O milagre de uma lágrima escrita por NanyBecks


Capítulo 3
Pais e filhos


Notas iniciais do capítulo

"Você me diz que seus pais não te entendem
Mas você não entende seus pais.
Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo.
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer"

Renato Russo



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No capítulo anterior: Angélica chateou-se com seu pai por ter mais uma vez desmarcado seu compromisso com ela.    

Amanhece. O relógio marca 6 da manhã. Angélica sai de sua casa passando pelo condomínio, saíra mais cedo do que de costume para a escola. Seu horário hoje é só às 9 mas depois de tudo que aconteceu na noite anterior, preferiu sair antes que seus pais acordassem, principalmente seu pai. Ele esteve em seu quarto depois que chegara do Eldorado. Ao vê-la dormindo, a cobriu como fazia como quando era pequena sempre que adormecera à sua espera. Possivelmente, também lhe dera um beijo de boa noite. Quanta ternura e amor havia em seus beijos, muitas vezes, acordava, mas fingia estar dormindo só para sentir seus carinhos e suas palavras doces. Sua memória começa a trazer à tona lembranças agradáveis de todos os momentos vivenciados com seu pai que parece diluir toda a raiva que ele provocara algumas horas antes. As lágrimas repletas de nostalgia começam a escorrer novamente por seu rosto trazendo um acalento para sua noite que fôra tão fria. Não! Ela não pode permitir sentir-se confortável com essas lembranças. Prometera esquecer toda sua história e começar a partir de hoje, uma vida nova. Com raiva por sentir-se mais uma vez com saudade de sua bela infância, seca as lágrimas e firme em seu objetivo, segue para a escola. Não será nunca mais a mesma!
     A cidade do Rio de Janeiro acorda com uma manhã nublada. A noite não foi ruim apenas para Angélica e Ventura. Mariane e Cristina também vivenciaram momentos duros na noite anterior. Mariane não irá a aula, tem que cuidar de Anabela que estuda no período da tarde. Não podia faltar essa aula, já está no limite e pode perder sua bolsa de estudos se continuar com as faltas excessivas mas nada pode fazer fazer. Nesse momento tem que cuidar da irmã e torcer para que Camille consiga mais uma vez, abonar suas faltas.

Hospital Universitário Eldorado (HUE)

     O hospital está cheio, são 9 horas e esse período é movimentado na recepção. Além de pessoas necessitando de atendimento emergencial há também aquelas que ali estão para fazer exames. No longo corredor que liga a recepção às salas de emergências e enfermarias, Cristina não se ausentara da cama do marido que fôra internado para mais uma das suas inúmeras desintoxicações. 
     Deitado na cama, Rogério dorme tranquilo enquanto toma sua última dose de soro. Cristina ficara olhando-o por toda noite e em um semblante triste, passa a mão sobre seu rosto. Ele era um homem tão bonito! Moreno, alto, com cabelos lisos e pretos. Com seus olhos castanhos claros e um porte másculo, não houvera quem não se apaixonasse por ele. Sua voz sedutora encantava as mulheres. Como era feliz com ele! Viveram momentos muito bons juntos. Os dois se conheceram em um barzinho no Leblon, ela trabalhava como secretária em uma empresa multinacional e ele estava no último ano de sua faculdade de licenciatura em Matemática. Ambos já estavam meio altos quando trocaram o primeiro beijo e depois de 4 anos de relacionamento, decidiram se casar. 
     À pedido de Rogério, Cristina parou de trabalhar, como ele já trabalhava, sua renda dava para mantê-los sem que ela precisasse trabalhar, afinal, ela nem gostava tanto assim da sua função. Rogério sempre bebera e algumas vezes, ela também. Já perdera as contas de quantas vezes chegaram caindo em casa. Era um casal feliz! Hoje ela se pergunta se não contribuiu para manter o vício do marido. Será ela uma má esposa? Uma má mãe? Ou será Rogério o próprio causador de seu problema? Muitas vezes ouvira a psicóloga da escola das filhas falar em co-dependência, mas que parcela de responsabilidade teria sobre isso? Talvez a tentativa de proteger sempre o marido como diz Mariane, mas como largá-lo agora nessas circunstâncias? Não poderia, ela o ama demais para isso.
     Rogério tem 45 anos, mas com sua aparência envelhecida pela bebida, parece ter uns 60. Cristina continua a olhá-lo passando a mão sobre seus cabelos com pena do que aquele homem tão bonito se tornou. Ele então acorda ainda meio tonto.

Rogério: Onde estou? -Perguntou sem dar-se conta do que acontecera-
Cristina: Rogério, como você está? -Preocupada-
Rogério: O quê aconteceu?
Cristina: Você se embriagou e teve uma crise convulsiva. Caiu no La Porte e te trouxeram para cá.

     Rogério ao ouvir Cristina deu-se conta de tudo que poderia ter acontecido. Lembrou-se que após receber sua demissão no colégio procurou o bar mais próximo e bebeu até que perdera a consciência. Não consegue lembrar de como chegou em casa mas por estar em uma cama de hospital já pode imaginar o que acontecera e lamenta-se incrédulo:

Rogério: Meu Deus! Meu Deus! O quê eu fiz? -Tom de choro-

     O sentimento de culpa o invade mais uma vez. É sempre isso que acontece sempre que expõe sua família à algum vexame público. Não se suicidara ainda porque Anabela não suportaria perder um pai.
                  Cristina prossegue em seu diálogo:

Cristina: Por quê não me contou Rogério?
Rogério: Eu fiquei muito envergonhado. Não tive coragem de contar.
Cristina: Somos uma família. Temos que nos ajudar.
Rogério: Já não somos uma família à muito tempo Cristina. Mariane não me vê como pai. Me esconde dos amigos. Não quer nem que eu vá à sua festa. Uma data tão importante para ela e eu não vou poder participar.
Cristina: Não pense nisso! Mariane também sofre com tudo que aconteceu mas ela vai te perdoar. Você tem que se tratar, precisa cuidar desse seu vício que destrói sua família. Eu amo você Rogério e quero muito que fique bem! -O acaricia com ternura-

     Ainda no hospital, Ventura adentra a recepção. Não é seu dia de plantão, fôra apenas para ver se Rogério estava bem. Com seu celular na mão, está tentando desde a hora que acordou uma comunicação com Angélica sem sucesso. Chateado, guarda o celular no bolso, sorri para a recepcionista e adentra o enorme corredor dirigindo-se à enfermaria onde está Rogério. Bom humor é sempre fundamental, pensou ele.

Ventura: Bom dia! -Cumprimentou com seu sorriso cativo de sempre-
Cristina: Bom dia doutor!
Ventura: Vim ver como você está. -Disse começando a examinar Rogério-
Rogério: Estou bem. Meio enjoado e trêmulo.
Ventura: É normal. Ficará assim por um tempo até o corpo se adaptar. 
Rogério: Quando vou poder ir embora?
Ventura: Rogério, você ingeriu uma grande quantidade de álcool e por isso terá que ficar aqui pelo menos até amanhã para ser desintoxicado. Cristina? -Chamou-a- Posso falar com você?
Cristina: Claro! Já volto. -Dá um beijo na testa de Rogério dirigindo-se com Ventura ao corredor onde continuam a conversa-
Ventura: Conheço uma clínica ótima para dependente de álcool, se quiser...
Cristina: Já tentei inúmeras clínicas. -Disse desanimada- Evangélicas, espíritas, no Rio, em São Paulo, até em Brasília e nenhuma deu certo. Ele não aderiu ao tratamento e sempre fugiu de todas elas. Eu não sei o que fazer Ventura! Ontem eu soube que ele perdeu o emprego, por isso bebeu desse jeito. Como vamos fazer para nos manter? Eu não posso trabalhar, o Rogério não deixa. -Desesperou-se-
Ventura: Calma Cristina! Vou te ajudar. -Sereno- Existem hoje programas que podem ajudar você nessa situação. Vou pedir para a assistente social conversar com você e você conte à ela tudo que se passa, principalmente, suas dificuldades financeiras.
Cristina: Eu tenho vergonha! -Argumentou-
Ventura: Terá que perdê-la. Você tem que cuidar do seu marido e das suas filhas. Elas precisam de você agora. Eu preciso ir. Tenho que passar na Climédia e buscar Angélica na escola. Qualquer coisa pode me ligar.
Cristina: Obrigada Ventura. -Sorriu com gratidão-

