva, em um grunhido. — Meu maior problema são vocês!

Meu pai me olhou com aquela mesma expressão de desgosto misturado com desdém da vida inteira, e naquele momento a minha mão coçou para afundar na cara dele.

Ele torceu o nariz em arrogância petulante e me olhou de cima a baixo.

— Era só o que faltava — cuspiu ele, com escárnio, ao pousar ambas as mãos na cintura. — Além de inútil com os estudos, ainda tá virando maconheiro. Eu é que não preciso de médico para que me diga o porquê de você andar alucinando e se rastejando pela casa com sono ruim — apontou ele, e eu quase morri de ódio pela maneira como ele se referiu ao meu sonambulismo. — Você tá virando um drogado e a culpa é nossa? — Soltou um som pelo nariz, faltando rir. — Certo. A culpa é de quem paga suas contas, suas drogas e a porra do estudo que você fez questão de jogar no lixo. Nem sei por que ainda está indo pro colégio se nós dois sabemos que você não tem a menor capacidade mental de chegar a lugar algum.

Naquele momento, minha visão chegou a embaçar de tanto ódio, mas meu querido pai ainda não havia terminado. 

— Henry! — Minha mãe chamou sua atenção, pegando o pulso dele, mas ele a fez soltar em um segundo com um safanão. 

— O que falta? — continuou, o indício de um sorriso maldoso. — Vender pulseiras do Bob Marley na praia? — debochou. — Não me surpreenderia nada se fosse este o seu futuro brilhante.

Minha mente rodopiou e eu me senti tremer todo, a visão embaçando com o frenesi dos meus pensamentos. 

Soltei um riso igual ao dele, observando-o de cima a baixo da mesma maneira, quase como um reflexo - justamente por ter a certeza que ele perceberia o quanto somos parecidos e que isto apenas aumentaria o desgosto dele por mim. 

— Não, futuro brilhante não é este, verdade? — consegui pronunciar, tão debochado quanto ele, e assim que as palavras começaram a sair, senti que não parariam tão cedo. — O futuro brilhante é ter uma casa gigante e tão vazia quanto eu, um trabalho de merda que não tira um sorriso da porra do meu rosto, uma mulher submissa a mim que anda tão feliz ao meu lado que precisa achar motivos pra levantar da cama, enquanto eu fodo minha secretária no meu tempo livre e dou a ela a única coisa que eu posso dar: dinheiro e jóias — cuspi tudo de uma vez, vendo qualquer zombaria arrogante esvair-se aos poucos do seu rosto. — Afinal, o que mais eu tenho além disso? Personalidade? Caráter? Valor? — Balancei a cabeça exageradamente ao soltar um riso infeliz. — Não, eu tenho uma esposa e um filho depressivos dentro de casa. Quem sabe se minha vagabunda particular não quer os dois de presente, já que ela aceita tudo o que eu dou?

Não ousei olhar na direção da minha mãe, a culpa fazendo menção de instalar-se no meu peito pela maneira como eu falava dela e da amante do meu pai. Apertei os dentes e ergui o queixo, tentando ao máximo focar apenas nele, e aproveitei o silêncio mortal que recaiu sobre a sala para completar meu discurso e bati palmas arrogantemente. 

— Que futuro brilhante, Henry, que futuro brilhante o seu — acrescentei, o gosto azedo na minha boca aumentando junto do tom da minha voz. — Um exemplo a ser seguido.

Pelo canto do olho, vi minha mãe limpar o próprio rosto e lamuriar: — Alex, por favor...

Engoli em seco, forçando-me a interrompê-la e não deixar que ela interrompesse a mim com o despertar de alguma empatia. 

— Pelo menos uma vantagem você tem, isso eu admito — continuei, sem tirar os olhos dele uma sequer vez. — Pelo menos a aberração desgraçada e podre que você tinha como pai está morta — cuspi, o ódio se acumulando cada vez mais à medida que a podridão do meu peito ia sendo jogada para fora. — Seu pai está no quinto dos infernos, dançando com o diabo — afirmei, de certeza absoluta, antes de baixar o tom de voz ao completar, a voz falhando por um segundo: — Eu não posso dizer o mesmo sobre o meu.

Em um segundo, ele já havia fechado o espaço entre nós e me segurava pelo colarinho da camiseta com tanta força que cambaleei. Os olhos escuros tão enegrecidos com ódio estavam apenas arregalados, sequer conseguindo franzir o rosto em alguma expressão além dessa. 

