Uma dose violenta de qualquer coisa escrita por Blurryface


Capítulo 40
Ela se foi




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O dia seguinte.

A garota observava as pessoas tomando seus lugares na arquibancada do ginásio, por algum motivo que ninguém sabia ainda o diretor reunira o ensino médio inteiro ali. Dizia que era algo importante e todos ficaram chocados ao verem uma viatura no estacionamento da escola e dois policiais no centro da quadra com o diretor. Os professores também tinham um comportamento estranho naquele dia, não respondiam as perguntas dos alunos direito e apenas insistiam para que todos tomassem logo seus lugares.

A garota olhou em volta procurando as amigas, a noite passada fora um desastre completo e todos pareciam estar se evitando.

“Talvez tenham faltado, por isso não vi ninguém. Tenho que ligar pra elas depois que essa reunião acabar, só espero que o diretor não enrole muito”, pensou enquanto sacudia as pernas ansiosamente.

Nesse momento avistou Marina entrando pela lateral da quadra com outros alunos e sentiu-se aliviada. Do jeito que fora embora na última noite, temeu que algo ruim pudesse ter acontecido com ela. O olhar da loira encontrou o dela e hesitou por um instante, olheiras profundas marcavam seus olhos. A garota se afastou para a direita e abriu espaço para que a amiga sentasse ao seu lado. Marina se aproximou e sentou.

—Como você está?

—Um lixo, Rafa. Tentei ligar para o Eli a manhã toda mas não consegui, acho que ele nem veio pra aula...

—Só precisa dar um tempo, ele não vai te evitar pra sempre, sabe disso – Rafaela tentou ser positiva –Falou com Luana?

—Não – a loira respondeu irritada –E nem sei se quero, pra falar a verdade.

—Marina, sabe que ela...

—Sim, sei – Marina a interrompeu –Sei todas essas merdas sobre como ela não quer fazer mal de verdade, sobre como ela tem a vida difícil, sobre como todos são tão ruins com ela... Só não quero ter que saber disso hoje então, por favor, quando a minha raiva passar eu penso em falar com ela. Por enquanto eu prefiro continuar achando o que ela fez uma puta babaquice.

Rafa afundou no banco em silêncio, não queria sobrecarregar Marina mais do que ela já estava sobrecarregada. E, de qualquer forma, a microfonia provocada pelo aparelho de som improvisado no meio do ginásio interrompeu a conversa das duas. Todos os alunos passaram a prestar atenção no diretor com o microfone em mãos e no que ele tinha a dizer.

—Bom dia a todos vocês! Sei que essa situação não é comum mas tivemos a necessidade de convocar todos aqui. Esses são o detetive André Brandão e o policial Felipe Santos – o diretor apresentou os dois homens, André era mais velho que o outro e tinha um cabelo grisalho enquanto Felipe poderia facilmente se passar por um aluno daquela escola –Eles pediram nosso auxílio na investigação que foi aberta essa manhã.

O diretor fez uma pausa, como se o que ele fosse falar fosse difícil demais e ele mesmo não entendesse direito o que estava acontecendo.

—Eles estão aqui para interrogar alguns de vocês na tentativa de entender o que aconteceu na noite passada com uma de nossas alunas: Luana Lima – Rafa e Marina se olharam confusas mas logo voltaram a atenção ao diretor novamente –O corpo dela foi encontrado nos limites da cidade, perto de um lago que faz parte da Área de Preservação de Quixote. Ainda não temos pistas sobre qualquer motivação ou suspeito e é por isso que é necessária a colaboração de vocês.

Um murmurinho tomou conta das arquibancadas mas o que foi dito ainda não fazia sentido para as duas garotas.

—Isso não tem graça! – Marina gritou, um silêncio tomou conta do ginásio e todos começaram a prestar atenção nela –Eu não sei como ela conseguiu convencer vocês a fazer isso mas podem parar!

—Marina... – o diretor a olhava com preocupação.

—Não, isso é só mais uma das pegadinhas dela! – a loira ficava mais irritada a cada segundo –Já chega!

Rafa continuava sentada na arquibancada observando a discussão da amiga com o diretor em completo silêncio assim como todas as outras pessoas ali, todos em estado de choque.

“Ela estava viva há menos de doze horas”, pensou. “Eu a beijei há menos de doze horas, ela me abraçou, segurou minha mão, riu comigo e eu a deixei sozinha! Ela pediu pra ficar no quarto, eu devia ter ficado lá, não devíamos ter ido ver o que estava acontecendo na piscina”

—Marina, eu sinto muito – o diretor disse e pela expressão no seu rosto ele parecia sincero.

—Para! Não está enganando ninguém – a loira queria que parassem de mentir pra ela, não entendia porque todos estavam falando disso como se fosse verdade.

—Marina... – Rafa chamou se sentindo tonta mas a loira não a escutou.