     Terno como sempre, sorriu de volta com compaixão por toda a situação da vizinha. Se conhecem à muito tempo e sempre cuidara de Rogério quando estava em decadência por conta de seu alcoolismo. Cristina sempre o chamara em sua casa quando precisara e ele sempre solícito, nunca negou-lhe ajuda. Ventura sai em direção à recepção do hospital, ainda tem outros afazeres antes de resolver sua situação com a filha. Cristina, confusa e envergonhada em ter que abrir sua vida privada, fica à pensar encostada na porta da enfermaria.
               O Colégio Vicente Marques ou C.V.M, localiza-se nas proximidades da Lagoa. Com a mensalidade de 6 mil para o ensino médio, torna-o um colégio acessível apenas para a classe média alta à milionária. Por ser um colégio que tem uma inspiração montessoriana com alguns diferenciais metodológicos, seus alunos mesmo tendo séries, estudam ao invés de matérias separadas, módulos educacionais formados por interesses em comum. Dirigido por Camille, uma psicóloga doutora na área de educação que baseou todas suas pesquisas no método Montessoriano e inspirada nas universidades americanas, ousou pensar em um colégio sem muros e bastante diferenciado, assim é o C.V.M. Com uma proposta totalmente humanizada e inovadora, tem como ideologia o ensino livre, isso significa que nenhum aluno é obrigado a frequentar os módulos educacionais seriais de interesses comuns (aulas) se não quiser. Sua estrutura foi minunciosamente pensada para contemplar o ensino mesmo quando o aluno não está em sala. A única exigência colocada por Camille é o cumprimento do horário estabelecido por cada módulo, sendo assim, o aluno não precisa estar na sala, mas precisa estar na escola. Ele estará aprendendo assim mesmo junto com uma equipe de profissionais altamente capacitados e treinados para essa perspectiva educacional.
             Pintado em verde,  suas salas de aulas são extremamente amplas e bastante coloridas. Contam com inúmeros armários, vários puffs sobre o chão branco, algumas mesas redondas para a execução das atividades, computadores e um pequeno quadro branco pendurado à parede. A sala de jogos com vídeo-game, jogos de tabuleiros, totó, sinuca se confunde mais com uma área de lazer de shopping do que com uma escola, porém, todos esses atrativos fazem parte da didática de ensino. A única semelhança com os colégios tradicionais particulares é a cantina, a piscina e a quadra de esportes para a prática de atividades físicas. Uma horta, um belo jardim em seu interior e um pequeno vidro transparente colocado unicamente para a segurança dos alunos é o que delimita o C.V.M dos outros espaços onde está localizado. 
             Mariane é bolsista desde que seu pai perdera o emprego. Sem condições pagar a alta mensalidade das duas filhas, ela teve que fazer um enorme esforço para ser selecionada em uma prova com apenas 2 vagas para alunos bolsistas que o colégio promove todo ano. Para manter sua vaga, tem que dedicar-se a manter seu conceito entre A e A+. Para ela, é uma vergonha ser bolsista, pensara várias vezes em trocar de escola, mas suas amigas nunca permitiram, Clara principalmente. Algumas delas estudam nesse colégio desde a educação infantil e mesmo que cada uma tenha um programa educacional diferente acabam sempre se encontrando em alguns módulos gerais de interesses em comum. Este, é aberto para todos os alunos do ensino médio independente de que ano estejam e sentirão saudades se ela sair.

Colégio Vicente Marques (CVM)

     Angélica está sentada em um dos bancos do jardim externo localizado na entrada do colégio. Por estar na hora do intervalo, fica a olhar seu celular afastada das amigas que estão conversando um pouco mais à sua frente. Nenhuma delas se aproximara desde que chegou. Todas sabem que Angélica não gosta de ser perturbada quando briga com seu pai e preferem respeitar esse desejo. Já estão acostumadas com seus comportamentos evitativos. 
     André que saíra de seu módulo de ciências exatas e já preparado para ir embora, passa por Angélica. Eles não costumam se encontrar com frequência na hora do intervalo porque ela prefere assistir seus vídeos no youtube na sala de aula e escrever poesias sobre o que observa em seu dia-a-dia. Ele contente por poder vê-la antes do Concerto que combinaram de irem juntos, dirige-se até ela sentando-se à seu lado. André ao contrário, não sabe que Angélica não gosta de ser incomodada quando está de mau-humor, afinal, ele nunca sabe quando ela está ou não de bom-humor.
     Angélica sem tirar os olhos do celular sente sua aproximação. Só André poderia fazer algo do tipo e logo pergunta:

Angélica: O quê você quer André? -Sua pergunta abarcou uma doçura estranha-
André: Saber se está tudo certo para hoje. Estou com muita vontade de te ver. -Disse com um brilho no olhar-
Angélica: Não sei se estou no clima. -Respondeu procurando por algum vídeo interessante no youtube-

     André estranhou a atitude da companheira, Angélica nunca fôra uma menina doce, ao contrário, geralmente é bem ríspida em suas respostas mesmo estando com bom humor mas hoje sentiu-a um pouco melancólica e preocupado perguntou:

André: Aconteceu alguma coisa?
Angélica: Nada que você deva saber. -Continuou a  olhar o youtube-
André: Lembra que te falei ontem que tinha uma surpresa pra você? -Angélica assustada volta seu olhar para André-
Angélica: Lembro e já te disse mil vezes que detesto essas surpresinhas amorosas. -Irritou-se-
André: Eu sei mas não fica brava. -Disse com mansidão- Na verdade, eu só quero te dar um presente. Eu fui na loja e comprei pra você. -Retirou do bolso uma caixinha vermelha-

     Clara que observava a situação de longe cochicha com as amigas sobre o presente que André deu à Angélica. É engraçado para todas elas verem a colega em um flerte com algum garoto uma vez que sempre levantou a bandeira do "não quero me envolver". Angélica abre a caixa, é um anel solitário. André parece ter pela primeira vez acertado em dar-lhe um anel que tanto combinara com seu momento. Cibele com seu olhar de águia conseguiu enxergar o presente imensamente valioso que André deu à colega e admirada, fica à comentar com as demais que estão acompanhando de longe o desfecho da cena que assistem. 
               Será que Angélica agradeceria beijando-o em público e assumiria de vez que estão saindo juntos? Ou mais uma vez ela o ignoraria saindo como se nada tivesse acontecido? Nenhuma delas sabe ao certo que atitude a colega poderá tomar. Seu comportamento é um dos mais difíceis de decifrar e continuam a observar.

Angélica: Obrigada! -Agradeceu gentilmente olhando o anel- Me desculpa André mas eu quero ficar sozinha. -Disse em um suspiro triste-

     André nunca vira Angélica daquela forma, sempre se mostrara uma menina muito firme e às vezes, extremamente grossa. Vê-la tão sensível era no mínimo esquisito. Ele nunca conseguira entender suas reações, ao mesmo tempo em que se mostrava carinhosa, em questão de segundos parecia retornar à seu estado estúpido de sempre. Além da beleza, Angélica traz consigo uma misteriosidade que ele tenta de todas as formas decifrar, talvez, sejam seus rompantes comportamentais que o deixa tão apaixonado. Hoje ela estava diferente, alguma coisa em seu tom de voz a deixou com uma fragilidade especial. Ela se mostrara triste, algo que nunca fizera. Alguma coisa de muito grave aconteceu para que ela estivesse assim e insiste:

André: Não quer me contar mesmo o que houve?
Angélica: Não enche garoto! Sai do meu pé! Que saco! -Gritou irritada levantando do banco onde estava sentada indo em direção à suas amigas-

     André ficou sem entender o que fizera dessa vez para que Angélica saísse irritada daquela forma, ele só queria ajudar. O que houve com toda sua milagrosa delicadeza? Relacionar-se com ela é sempre um pisar em ovos, o que tem bonita, tem de complicada.
                Clara que via toda a situação e a falta de educação de Angélica com alguém que só estava demonstrando preocupação com ela intervém assim que a amiga passa por ela.