Em pensar que isso também tínhamos em comum: era só mencionar o pai dele que ele perdia totalmente a compostura. A diferença é que eu era capaz de agir assim se houvessem enaltecido meu pai ao invés de havê-lo massacrado como eu fiz com o dele. 

— Moleque insolente! — berrou, e eu tentei não me encolher como sempre fazia quando ele ficava bravo. — Repete na minha cara o que acabou dizer — ordenou, dessa vez, em um tom baixo e ameaçador, antes de grunhir: — Repete, Alex!

Pisquei, entrando em curto circuito mentalmente, sobre dever controlar minha língua ou guiar meus demônios para fora. Ou, ainda, o coração de criança amendrontada que ainda habita em mim, que parecia infartar e querer sair pela boca de estar enfrentando o meu pai. 

Por fim, me deixei levar pelos demônios acumulados. 

Já não sei se eu os guiava para fora ou eles é que me guiavam.  

— Mas você ainda nem ouviu nada, Henry — conseguir verbalizar, ainda que trêmulo. — Se você já tá tão decepcionado sem nem me conhecer direito, eu faço questão de me apresentar formalmente para decepcionar tudo de uma vez.

De novo, ali estavam: os olhos pretos, iguais ao meus, exalando o mesmo reservatório de coisa ruim. 

— Minha vida pode ser tão podre quanto a sua, mas algumas coisas eu não puxei pela sua genética ruim — neguei, com orgulho contido, mas escárnio descarado também. Ri, balançando a cabeça de um lado ao outro: — Não. Eu não vou me casar com mulher nenhuma e ter ela como parte da decoração da minha casa — cuspi —, nem vou ter filhos infelizes sob minhas asas, muito menos dar orgulho ao papai querido ao seguir a carreira que ele queria e viver enfurnado no meu trabalho pra fingir que sou feliz. Não — neguei outra vez. — Meu futuro é quase parecido com o que você imaginou. Meu futuro perfeito envolve vender minha música na praia, longe de vocês, de mãos dadas com o meu namorado. E pasme — ri, arqueando as sobrancelhas —, eu vou ser fiel. Imagino que essa deva ser a maior decepção de todas: que eu não vou ter um secretário pra foder no meu tempo livre — vomitei, antes de pensar um pouco. — Ou quem sabe ser fodido?!

O soco veio então.

Foi quase como poesia: ele me segurou forte, quase me sufocando pelo colarinho e, com um soco bem dado na minha cara, me soltou. Machucado, tonto e esparramado no chão. 

Ele finalmente me soltou. 

Seu punho acertou meu olho esquerdo e eu senti a cabeça inteira rodopiar antes que eu houvesse caído de bunda no chão. Mordi minha boca com tanta força que senti o gosto férrico de sangue e quando abri os olhos, percebi que a visão do olho esquerdo estava escurecida e úmida. Eu apenas usei as mãos de apoio, como reflexo, para que não acabasse deitado ao invés de sentado, e assim fiquei. 

Imaginei que devia ser uma visão patética.

Convenientemente, o sol fraco escondeu-se detrás de uma nuvem naquele instante e a casa pareceu escurecer ainda mais, sinal de que uma tempestade viria mais cedo ou mais tarde. 

Tudo doía, mas nenhuma dor era tão forte quanto a que emanava do meu peito aliviado. 

Fiquei sem reação por alguns segundos até ouvir a maior declaração de amor paterno já ouvida: — Você é o pior erro da minha vida. 

Eu apenas lembrei da minha mãe quando o soluço dela foi a única coisa que se pode ouvir naquele cômodo além do vento forte lá fora. Dirigi meus olhos até ela, vendo que ela se abraçava e chorava copiosamente, as mãos apertando-se com força, os olhos fechados como se em negação. 

Minha visão estava embaçada dos dois lados e só então percebi que eu estava chorando silenciosamente feito uma criança desamparada. 

— Você me dá nojo, Alexander — ouvi-o acrescentar, chamando meus olhos para ele. 

Sorri fracamente, sentindo-me dormente. — É recíproco, pai.

Henry pareceu finalmente encontrar palavras que não fossem murmúrios desgostosos a respeito de mim.

— Você quer viver sua vida miserável desta forma? — perguntou ele, embora a voz também estivesse falha desta vez. — Vá em frente. Mas não volte — declarou, firme. — Saia dessa casa e não volte. A partir de hoje, você não recebe um centavo meu, você não mora nessa casa, você não carrega o meu sobrenome.

Fechei os olhos, sentindo o rosto molhar ainda mais. 

— Finalmente — sussurrei, a dor remoendo meu peito na mesma medida que o alívio tomava conta. — Finalmente.