“É minha culpa, eu disse que ela não teria que ficar sozinha mas eu a abandonei mais uma vez! Ela me pediu pra ficar e depois pediu pra ir comigo, mas eu a afastei”, a cabeça da garota girava. “Eu não sabia que ela ia morrer! Coisas piores aconteceram e ela não morreu por isso, não achei que uma coisa idiota dessas fosse matá-la”

—Eu sinto muito mesmo – o diretor repetiu abaixando a cabeça, todos os professores e alunos encaravam Marina com tristeza nos olhos.

—Por favor, não – a loira começava a se desesperar e as lágrimas surgiam nos seus olhos –Não!

Ela berrou e caiu de joelhos na beira da quadra, Rafaela levantou e a puxou para fora. Alguns professores deram um passo à frente para ajudar mas o diretor fez sinal para que deixassem as duas garotas sozinhas por alguns minutos. Quando as duas chegaram no lado de fora, Marina caiu no chão novamente.

A loira não conseguia mais formar palavras, ela apenas gritava enquanto chorava e cobria o rosto com as mãos. Rafaela começou a soluçar enquanto tentava falar com a amiga:

—Calma, Marina, por favor... Calma.

—Ai, meu Deus... O que eu fiz?!

“Eu fiz também, Marina, é minha culpa também”, a garota pensou. Rafa se ajoelhou ao lado da loira e a abraçou, os corpos das duas sacudiam por causa dos soluços, os gritos de Marina doíam no ouvido de Rafa mas ela não se afastou, não podia se afastar agora, não iria se afastar nunca mais. Já perdera uma pessoa, não podia perder outra.

—Me desculpa – Rafa disse entre seus soluços e o grito da amiga –Eu deixei ela sozinha também, você não pode assumir essa culpa sozinha.

—Isso é de verdade? – a loira perguntou –Ela não vai aparecer e dizer que é tudo uma brincadeira? Me diz que você sabe de alguma coisa, por favor...

—Não, Marina – as lágrimas escorriam pelo rosto de Rafaela até pingar do seu queixo até o chão –A gente perdeu ela...

Marina se sacudia nos braços de Rafaela, o rosto vermelho de tanto gritar e chorar.

—Que tipo de mundo faz uma coisa dessas?! – a loira perguntou –Que merda aconteceu?!

—A gente vai descobrir, calma – Rafa respondeu tentando segurar as próprias lágrimas, sentia como se estivesse desmoronando mas tinha que tentar ser forte por sua amiga. Sabia que devia estar fracassando terrivelmente, porém.

—A gente tem que sair daqui – a loira disse tentando se acalmar –Por favor, vamos sair daqui...

A porta do ginásio se abriu e o diretor apareceu ao lado delas. Ele se ajoelhou ao lado das duas, que estavam abraçadas chorando, e disse:

—Vamos, meninas. Vou levar vocês pra tomarem uma água na diretoria, vamos cancelar as aulas hoje.

***

Marina e Rafaela estavam sentadas no escritório do diretor, a loira tomava alguns goles de água mas já havia parado de chorar a algum tempo. Seu rosto ainda estava vermelho, entretanto. Rafa apenas encarava a parede com um milhão de coisas se passando pela sua cabeça, sentia-se em choque, pensava em todas as coisas que poderia ter feito na noite passada, em como Luana a olhou magoada quando foi embora atrás de Marina e a deixou sozinha.

—Eu gostava da garota, apesar de tudo – o diretor admitiu depois de algum tempo em silêncio, ele estava de pé perto da janela observando os alunos irem para a casa. Todos pareciam meio apáticos mas ninguém chegava perto de estar na mesma situação que Marina e Rafaela, elas eram praticamente irmãs de Luana –Ela arrumava confusão e me irritava bastante mas, caramba, ela sabia ser engraçada quando queria... E ninguém pode negar o carisma que ela tinha.

—O que aconteceu? – Marina perguntou bem mais calma nesse momento, agora que o choque inicial passara não parecia haver mais lágrimas que ela pudesse chorar.

—Quer mesmo saber? É uma história bem terrível – o diretor confessou e lançou um olhar preocupado para as duas garotas –Não sei se sou a melhor pessoa pra contar isso, talvez se esperarmos Brandão e Santos eles consigam explicar de um jeito mais ameno...

—Por favor – Marina pediu –Não quero escutar de um policial aleatório. Você conhecia ela, quero escutar você.

O diretor balançou a cabeça concordando e sentou na cadeira em frente às garotas. Respirou fundo, passou as mãos nos cabelos e começou:

—Sabemos que houve uma festa na noite passada, vocês provavelmente estavam com ela lá. Não sabemos ainda o que aconteceu porque não interrogaram ninguém mas aparentemente Luana foi embora sozinha. Alguém a abordou e... – o diretor hesitou por alguns momentos –Não sabemos direito a causa da morte, mas...