Clara: Angélica você não precisava falar assim com o garoto. Ele só quer ser gentil com você. -Intrometeu-se gentil-
Angélica: E o quê você tem a ver com isso? -Irritada-
Clara: Não tenho nada com isso. Só estou te dando um toque. -Disse serena-
Angélica: Só que eu não pedi!

 Clara não consegue aceitar a forma como Angélica trata as pessoas que por ela tem carinho. Já presenciou várias situações em que fôra rude com pessoas que só estavam tentando ser gentis e irritou-se de uma forma que não é acostumada se irritar. Ela sempre tenta ser serena em qualquer situação que possa se transformar em brigas e confusões, mas dessa vez, em sua concepção, Angélica passou dos limites. 
            Cibele, Emília e Isabel ficam a observar as duas um pouco mais atrás preparadas para separarem uma possível briga entre elas como geralmente acontece nas ocasiões em que se enfrentam. Mariane é quem sempre exerce essa função, mas faltara à aula.
           Clara continuou seu diálogo irritada.

Clara: Escuta aqui garota! Você acha que só porque está chateada com seu pai tem que ficar descontando nas pessoas sua frustração? Acha que é só você que tem problemas? É muito egoísta sabia? Queria que seu pai deixasse o Rogério caído lá quase à morte para não romper um compromisso com você Angélica?
Angélica: A minha vida é meu problema! -Gritou-
Clara: Não quanto ela te faz maltratar pessoas que se preocupam com você. -Retoma ao seu tom sereno- O André não merecia isso. Não sei o porquê mas ele gosta de verdade de você. -Concluiu-
Angélica: Qual é Clara? Você está com ciúme? Por acaso está gostando do André? Não seria nenhuma novidade. Você sempre dá em cima de todos os meninos que fico.-Provocou-
Clara: Não é nada disso! Eu nem conheço o André. -Defendeu-se-
Angélica: Mas queria conhecer, não é? -Insistiu em sua provocação cheia de segundas intenções-
Clara: Aff... Começou...-Suspirou de saco cheio- 

    Angélica novamente ia começar com sua paranoia de que a companheira já estava interessada em um dos meninos que se relaciona apenas por defendê-lo. Como garotos tem sido o principal motivo de desentendimento entre elas, antes que Angélica começasse a destilar sua palavras ofensivas finaliza:

—Eu vou embora. Você não quer entender nada mesmo.
Angélica: Nunca te pedi nada Clara.
Clara: Eu sei, mas eu sou sua amiga mesmo que você não seja minha. -Angélica fitou Clara com um olhar de raiva e desprezo empurrando-a e dirigindo-se para a entrada do C.V.M-

     Clara ao ver Angélica entrar pela porta vai até André que está chateado pela forma como fôra tratado pela companheira. Suas amigas que assistiam apreensivas a cena respiram aliviadas, ao menos dessa vez, não tiveram que separar uma briga.  

Clara: André, -Sentou à seu lado- a Angélica é assim mesmo. Tem dias que ela está meio estressadinha. 
André: É. Eu sei. -Respondeu triste olhando para o gramado verde do jardim- 
Clara: Você gosta muito dela não é?
André: O suficiente para sentir saudades mas ela parece não estar tão na minha assim. -Fitou Clara chateado-
Clara: Angélica é durona. Ela não estaria saindo com você se não sentisse algo. Fica tranquilo. Ela deve ter tido algum problema e ficou assim, meio esquisita. Depois ela melhora.
André: Valeu Clara! -Agradeceu entristecido-
Clara: Tchau! -Levanta-se do banco onde estava com André retornando à suas amigas-

     Enquanto suas amigas curiosas ficam a inquirir a colega sobre que fôra falar com André e ela tenta a todo momento se esquivar das perguntas curiosas sobre o que sucedera, André fica à pensar em tudo que Clara lhe disse. De fato Angélica havia sim ficado com muitos meninos do colégio mas nunca soubera que saíra com algum deles depois de uns beijos sem compromisso. Talvez ela estivesse em um daqueles momentos de mulher e devesse dar um tempo até que passasse, pensou. Mas e o convite para o concerto musical? É melhor deixar que ela faça contato, mas diante da situação, já considerou perdida sua saída. Conhece bem Angélica e ela não vai querer sair com aquele humor. Chateado e pensativo, levantou-se do banco pegando sua mochila que jogara no chão e seguiu em direção ao seu motorista que acabara de chegar. Suas aulas terminaram e tudo que ele mais quer é chegar em casa e torcer para que Angélica ligue mais tarde.
     O Vitte está bem movimentado para uma sexta feira, principalmente na administração onde Érika coordena. Desde que ganhou o cargo de chefia o lugar nunca mais fôra o mesmo. Conforme dizem seus amigos, uma nuvem negra tomou conta desde que foi eleita para o cargo. Alguns até apelidaram carinhosamente o espaço de Cantinho da Ditadura e claro, Érika ainda não sabe disso. Seu espaço é dividido com Marlene e mais duas companheiras, Nilze e Ana Júlia, ou Julinha como é chamada. Nilze é formada em economia e Julinha acabara de sair da faculdade de administração. Começou a trabalhar no hospital dois meses depois que Érika assumira a coordenação. Por ainda ser uma recém formada, ter 23 anos e um jeito de menina moleca, é quem mais sofre com suas broncas. Todas essas características que traz  já são por si só, suficientes para que seja considerada irresponsável.

Hospital Vitte

      Érika está ao telefone irritada com Carlos que está tentando convencê-la à sair à quase vinte minutos. Marlene que tem sua mesa direcionada à sua frente, fica a observar a forma como a amiga corre de qualquer contato familiar enquanto Nilze, que tem seu próprio espaço ao lado de Marlene, fica a olhar o computador não prestando atenção na conversa da companheira. A mesa de Julinha está vazia, ainda não chegara para trabalhar.

Érika: Não sei Carlos, não é questão de ter ou não ter muito trabalho. É que eu não quero sair. Estou cansada e ainda nem é hora do almoço. -Pausa- Tá! Pode fechar. Tchau! Saco! -Disse ao desligar o celular-
Marlene: O quê foi?
Érika: Carlos me chamando para jantar hoje. Desde ontem está me atazanando com isso. -Começou a digitar no computador-
Marlene: Ai amiga que bom! Vai sim! -Alegrou-se- Vocês precisam disso. Desde que perdeu sua mãe você nunca mais saiu e nem viajou.
Érika: Nunca mais é exagero. À três anos fomos para a Grécia. -Fitou Marlene por cima de seus óculos de trabalho-
Marlene: Mas não tem viajado com tanta frequência e nem vem dizer que é porque agora pegou o cargo de chefe e ficou sem tempo porque não vai colar.
Érika: Não disse isso. Disse que não tenho mais ânimo. Acho que estou ficando velha. -Concluiu-
Marlene: Pára de besteira Érika! -Brincou com uma risada-

     A administração do Vitte localiza-se na parte direita da recepção, pela porta de vidro, é possível ter uma visão privilegiada da sala de espera. Érika já havia reclamado várias vezes para que arrumassem uma sala no terceiro andar uma vez que o barulho de pessoas na recepção estava atrapalhando o serviço e com uma cafeteria no lado esquerdo, ela sempre tinha que ficar chamando uma ou outra funcionária para voltar ao trabalho. Até hoje seu pedido não fôra atendido. O hospital não tem espaço, alegou o diretor geral. 
     Julinha passa pela recepção apressada, está atrasada em 1 hora e tem plena consciência de que isso será o suficiente para levar uma severa bronca e aturar o olhar acusador de Érika durante todo o dia. No dia anterior, ela armou um escândalo por ter chegado atrasada 10 minutos e hoje não será diferente. 
     Ao entrar na administração, Érika olha no relógio e pergunta irônica: 