Sem saber em que momento decidi fazer isto e como, eu levantei lentamente, dei uma última olhada na imagem dos dois à minha frente e dei as costas antes de sequer tomar a decisão conscientemente. Eu cambaleei, sentindo-me tonto, até a porta, mas antes que chegasse nela, o murmúrio da minha mãe me faz parar. 

— Alex...

Virei para trás quando a ouvi dar uns três passos em frente, mas isso foi o mais longe que ela chegou antes de ser impedida rudemente. 

— Não ouse — cortou meu pai em um tom perigoso, segurando o pulso dela com força, fazendo-a estancar no lugar. — Se você ousar ajudá-lo, você irá com ele.

Minha mãe olhou-me com tanto sentimento que eu sequer consegui distingui-los no seu olhar azulado. Ela me encarou pelo que pareceu uma eternidade, tão intensamente que eu até pensei que ela cogitaria ir comigo mesmo. 

Mas isto seria sorte demais para o padrão da minha vida. 

Ela fraquejou ao desviar o olhar significativo do meu, e eu soube que estava sozinho nessa. Eu a vi virar-se para ele, tão miserável que chegava a ser uma imagem degradante, a mão livre sendo depositada sobre seu próprio coração, enquanto a outra estava arroxeando ao ser apertada por ele.

— Ele é meu filho, Henry — foi tudo o que ela disse, como se implorasse por compaixão. 

Henry desviou os olhos para mim novamente e firmemente pronunciou com tanto asco quanto poderia: — Não, ele não é.

Minha mãe dirigiu os olhos agoniados na minha direção outra vez, a dor estampada tão vividamente que poderia ser outro ser no cômodo. Eu engoli em seco e desviei o olhar daquela imagem. Quando menos percebi, eu já havia cruzado a porta, o último que ouvi sendo apenas um murmúrio distante da minha mãe. 

— Meu filho...

Suspirei, balançando a cabeça para tirar a imagem dela e o som da sua voz da minha mente. 

Foquei onde estava, com quem estava e o que estava fazendo, mas continuei com os olhos lá fora. Era um turbilhão de coisas que me atormentavam e, ao repassar as coisas na minha mente, pensei que jogar para fora podia ser tão aliviante quanto dolorido, como havia sido naquele dia da tempestade. 

Naquele dia, eu perambulei por um tempo na rua antes de voltar e entrar escondido, pegar minhas coisas, jogar na mochila e então sair de casa oficialmente. Na hora que finalmente saí com minhas coisas, já havia começado a chover e eu não voltaria atrás. Vaguei sem rumo por aí, a calmaria do alívio esvaindo-se ao passo que a ansiedade da minha situação sem teto e sem pais assolava-me. E foi assim que acabei na janela do Caleb e logo após, na porta do Mason. 

E logo depois, dentro desta sala com a Morgan. 

Aquele dia quase me quebrou ao meio, é certo, mas Morgan tem razão: todos os eventos haviam me trazido até aqui. E, naquele instante, ao me dar conta disto, eu me senti preparado para falar. A necessidade quase patológica de vomitar demônios que havia me assolado nos últimos dias retornou e eu não a suprimi. 

Ergui os olhos para ela e nós dois soubemos que algo estava por vir. 

Nem a boa sorte, caso me pertencesse, me ajudaria a falar sobre a origem de todos os demônios.

*

Agatha odiava dormir sozinha. 

Se ela não se enfiasse na cama comigo, se enfiava na cama com meus pais e nos incomodava até o sono finalmente bater. Mas ela já tinha quase cinco anos e minha mãe queria, suponho eu, dar mais autonomia para ela, já que eles viviam em cima por medo que acontecesse algo. Então durante um período, todo dia, a gente tentava fazê-la ficar no próprio quarto. 

Naquela noite, ela estava bem agitada como de costume e não queria ir para a cama, então eu fiquei com ela. Minha mãe relutou, porque não queria que eu mimasse muito a Agatha, mas acabou cedendo. No entanto, antes de sair e nos deixar à sós, ela me chamou para perto enquanto Agatha tentava arrumar a própria cama ao brigar com o lençol. 

— Alex, quando ela dormir, você tem que deixá-la — instruiu, e eu assenti, como se faz em momentos assim mesmo que eu quisesse negar. — Não pode ter dó, depois você fica todo dolorido de se enfiar ali com ela — apontou, com um indício de sorriso, para a cama pequena. — Ela vai ficar bem.