—O que? – Rafa insistiu, essa demora em responder a estava deixando exausta –Só fala de uma vez!

—Ela foi esquartejada – as duas meninas congelaram –Encontraram os pedaços dela perto do lago na área de preservação da cidade, na beira da estrada. Foi fácil identificar o corpo por causa da tatuagem de lobo que ela tinha na escápula...

O diretor abaixou a cabeça sem saber o que fazer enquanto elas assimilavam essa informação. Rafa sentiu vontade de vomitar. Imaginou todas aquelas curvas tão perfeitas da loira, o sorriso irônico, os olhos cinzentos, o cabelo loiro sempre rebelde, o jeito com que erguia a sobrancelha quando queria provocar alguém, a tatuagem com traços tão precisos... Tudo isso manchado de sangue, tudo isso despedaçado. Ela não era mais uma pessoa inteira, era só um monte de pedaços.

—Sinto muito – o diretor falou e fez uma pausa antes de continuar –Vocês provavelmente vão ser interrogadas amanhã ou depois, eram as amigas mais próximas dela.

Marina ia falar algo mas a atenção dos três desviou-se para o barulho da porta da secretária abrindo de repente e uma discussão começando do lado de fora do escritório do diretor.

—Ei, você não pode entrar assim!

—Elas estão aqui?

—Garoto, você não pode... – a secretária tentou dizer mas logo a porta do escritório foi escancarada e Eli apareceu.

Marina e Rafa recomeçaram a chorar quando o viram, o garoto de cabelos brancos correu para as duas e as abraçou enquanto dizia:

—Eu sinto muito, sinto muito mesmo... Ela merecia mais, ela merecia coisa melhor!

As duas não conseguiram responder nada, apenas choraram nos braços do amigo pelo tempo que ele permitiu.

***

Os três caminhavam em silêncio até o carro de Marina, o diretor os havia liberado para ir embora quando o garoto prometeu que iria dirigir e que estava em condições boas o suficiente para isso. Eli abriu a porta e as duas tomaram seus lugares, Marina no banco do passageiro e Rafa no banco de trás. O garoto sentou no banco do motorista e ficou alguns segundos parado segurando o volante com ambas as mãos.

—Não acredito que isso aconteceu – ele comentou com o olhar distante –Ela era praticamente uma heroína! Nunca conheci alguém que parecesse tão indestrutível quanto ela...

Rafa fechou os olhos ao pensar no corpo da amiga todo despedaçado e desfigurado, definitivamente ela não era mais indestrutível. Ou talvez nunca tivesse sido.

—Bom – Eli deu a partida no carro –Vamos todos ficar quietos hoje, ok? Vou deixar vocês em casa, tentem descansar. Amanhã é um novo dia.

As garotas apenas continuaram sem falar nada pelo caminho todo.

***

Quando Marina pisou em casa, viu o pai sentado na sala de estar com um ar preocupado. Ele ficou em pé assim que a viu.

—Nina...

Ela continuou parada o encarando.

—Recebi uma ligação do diretor...

Antes que o pai terminasse a frase, a loira desabou em lágrimas pela milésima vez naquele dia e se jogou nos braços dele. Ela mal conseguia ouvir o que ele lhe dizia enquanto afagava seus cabelos, nada mais tinha sentido nesse mundo, era tudo um monte de confusão, nada mais parecia certo.

—Vem, você precisa descansar – ele disse a guiando até o quarto.

***

Rafaela estava deitada na sua cama olhando para o teto, Luciana deveria ficar de plantão o dia inteiro e só voltar de madrugada mas a garota acabava de escutar o barulho do carro dela parar na frente de casa. Sabia o motivo pelo qual ela devia ter saído mais cedo.

A garota fechou os olhos e virou-se de costas para o teto, enterrando o rosto no lençol. Pensou sobre a primeira vez que beijou Luana, há apenas alguns dias atrás. Parecia que fazia mais tempo. Ficou perturbada ao perceber o cheiro da loira e olhou em volta.

Nada, estava sozinha no quarto.

Suspirou e enfiou o rosto no lençol novamente. E foi aí que entendeu.

O cheiro da loira estava no seu lençol, impregnado mesmo depois de dias. Desejou poder guardar esse cheiro para sempre, mas sabia que ele ia desaparecer com o tempo assim como a lembrança da amiga que amara. E começou a chorar novamente.

Ouviu a porta do seu quarto abrir mas não se virou. Sentiu uma mão no seu ombro e soube que era a mãe adotiva.

—Ela morreu, mãe...

—Eu sei, meu amor. Sinto muito.

—Mãe?

—O que foi, querida?

—Um dia isso vai parar de doer?

—Oh, meu amor – Luciana beijou o topo da cabeça de Rafa –Vai doer menos com o tempo, mas nunca vai sumir totalmente.


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