Érika: Julinha? Houve outro engarrafamento? -Continuou a digitar no computador-
Julinha: Não. É que eu vim da casa do meu namorado. É um pouco longe e o ônibus demorou pacaramba. -Justificou-se esbaforida sentando-se em sua mesa-
Érika: Até quando Julinha? Até quando vai ficar faltando com sua responsabilidade? -Olhou-a com severidade-
Julinha: E chegar atrasada é faltar com a minha responsabilidade? Eu não tenho culpa se o ônibus atrasou. -Retribuiu com rebeldia-
Érika: Os ônibus começam a circular à partir das 4 da manhã. Deveria ter pêgo algum desses se sabe que pode se atrasar. -Olhou novamente o computador-
Julinha: Érika, isso não tem nenhum cabimento! -Respondeu em um riso incrédulo-

     Érika só podia estar brincando, não seria capaz de fazer uma proposta como aquela. Marlene e Nilze olham-se, também não acreditam que pudera ter feito um comentário tão insensível. Sem querer intrometer-se em brigas que não as pertencem, continuam seus trabalhos em seus respectivos computadores. 
     Érika indaga Marlene:

Érika: Marlene que horas você chegou?
Julinha: Marlene tem carro... -Intrometeu-se antes que Marlene pudesse responder-
Érika: Isso não é justificativa Julinha! Quero que você seja mais responsável, afinal das contas, este é seu trabalho. O que te renderá frutos.
Julinha: Eu fiz o máximo que eu pude! -Defendeu-se e deu de ombros sentando-se em sua mesa retirando alguns papéis da gaveta-

     Érika levantou-se da onde estava sentada e dirigiu-se para a frente da mesa de Julinha. Como uma funcionária pôde referir-se à ela daquela forma? Nem sua filha a tratara com tanta indiferença.
     Ela então em tom severo como uma megera prossegue:

Érika: Vou te avisar que não vou tolerar mais este tipo de coisa Julinha! Aqui você é uma empregada como qualquer outra. Todas chegaram na hora. Algumas, na mesma situação que você. -Fitou-a com firmeza-
Julinha: Eu já sei!
Érika: Já está avisada. -Intimidou-a com severidade- Nilze? -A chamou ainda olhando para Julinha que parece não se importar com o olhar intimidador de Érika-
Nilze: Sim. -Respondeu de sua mesa um pouco assustada com sua atitude-

     Érika deixou de encarar Julinha e dirigiu-se à sua mesa pegando sobre ela alguns envelopes.

Érika: Entregue esses papéis na contabilidade. -Entregou a Nilze-
Nilze: Sim senhora. -Disse pegando os envelopes e saindo imediatamente da administração-

     Érika ainda continuara incomodada, não podia permitir que uma recém-formada a tratasse da forma que a tratou como se ela fosse apenas uma mãe chata pegando no pé do filha irresponsável. Precisava fazer alguma coisa para valer sua autoridade e toma uma decisão que jamais tomara como chefe.

Érika: Julinha? Não precisa assinar seu ponto do turno da manhã. Retorne à partir das 13 horas.
Julinha: O quê? -Assustou-se-
Érika: Foi isso mesmo que ouviu! Você tem que aprender a ter responsabilidade. Já é uma adulta! Pode sair! -Disse com toda sua autoridade-

     Julinha não podia aceitar que Érika estava tomando aquela decisão. Um sentimento de ódio a tomou naquele momento, se pudesse, diria tudo que pensa à respeito dela e da sua forma ditatorial de conduzir o trabalho mas não pode. Ela precisa desse trabalho para pagar o apartamento e o resto de suas contas. Se for demitida, terá que voltar para o Amazonas e morar novamente com seus pais que nunca acreditaram que ela pudesse sair daquela cidadezinha de interior. Se esforçara muito para terminar sua faculdade e se esforçara muito mais para conseguir o emprego em um dos hospitais particulares mais renomados da cidade. Não podia permitir que Érika destruísse todos os seus esforços. Com raiva e encarando-a, pega sua bolsa e retira-se da administração. 
     Marlene que acompanhava o desfecho da situação intervém assustada:

Marlene: Érika o que você está fazendo? Ficou maluca? -Levantou-se da mesa onde estava-
Érika: Não! Estou cansada da irresponsabilidade da Julinha. Ou ela entra nas regras ou eu vou pedir para demiti-la. Onde já se viu? Se atrasar porque veio da casa do namorado. Era só que me faltava! -Indignou-se-
Marlene: Érika, os trabalhadores são seres humanos! Elem sentem fome, sentem sede e vontade de fazer sexo. -Aproximou-se da amiga-
Érika: Não! Os trabalhadores são apenas materiais de trabalho. -Concluiu com firmeza fitando-a-
Marlene: Quando você começa com essas coisas você fica insuportável Érika! Você não permitiria que nenhum chefe tratasse assim a Clara. 
Érika: Eu permitira sim se ela estivesse faltando com sua responsabilidade. A Julinha escolheu esta profissão, ninguém a obrigou pelo que eu sei. Quando se quer chegar ao topo tem que renunciar à tudo, inclusive, a ser mulher e mãe.
Marlene: Aé? E você renunciou a ser mulher e mãe? 

    Érika fica à pensar por alguns segundos, não sabe se deve responder a pergunta de Marlene. Como se atreveu a perguntar algo que ela sabe muito bem a resposta? Marlene mais do que ninguém conheceu todos os esforços que fez para chegar onde chegou. O quê queria ela com essa pergunta? 
     Marlene insiste:

—Responde Érika, você renunciou? -Olhou-a com firmeza-
Érika: Sim renunciei! -Respondeu em desabafo firme- Renunciei a ser mulher e mãe! Na vida é assim, se quer ter sucesso ou renuncia ou perderá!
Marlene: E por conta disso você não tem respeito por nada e nem por ninguém? -Continuou-
Érika: Ter sucesso é superar as desavenças e a miséria. É correr atrás. É passar por humilhações para conseguir o que deseja.
Marlene: Isso não é ter sucesso. -Contrapôs-
Érika: Então você será uma perdedora em toda sua vida! Em questão de trabalho não se deve ter piedade de ninguém.

     Marlene assustou-se. Nunca ouvira a amiga referir-se à alguém dessa forma. O quê aconteceu com toda sua sensibilidade de anos atrás quando se conheceram na faculdade? Érika sempre foi severa na forma de tratar seus funcionários mas nunca havia sido tão insensível com nenhum deles como neste dia e incrédula pergunta:

Marlene: No que você se tornou Érika? No que você se tornou? Não te conheço mais.
Érika: Me tornei no que eu precisava me tornar para continuar vivendo Marlene! Foi isso! -Suspirou triste-

     Érika sentou-se a mesa como se tivesse feito um desabafo. Ela sabe o enorme esforço que tem que fazer para manter sua postura rígida. Ser maleável causaria uma enorme desestruturação em seu emocional. Não queria sofrer como antigamente quando perdeu sua mãe. Ela era seu porto seguro emocional e desde então teve que construí-lo sozinha às duras penas. Isolar-se do mundo e adquirir uma postura de megera é o que tem segurado sua existência, caso contrário, já teria sucumbido. 
     Marlene preocupada com forma exagerada que a amiga vem tratando as companheiras de trabalho senta-se na cadeira à sua frente e continua:

Marlene: Amiga pelo amor de Deus! Você precisa de ajuda! Algo muito grave aconteceu para você ter se tornado essa pessoa perversa.
Érika: Eu preciso de paz Marlene! Eu preciso de paz! -Levanta-se da mesa retirando-se da administração-