Eu concordei, como um bom menino, mas no fundo eu não queria dar ouvidos. Esperei ela sair antes de deitar com minha irmã na caminha dela. Agatha, no entanto, não colaborou: não parava quieta, sentava em cima de mim, deitava a cabeça no meu peito, depois trocava de lado na cama e enfiava os pés na minha cara.

Eu tentei acalmá-la, coloquei-a deitada no meu braço e a abracei levemente, tapando nós dois com a coberta de bichinhos. Obviamente, não funcionou.

— Vamo pulá na cama? — perguntou, baixinho, como um segredo.

Tentei não sorrir para o risinho dela e neguei: — Não, a gente tem que dormir.

Ela mexeu as pernas de maneira impaciente e ficou um tempo em silêncio antes de perguntar, novamente: — E amanhã?

Suspirei. 

— Você não lembra o que aconteceu da última vez? — questionei, amuado, pensando no ataque de asma que ocorreu outra vez. — Sem falar que é perigoso.

Ela apoiou o queixo no meu ombro, as pernas não deixando de mover-se como se a cama tivesse cheia de formigas, e me olhou.

— Mas eu góisto.

— Eu também, mas a gente já pulou bastante.

No fundo, eu tinha medo de causar uma crise nela outra vez. 

— E "semana na outra"?

— Agatha, vai dormir.

Dei tapinhas acolhedores nos fios louros e finos dela, fazendo um "shh", e funcionou por pouco tempo antes dela quebrar o silêncio. 

— Você pode pulá sem eu. — Suspirei pesadamente. — É peligroso pra mim, né? — perguntou, me dando um chute não intencional. — Por causa de que eu preciso usá a bombinha. Mas você não precisa usá a bombinha. — Ergueu um pouco o corpo para me olhar e eu abri os olhos. — Precisa, mano?

— Não, eu não — garanti. — Mas não tem graça pular na cama sem você.

No mesmo instante ela sentou na cama por sobre as pernas e deu mini pulinhos na mesma posição ao explicar: — Tem sim. Porque pular é graça, porque quando você pula, tem graça, porque ri.

Dei um sorriso para a explicação fofa e apertei a bochecha dela, mas ela resmungou, afastando minha mão e dando mini pulinhos novamente. 

— Só com você.

Agatha levantou da cama e segurou minha mão, tentando puxar para que eu levantasse também. 

— Quero vê você pulá — explicou, brilhantemente, fazendo resmungos baixos com todo o esforço que fazia para me fazer levantar. — Vamo. 

Eu fiz o mesmo e puxei ela para a cama, abraçando-a forte para mantê-la no lugar, e ela resmungou. 

— Agatha, deita aí quietinha e dorme, tá bom? — implorei, vendo que os resmungos ficavam mais altos. — Daqui um pouco o papai aparece e fica brabo com nós. 

Comigo, corrigi mentalmente. 

No mesmo instante, ela parou de se mexer e ajeitou-se comigo novamente, dez segundos tendo passado antes das formigas na cama fazerem as pernas dela mexerem para lá e para cá outra vez. Ainda assim, o silêncio me fez fechar os olhos até que fosse inesperadamente - ou não tanto - quebrado de novo. 

— Vamo agora? — sussurrou, próximo do meu ouvido, em tom conspiratório outra vez. 

Quase grunhi. — Agatha, eu já falei — apontei, em tom de aviso. 

— Mas eu quero vê você pulá e você com graça — resmungou ela, as pernas fazendo com que a gente fosse destapado outra vez. 

Suspirei, parando para olhar para ela. 

— Você quer que eu pule na cama pra você ver, porque acha que tem graça mesmo assim?

Ela balançou a cabeça para cima e para baixo.  

— Uhum.

— E não vai ficar triste porque não pode pular comigo? — duvidei, olhando-a com análise. 

Mais uma vez, ela sentou sobre as pernas e começou a gesticular o dedinho ao dizer que não. — Ahh, não, o mano não entende. Pulá tem graça, não tem triste... Tristi... Tristaça.

Acabei rindo. 

— Tristeza — corrigi, rapidamente. 

Ela pareceu entender, como se algo se iluminasse na sua mente. — Tristeeeeeee... — Mas parou e pareceu confusa outra vez. —Não é? Tristaça?

Por um segundo, "tristaça" fez muito sentido e eu fiquei confuso ligeiramente, mas afirmei, sem tanta certeza desta vez: — É tristeza. 

Ela fez menção de se levantar outra vez, murmurando coisas sozinha, mas eu segurei-a pela mão rapidamente. 

— Deita aqui, vem cá. 

— Mas...

Ela olhou para a porta, o dedinho apontado para lá, e eu soube que ela se referiu a pular na cama dos nossos pais. 

— Tá, eu vou pensar — prometi, mas ela conseguiu levantar e pular no chão, a mão presa na minha.— Amanhã eu te digo.

— Pulá, pulá, pulá.

Tentei puxá-la outra vez. — Eu sei, você gosta muito de pular.

Ela subiu por vontade própria e ajeitou-se outra vez debaixo das cobertas comigo, mas dessa vez o silêncio não durou nada, já que ela continuou a conversar enquanto arrumava as cobertas: 

— Alex, quando você tiver grande, vai ter uma cama grande pra pulá?

— Vou.

— Então também eu — concluiu ela, os mini dentinhos aparecendo e as pernas balançando de um lado para o outro até eu levar outro chute involuntário. — Vou ficá com você. 

Franzi o cenho, tirando a perna dela de cima de mim. 

— Quando eu for grande, a gente não vai morar junto — garanti, estufando o peito ao pensar naqueles filmes com personagens na faculdade. — Eu vou dividir quarto com meus amigos e não vai ter criança — alertei, como se eu fosse adulto. 

— Não, não, não — ela negou, gargalhando, como se risse da minha cara. — Eu vou sempre morá com você.

— Não vai, não — resmunguei. 

— Voooooou — garantiu ela, com sorrisinhos. — Voooou. 

— Não vai. 

— Vou, sim — disse ela, sorrindo, mas já mais séria ao declarar: — Vou morá sempre com meu maninho.

Suspirei, não querendo discutir, ainda masi que um beiço começava a se formar nos lábios emburrados dela. — Vai?

Ela sorriu outra vez, o humor mudando no mesmo instante. — Vou.

— Tá bom, mas só porque o mano te ama. 

Fiz carinho nos cabelos dela e ela devolveu: — Também eu.

Sorri para a maneira que ela sempre dizia o "eu também" invertido e como era difícil corrigir algo assim se ficava tão mais fofo ao contrário. 

Agatha demorou a dormir, mas acabou adormecendo uns minutos depois, na vigésima vez que consegui fazer ela deitar para dormir e afaguei os cabelos dela. Eu quase caí no sono, mas lembrei do que minha mãe disse, então levantei devagar, com todo o cuidado do mundo para não acordá-la, e me afastei pé por pé da cama. 

Suspirei quando cheguei na porta e olhei para trás. Ela iria acordar de madrugada, ou de manhã, e iria abrir o berreiro porque magoou de acordar sem ninguém com ela. 

Mais uma vez, meu coração apertou ao imaginar a cena e, mais uma vez, eu voltei para a cama com ela. Não sei quanto tempo fiquei observando-a dormir, em um conflito interno, entre zombar internamente das bobagens da minha mãe sobre a Agatha precisar aprender a dormir sozinha e entre a lógica de que um dia ela precisaria dormir sozinha e seria mais difícil sem nós. 

Por fim - e pela primeira vez -, eu dei as costas com um bocejo e fechei a porta devagar, o coração pesado. 

Naquela noite, eu descobri que não era apenas a Agatha que precisava dormir comigo, eu também precisava dormir com ela. E que, por mais que eu tivesse um papel de irmão mais velho e mais forte, eu também odiava dormir sozinho.

Na manhã seguinte, quem acordou chorando fui eu. 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Tem uma menina que faz reels no insta em que a legenda é “esse vídeo não é sobre *insere tal assunto discutido nele*”. Então, eu preciso dizer sobre essa última parte: essa cena não é sobre pular na cama.
Me contem o que pensam a respeito.

Peço perdão se já havia mencionado alguns nomes dos tios - exemplo: pais do Ian - porque eu não lembro e não anotei, então dei esses nomes. Me avisem se eu já tiver dado outros nomes. Outra coisa: eu mudei o nome do pai do Alex ahahhaha. Sorry. Eu tinha dito que era Anthony no capítulo da ID dele, mas eu tinha dado outro nome nos meus arquivos e escrevi toda uma cena com o nome de Henry, então como gravei como “Henry” na cabeça, achei que seria mais fácil trocar lá no capítulo da ID pra Henry ao invés do contrário. Gloria é a mãezinha do Ian, Milton e Ursula também são irmãos dela e do Henry.

Mais uma vez, desculpa a demora, os possíveis erros - ainda não revisei, tava ansiosa pra publicar logo ahahahha, e todo o demais. Não tenho desculpas. Suponho que eu só me afastei da escrita mesmo, mas isso é algo que eu quero reverter. Mas tá difícil.

Anyway.

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Made of Stone" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.