     Marlene continua sentada na cadeira pensando no que acontecera para que Érika tomasse esse tipo de postura. Ela sempre teve um jeito rígido e sério mas era uma pessoa divertida. Dava risada das situações engraçadas que acontecia e até se atrevia, algumas vezes, a fazer algumas piadas. Desde que rompera com Ventura sem qualquer motivo aparente, ela fôra se tornando mais fechada como se a vida estivesse perdendo a cor. Nunca entendera o motivo dos dois terem terminado uma relação tão solidificada, eles iam até se casar. Érika alegou ter desgostado da relação, mas eram um casal tão fulgás e tão apaixonado que duvida que esse tenha sido o real motivo. Alguma coisa aconteceu e nunca soube o que foi. Não pode ter sido uma traição por parte de Ventura, ele era um cara correto e extremamente apaixonado. Jamais faria algo desse tipo. Ela também saberia, Érika teria dito alguma coisa. Carlos também não poderia ser o pivô da separação dos dois, Érika o conhecera 3 meses depois de ter terminado com Ventura e ela estava presente no momento. 
     O que teria acontecido então? Marlene não sabe. A única coisa que ela sabe é que Érika piorou ainda mais após a morte de sua mãe. Agora sua melhor amiga nada mais é do que uma megera. 
     Em outra parte do Rio, Ventura está dirigindo em direção à escola de Angélica. Seus atendimentos na clínica onde trabalha o atrasou em 40 minutos. Teme que não consiga chegar no horário para encontrar Angélica ainda no colégio. São 10:30 e ele tem meia hora para chegar ao C.V.M. Fez uma reserva no seu restaurante favorito e espera que um milagre a faça almoçar com ele. Mais uma vez, quer se desculpar por ter falhado. Esse sentimento de culpa o atordoa desde que Angélica se afastara alegando ter sido abandonada. 
     O rádio toca a música favorita de ambos, Lacrimosa de Mozart. Ela foi a primeira música que Angélica aprendeu a tocar aos 9 anos quando ingressou nas aulas de violino. Em sua melodia ele rememora todos os momentos que pôde viver com Angélica. Lembra-se da felicidade que sentiu ao saber que teria uma filha, seu maior desejo que Sônia, mesmo que acidentalmente pôde concretizar. Dos passeios, das viagens e também das ausências. Lembra-se de todas as vezes que não pôde comparecer às festas da escola ou de aniversário e principalmente, das vezes que faltara em seus recitais, que para a filha, sempre fôra tão importante. 
     Ventura desliga o rádio, não quer ter recordações ruins e sentir-se ainda mais culpado. Ao olhar seu celular ao lado, espera por uma mensagem ou ligação da filha. Não há nada. Ele continua a dirigir e torce para conseguir chegar à tempo.

Colégio Vicente Marques (CVM)

     São 11 horas da manhã. Ventura entra no C.V.M. Ele resolvera buscar a filha na escola já que desde o evento da noite anterior não se falam e ir a seu encontro é uma tentativa de um dialogo. Ele então senta-se na enorme recepção do colégio torcendo para que a filha não tenha saído antes do horário. Ela não atendera e não respondera nenhuma das suas mensagens deixadas em seu celular durante toda a manhã. 
     Em uma das inúmeras salas, Angélica está saindo da sua aula preferida, a de robótica. Sozinha na sala, junta seu material sobre à  mesa colocando dentro de sua mochila colorida e se prepara para sair. Ela sempre vai sozinha para casa, é uma atividade que gosta de fazer. O C.V.M não é tão distante do bairro onde mora e caminhando consegue chegar em meia hora. 
     Ao sair de sua sala pelo longo corredor, passa pela sala do segundo ano, André já sairá pois está vazia. Ele deve ter ficado chateado com a forma que fôra tratado por ela hora antes. Em seu bolso guardou o anel possivelmente muito valioso, André sempre lhe dera presentes caros. Junto com o anel, retira seu celular e vê as mensagens de seu pai. Sem abrir para lê-las, deleta todas. Uma vontade de chorar a invade, mas ela não pode, está na escola e nunca chorou em público. Precisa manter sua pose de durona. 
     Em meio a movimentação no corredor de alunos saindo de suas aulas, Angélica segue até a recepção onde seu pai está ansiosamente esperando-a.

Ventura: Angélica? -A chamou assim que a viu entrar na recepção-
Angélica: O que foi? -Respondeu séria-

      Como seu pai pudera ir à seu encontro depois da noite passada? Pensou e com total indiferença, continua sua fala:

— Não tem nenhum bêbado caído por aí para você socorrer?
Ventura: Não fala isso filha. A gente pode conversar? -Pediu quase que em um clamor-
Angélica: Que mico você vir aqui me buscar pai. -Disse em cochicho-
Ventura: Eu só quero conversar com você filha. -Angelica dá de ombros continuando a andar em direção à saída do colégio- Por favor! -Insistiu-

     Angélica que estava um pouco mais à frente, olha para seu pai. Seu clamor não deixou de tocar seu coração. Relutante em dar o próximo passo em direção à saída da escola, continua:

Angélica: Não aqui na recepção com todos meus amigos vendo. -Cochichou-
Ventura: Vamos para onde você quiser. -Olhou-a como se esperasse por um milagre-

     Angélica suspira entediada. Já havia passado por essa situação inúmeras vezes. É melhor ouvir logo o que seu pai tem pra lhe dizer e finalizar de vez essa ladainha.. Ela adentra o C.V.M em direção ao jardim interno onde não há mais tantos alunos. Muitos deles já foram para suas respectivas casas. Ventura segue-a alegre por te conseguido uma possibilidade de diálogo. 
                 Angélica joga sua mochila no chão e senta-se em um dos bancos do jardim.

Angélica: Fala. -Disse sem olhar para seu pai-
Ventura: Eu sempre fiz tudo por você. -Sentou-se à seu lado-
Angélica: Vai começar a jogar na minha cara que eu não te valorizo o suficiente? Que sou egoísta e tudo mais? -Olhou para seu pai-
Ventura: Não. Eu queria dizer que lamento falhar tanto com você. Você é a coisa mais importante na minha vida Angélica. Desde que nasceu a única coisa que fiz foi me dedicar à você mas reconheço que tenho falhado nesses últimos anos. Ainda mais por conta do doutorado mas agora eu tenho todo o tempo do mundo para ficar com você.
Angélica: Tarde demais para isso não acha?
Ventura: Nunca é tarde para recuperar o que se perdeu. Eu amo você Angélica! Entenda que todas as minhas ausências nunca foram para te machucar mas não é só você que precisa de mim. Outras pessoas também.
Angélica: Elas pelo visto mais do que eu.
Ventura: Angélica... -Angélica interveio imediatamente antes que Ventura começasse com suas explicações-
Angélica: Pai, não se preocupe comigo. Para o seu conhecimento eu não preciso mais de você. Eu cresci e como sempre, você não estava presente o suficiente para notar. -Finalizou-
Ventura: Eu sei que você cresceu. Não é mais a minha pequena mas continua sendo a minha filha. -Olhou-a com ternura-

     Que vontade de acariciá-la. Nunca a vira tão sensível como nesse momento e como realmente crescera sem que ele percebesse. Suas mãos insistiam em levantar para tocar seus longos cabelos pretos mas ele não podia. Angélica não permitiria qualquer tipo de carinho e acabaria fugindo como sempre faz. 
     Ela prossegue:

Angélica: Você veio aqui só para me dizer isso?
Ventura: Vim me desculpar e te chamar para almoçarmos juntos. O que acha? Fiz reserva no seu restaurante preferido.
Angélica: Não! -Respondeu com contundência-
Ventura: Por favor filha. -Insistiu-
Angélica: Não pai. Foram muitas as ausências, as esperas. -Suspirou com tristeza sem olhá-lo- Você sabe quantas vezes eu te esperei nas minhas festas de aniversário? Da escola? Quantas vezes eu tive que dizer que você não veio por estar trabalhando ou viajando? Eu estudei por 1 mês dia e noite uma música para o meu recital. Fiz aula extra todos os dias, tive lesão no braço por esforço repetitivo. Eu nunca tinha me dedicado tanto à um recital como esse e na última hora você ligou para a minha mãe dizendo que teria que substituir um colega no plantão. -Fitou-o decepcionada-
Ventura: Eu já te expliquei o que houve coração.
Angélica: O que você não sabia era que a música eu tinha feito para você. Passei dias me dedicando à ela, procurando a melhor forma de tocá-la no violino, a melodia certa e você simplesmente não foi. Não valorizou meu esforço de meses. Não se importou com o quê aquilo significava para mim. Foi o meu primeiro recital com uma música de minha autoria, dedicada à você e você estava no hospital. Você ligou para minha mãe como se nada daquilo valesse nada. Como se fosse mais uma das minhas inúmeras apresentações.
Ventura: Filha, eu não sabia disso! -Assustou-se-
Angélica: Era uma surpresa. Ninguém sabia, nem a minha mãe. Eu tinha juntado dinheiro durante meses e comprado um vestido lindo. Eu nem gosto de princesa, mas estava como uma. Só para você! Todos estavam lá, minha mãe, minhas colegas de condomínio e alguns professores. Todos me aplaudiram e onde você estava pai? No hospital! Sempre naquele maldito hospital com aquela merda da sua pesquisa! -Gritou em choro- Foi para você e você não estava lá para me aplaudir! Você não tem ideia do quanto me doeu não te ver lá na platéia. As lágrimas começaram a cair mas eu não podia me desconcentrar, ainda estava insegura na melodia e eu continuei a tocar na esperança de que você aparecesse pelo menos no final da apresentação e você não apareceu! -Disse com raiva olhando seu pai em lágrimas- Eu não deixei minha professora falar que era uma homenagem à você, você nem sequer estava lá. Eu rasguei a composição assim que cheguei em casa e com isso, rasguei também todo o meu amor por você. Desde esse dia eu decidi que nunca mais me permitiria sofrer por suas ausências e matei você na minha memória e no meu coração. Sabia que desde aquele dia eu nunca mais toquei violino? -Mentiu- Nem compus qualquer coisa? Por isso, doutor Ventura, não perca seu tempo me pedindo desculpas e nem querendo se reaproximar de mim. Eu não quero sentir nunca mais o que eu sentia por você! Por mim, você pode se suicidar se quiser! -Levantou-se do banco pegando sua mochila do chão e saiu em lágrimas-
Ventura: Angélica... -Chamou-a em um lamento-

     Se antes o sentimento de culpa já o tomava, agora parece tornar-se perene. Angélica não podia tê-lo feito se sentir pior com essa revelação. Por quê não contara sobre o recital? Por quê fazer surpresa? E por quê aceitou substituir seu amigo em um dia que não era seu plantão? Nunca sentira tão atordoado. Não imaginava ter magoado tanto sua filha. Ela tem total razão em não querer mais qualquer tipo de aproximação com um pai que fôra tão ausente. Mesmo tendo feito tudo que fez por amor à filha, ela sofrera com sua distância e isso é muito difícil de suportar. Só quem é pai sabe o quanto dói a renegação de um filho por quem devotou tanto amor e ali mesmo cai aos prantos como se estravasse toda a culpa que sente desde que Angelica se afastara dele.
     A tarde chega e o sol contempla a manhã que fôra nublada. Clara e Mariane caminham em direção ao Eldorado. Mariane queria saber como estava sua mãe após ter deixado Anabela na escola e pediu que Clara fosse com ela. Como boa amiga que é, aceitou o pedido sem pestanejar. Clara tagarela sem parar informando à colega sobre tudo que aconteceu na escola e o anel que Angélica ganhara de André. Mariane está mais animada e consegue dar algumas risadas das situações engraçadas que a amiga fica à contar enquanto caminham, já estão perto do hospital. Elas podiam ter ido de  táxi mas optaram pelo metrô, assim, poderiam dar um passeio e conversarem. 
     Ao entrarem na recepção, Mariane pega seu celular e manda uma mensagem à sua mãe de que já chegara e está a sua espera. 

Hospital Universitário Eldorado (HUE)

     Clara olha para a recepção que está cheia. É hora de visita e a recepcionista está tendo um duro trabalho em controlar as entradas na enfermaria e nos outros setores do hospital. Cristina passa pela agitada recepção dirigindo-se à Mariane e a Clara que estão esperando-a na porta de entrada.

Cristina: Oi filha! - A beija no rosto- Oi Clara - A cumprimenta também com um beijo-
Clara: Oi Cris! Como passou a noite?
Cristina: Em claro.
Clara: Poxa! -Exclamou triste-
Cristina: Você não vai entrar para ver seu pai filha?
Mariane: Não tenho pai! -Contundente-
Cristina: Mariane! -Repreendeu-
Mariane: Mãe por favor! Não me peça para gostar do cara que mais me fez sofrer.
Cristina: Se eu pudesse evitar tudo isso com certeza evitaria. Seu pai está muito mal com tudo que vem acontecendo. Por ter perdido o emprego e principalmente, por você tê-lo excluído da sua festa de 15 anos.
Mariane: Ele mesmo se excluiu quando entrou nesse maldito vício! Não quero que o cara que me bateu e bateu na minhã mãe vá à um momento tão feliz. Alguém que só me trouxe dor não tem o direito de se lamentar de exclusão.
Clara: Como o Rogério está Cris? -Interveio na tentativa de evitar uma discussão-
Cristina: Se recuperando Clara.
Mariane: Até sair e encher a cara de novo. É sempre assim. -Comentou-
Cristina: Você deixou a Ana na escola? -Desconversou-
Mariane: Deixei. Vou buscá-la depois.
Cristina: Ela está bem?
Mariane: Está. Quer saber quando o "bonito" volta para casa.
Cristina: Ela deve ter ficado assustada.
Mariane: Anabela não viu a metade da missa e é melhor que não sabia de tudo que o Rogério já fez. Eu só vim te ver mãe. Já vamos. -Concluiu-
Cristina: Assim que o Ventura nos der alta voltamos para casa. Cuide da sua irmã.
Clara: Estamos cuidando dela Cris. -Sorriu-
Cristina: Obrigada Clara. Você é um amor! -Acariciou-a no rosto-
Mariane: Eu vou dizer à Ana que está tudo bem. Ela queria vir de qualquer jeito. Vamos. -Chamou a amiga-
Clara: Tchau. -Despediu-se-

     Clara e Mariane saem do Eldorado, agora elas tem a tarde inteira para passear e bater papo até dar o horário de buscar Anabela na escola. Ainda é cedo, são 14:10 e ela só sai às 17:30. Cristina sorri ao vê-las sair contentes. Apesar de estar vivenciando uma situação tão difícil, Mariane consegue encontrar motivos para sorrir e Clara vem sendo uma grande alicerce nisso. Sua esperança é que ela convença a filha a permitir que seu pai vá à sua festa de 15 anos daqui 1 semana. Teme que essa exclusão possa levar Rogério a afundar-se ainda mais na bebida. Com um sorriso leve por saber que suas filhas estão bem, adentra a recepção em direção ao corredor que dá para as enfermarias.
     No condomínio, Thaís está sentada em um dos bancos da praça chorando. Hoje faz 4 anos que perdera seus pais e ela acabara de voltar do cemitério. Fôra levar flores com seus avós como fazem todos os anos. Desde que morreram seus dias nunca mais foram os mesmos. Os dias festivos como os das Mães, Páscoa e Natal são ainda piores, nestes, ela tem vontade de morrer por não aguentar tanta saudade. A dor da saudade é tão forte que nestes dias ela toma comprimidos para dormir à tarde toda para que não lembre dos momentos que passaram juntos. 
     Que vazio no peito tem sentido, mesmo que tente preenchê-lo com orações e atividades agradáveis, à noite sempre lembra de seus pais com ternura. Sua mãe sempre fôra muito amorosa, lia histórias todas as noites até que adormecesse e estava sempre disposta a fazer todas as suas vontades. Seu tom de voz sereno em momentos de profunda solidão é do que ela sente mais falta. Seu pai trabalhara muito mas ele sempre foi muito presente, seus melhores momentos são marcados pro brincadeiras de bonecas. Seu pai adorava brincar de boneca, como se divertiam das situações que ele criava na brincadeira. Agora ela só tem as lembranças e um vazio enorme no peito que reza para que um dia se torne menor e ela consiga lembrar de seus pais apenas com saudade e não mais com lágrimas.

Praça dos amores

     Emília passa pela portão do condomínio, está voltando de sua aula de inglês. Não é o seu idioma preferido, mas está estudando por pressão de seus pais que alegam ser de suma importância para seu futuro. Ela acha isso tudo uma tremenda bobeira. Suas séries ensinam muito mais. Ao passar pela praça, encontra Thaís e aproxima-se curiosa.

Emília: Thaís por quê você está chorando?
Thaís: Estou vindo do cemitério. Hoje faz 4 anos que meus pais morreram.
Emília: Não sei o que é mais difícil. -Sentou-se à seu lado- Perder os pais ou não conhecer os seus.
Thaís: Você tem vontade de conhecer seus pais?
Emília: Não, mas tenho vontade de saber porquê me abandonaram naquele hospital. Queria poder gritar tudo que tenho dentro de mim.
Thaís: Ser adotada não é vergonha Emília.
Emília: Privilégio tão pouco. Não quero que ninguém saiba de nada. Só você e a Angélica.
Thaís: Eu prometi guardar segredo e não vou te trair amiga, mesmo que eu ache isso uma besteira.
Emília: Você tem notícias do pai da Mariane?
Thaís: Mandei uma mensagem mas ela ainda nao respondeu. Sei que iria ficar internado mais uma vez para desintoxicar.
Emília: É. -Lamentou- Ninguém tem a vida fácil mesmo e a gente às vezes lamenta coisas pequenas. -Conscientizou-se- Hoje foi um dia puxado. -Lembrou- O quê acha de irmos lá pra casa?
Thaís: Eu tenho treino de vôlei mais tarde mas não vou. Não conseguir nem ir à aula.
Emília: Estes dias sempre mexem com você né? 
Thaís: É. Principalmente o dia das mães, dos pais, natal, páscoa. Nunca mais foram os mesmos.
Emília: Por isso sempre falta às festas da família na escola.
Thaís: Até hoje eu tento entender. Até hoje eu lamento tudo mesmo sabendo que todos tem sua hora mas não queria que fosse assim, tão cedo. Meus pais não mereciam. Eu não merecia. -Chorou-
Emília: Não chora amiga! -Consolou-a-
Thaís: É que dói muito! Todos os anos são iguais. -Disse em lágrimas-
Emília: Eu te entendo amiga. -Abraçou-a em apoio-

     Apesar de não serem melhores amigas, Emília e Thaís se dão muito bem. Ambas tem a mesma idade e lutam para manter a forma. Elas caminham juntas quase todos os dias, menos, quando Thaís não consegue andar por conta de seus joelhos. Fãs de God of Thrones e Grey's Anatomy, estão sempre conversando sobre o desfecho dos episódios. Elas inclusive, administram uma página no facebook voltada para os fãs. Isso já é suficiente para torná-las boas amigas.
      Na casa de Ventura, Sônia acabara de receber um telefonema de seu marido. Ele está convidando ela e a filha para mais um jantar. Com gostos bastante requintados, ela é conhecida por todos do condomínio por fazer ótimos pratos em dias festivos quando se reúne com alguns vizinhos próximos. Não existe um prato que não saiba preparar. Fizera durante o tempo que vive com Ventura vários cursos sobre como preparar pratos típicos. Aprendeu sobre culinária mexicana, japonesa, francesa e agora se dedica à Italiana, preferida de Ventura. A brincadeira entre os íntimos é que ela o segurou pela boca já que ele gosta de comer bem. Ventura fez reservas em um restaurante bem fino porque sabe que se a culinária não for boa, Sônia vai ser a primeira a reclamar.

Casa da família Mercantelly Alves

     Angélica está deitada em sua cama olhando o celular enquanto Sônia tenta convencê-la a sair para um jantar em família promovido pelo seu pai. 

Sônia: Você não vai mesmo filha? -Insistiu-
Angélica: Não mãe! Já disse mil vezes que não vou! -Disse em tom firme olhando o celular-
Sônia: Eu não acredito que você vai fazer isso só para provocar o seu pai.
Angélica: Mãe, -Olhou-a- meu pai acabou com a minha vontade de fazer qualquer coisa com ele. 
Sônia: Filha, essa pode ser uma oportunidade de reaproximação de vocês. Vão poder conversar. -Sentou-se à seu lado-
Angélica: Eu não quero ir e muito menos me reaproximar do meu pai.
Sônia: -Suspirou- Espero que não se importe de ficar sozinha em casa já que não quer ir.
Angélica: Eu não me importo!
Sônia: Você é quem sabe. -Levantou-se da cama-
Angélica: Eu apareço lá mais tarde. -Respondeu indiferente-
Sônia: Vê se aparece mesmo. Não faça como fez na defesa do doutorado. Ficamos te esperando por quase 1 hora e você nem sequer justificou sua ausência. Quase prejudicou seu pai.
Angélica: Tive outros compromissos. -Respondeu sem importar-se-
Sônia: Sim. Ir com a Emília fazer compras no shopping.
Angélica: Mãe, eu disse que vou aparecer. Agora me deixa!
Sônia: Eu espero! -Saiu do quarto-

     Angélica luta com o desejo de ir com seu pai ao jantar. Seus jantares em família sempre foram muito significativos. Era o momento em que todos podiam falar um pouco sobre si mas tem um compromisso marcado com André. Já comprara as entradas para o concerto e foram bem caras. A música sempre lhe fez bem em seus momentos de solidão. Ela então pega o celular novamente, precisa combinar com André aonde vão se encontrar. 
     André reside em um bairro de milionários em um condomínio fechado na Lagoa. Seus pais, donos de uma rede de hotéis espalhados pelo país podem realizar todos os desejos tão sonhados por qualquer adolescente de 15 anos, porém, ele nem tem se interessado tanto por isso. Desde que se apaixonara por Angélica, a unica coisa que faz é pensar em formas de agradá-la e torna-la sua namorada o quanto antes e esse desejo, seus pais jamais poderão realizar. Triste, está sentado em sua cama assistindo a sua série preferida, The Walking Dead. Aguardara ansiosamente durante toda a tarde por um telefonema ou uma mensagem de sua querida apaixonada mas já são quase 18 horas e o concerto é às 20. Ela não vai ligar mais. Antecipada como Angélica é, sempre precisa de pelo menos 2 horas para se arrumar. Se quisesse realmente ir, já teria ligado para combinar. Ele então deixa de lado seu celular em um canto qualquer da cama e volta a ver sua série quando em um repente, ouve-o tocar. Ao deparar-se com uma ligação de Angélica, atende prontamente: 

André: Alô! -Atendeu com entusiasmo-
Angélica: Oi André! Sou eu! -Disse tímida-
André: Achei que não fosse me ligar. Estava toda estranha na escola hoje.
Angélica: Me desculpa pela forma como te tratei. Estava nervosa com algumas que aconteceram ontem. -Disse em um tom milagrosamente doce-
André: Entendo, você já está melhor?
Angélica: Não. -Triste-
André: Então você não vai no concerto?
Angélica: Claro que eu vou! A música sempre me trouxe paz nessas horas. Só que não tem ninguém na minha casa e eu vou ter que ir de táxi. Vamos ter que nos encontrar lá.
André: Não tem problema. Eu passo com meu motorista aí e te pego.
Angélica: Ahh! Ótimo! -Alegrou-se-
André: Você consegue ficar pronta em 1 hora?
Angélica: Consigo.
André: Então eu passo aí às 19, pode ser?
Angélica: Perfeito! Te espero na portaria do condomínio. Você sabe o endereço não sabe?
André: Sei! Angélica? -Chamou-a antes que desligasse-
Angélica: Sim?
André: Eu gosto muito de você!
Angélica: Até mais tarde André! -Desligou-

     Pela primeira vez em todo o tempo que saem juntos, Angélica nunca o tratou com tanta docilidade. Estaria ela se apaixonando por ele? E seria esse o momento para pedi-la em namoro? André ficou à pensar. Finalmente sentira que Angélica estava começando a se envolver afetivamente e alegre, levanta-se da cama começando à se arrumar. 
    Angélica começa também à se arrumar. Será um imenso desafio conseguir se aprontar em 1 hora. Ao abrir seu guarda roupa, fica indecisa sobre qual de seus inúmeros vestidos escolher mas depois de alguns minutos retirando vários e jogando-os sobre a cama, decidiu que o preto era o mais adequado para a situação. Sobre sua escrivaninha está o anel que André lhe dera, ela coloca-o em seu dedo. Como adivinhara a medida certa? Ele poderia não entender nada de música, mas conseguia perceber o que lhe agradava. Em um mês, nunca errou um presente sequer. Como André era sensível e conseguia capturar todos os seus gostos, era mesmo uma pena que ele não apreciasse música. Pensativa, foi tomar banho.
     Em seu quarto, Clara está feliz e saltitante terminando de colocar seus pequenos brincos sentada frente ao espelho. Seu pai finalmente conseguira convencer sua mãe a fazer um programa em família. Ao som de Sorry de Justin Bieber, ela penteia seus longos e lisos cabelos castanhos um pouco abaixo dos ombros. Seus olhos pequenos e castanhos trazem extrema serenidade. Ela consegue admiravelmente ser compreensiva com toda a rejeição que sofre de sua mãe. Seu vestido azul perolado até os joelhos e seu salto alto prata foram escolhido à dedo para a ocasião. Clara preferiria roupas mais confortáveis como uma calça jeans, tênis e  blusa, mas essa ocasião é deveras especial. Já faz algum tempo que não sai em família e o momento pede que ela esteja no mínimo, perfeita.

Casa da família Guimarães Diáz

     Érika está na sala enquanto Carlos termina pacientemente de arrumar sua gravata à pelo menos uns 15 minutos. Ele nunca fôra bom com essas coisas e Érika muito menos. Em um sorriso tímido, Érika ri da enrolação do marido e olha no relógio. Já são 18:30 e tem reservas para às 19. Estão muito atrasados.

Érika: Vamos Clara! Já estamos atrasadas! -Gritou da sala para que Clara ouvisse do quarto-
Clara: Já vou mãe. -Gritou do quarto-
Érika: Não sei porquê você cismou de ir justamente hoje no restaurante. Sabe que sexta-feira é um dia em que fica muito cheio.
Carlos: Tenho que aproveitar o dia que você está disponível. -Disse arrumando a gravata- 

     Finalmente conseguira dar aquele maldito nó.

Clara: Já estou pronta! -Disse em um dos degraus da escada-
Carlos: Meu Deus! Como você está linda minha princesa! -Exclamou ajudando a descer as escadas com seu salto alto-
Clara: Não exagera pai.
Carlos: Talvez seja mesmo um exagero, mas o quê eu posso fazer se acho você a filha mais maravilhosa do mundo? -Sorriu e Clara retribuiu doce-

    Como incomoda Érika todo o carinho que Carlos tem com Clara. Será que se soubesse de tudo que aconteceu a perdoaria e continuaria amando Clara da forma que ama? Se pudesse voltar atrás com certeza voltaria, mas agora já passara muito tempo. Clara está com 14 anos e se conseguiu manter segredo até agora, pode muito bem manter pelo resto da vida. Se tudo que sabe não envolvesse outra família, quem sabe contaria, mas não tem o direito de destruir a harmonia que há na relação de Ventura e Sônia. Que culpa eles teriam de tudo que aconteceu? Não! Que ela carregue sozinha o peso desse segredo como sempre fizera e finaliza seu incômodo:

Érika: Vamos deixar essa paparicação de lado e vamos embora porque eu quero voltar cedo.
Carlos: Não senhora dona Érika. Nem começa com essas suas desculpas porque hoje vamos fazer um programa em família. Depois de jantarmos daremos uma volta.
Érika: Ahhh não! -Lamentou-
Clara: Eu adorei a ideia pai! -Alegrou-se-
Carlos: Que bom princesa! -Sorriu-
Érika: Mas eu não! Carlos, eu tive um dia muito puxado hoje. Só quero deitar e poder dormir. -Justificou-se-
Carlos: Todos nós tivemos um dia puxado Érika e por isso estou propondo um passeio. A única coisa que quero é ficar um tempo com vocês. Com minha filha e com minha esposa que eu tanto amo -Abraçou Clara e Beijou Érika-

    Clara fica a olhá-los com alegria, nunca vira seus pais tão românticos. Sua mãe parecia estar com um humor melhor que na noite passada quando conversaram. 

Érika: Então vamos! -Afastou-se de Carlos-
Carlos: Claro. -Saem pelos fundos da casa-

     Uma pequena porta leva-os até a garagem que abriga o belo Audi prata de Érika e a BMW preta de Carlos. Clara prefere sair no carro do pai e pela porta traseira ela entra alegre. Érika senta-se, não vê a hora daquele momento acabar e voltar pra casa. Definitivamente, hoje ela não queria sair de casa. Carlos ao entrar, liga o rádio e procura por uma estação que esteja tocando alguma música romântica. Está totalmente objetivado a proporcionar para as duas uma noite muito agradável. Nesse clima, ele sai de sua garagem passando por Cibele, Thaís, Isabel e Emília que estão indo até a casa de Mariane na entrada do condomínio. Com uma buzina e um sorriso alegre cumprimenta-as enquanto acenam ao vê-lo sair pela portaria.

Casa da família Fernandes Grácia

    Mariane e Anabela estão na sala de estar, enquanto Mariane está arrumando a bagunça deixada pela irmã após brincar com jogos de montar, Anabela está assistindo desenhos na TV à cabo. Está preocupada com pai e Mariane teve que buscá-la cedo porque Camille ligou avisando que estava chorando na escola com saudades do pai. Sete anos de diferença separam Mariane e Anabela, mas Mariane cuida da irmã com tanto zelo que muitas vezes passa a impressão de serem mãe e filha. Por Cristina estar sempre às voltas com o problema de Rogério, ela decidira assumir os cuidados da irmã para que não pesasse tanto para sua mãe e assim ela tem feito desde que Anabela nascera.
     Escuta-se o soar da campainha.

Anabela: Será o papai? -Animou-se-
Mariane: Eu não acredito. -Dirigiu-se até a porta abrindo-a-
Cibele: Oi Mari! Viemos ter notícias do Rogério. -Disse abraçando-a e entrando como sempre, sem ser convidada-

     Mariane convida as amigas para entrar e rapidamente, elas se espalham pela sala em uma conversa agradável.

Thaís: Ele está bem? Não respondeu nenhuma mensagem no grupo.
Mariane: Desculpa meninas. É que eu fiquei responsável pela Ana e nem consegui ver. -Fechou a porta-
Isabel: A gente entende.
Mariane: Ele ficou bem. Ao que parece foi só um susto mesmo.
Emília: E quando ele volta?
Mariane: Amanhã se tudo correr bem.
Cibele: Se o Ventura não tivesse chegado eu nem sei o quê teria acontecido.
Isabel: Ihh! Não vamos pensar em coisas ruins. O Rogério ficará bem como sempre ficou. Está animada com sua festa Mari? -Mudou o assunto-
Mariane: Para ser sincera? Não. -Desanimada-
Cibele: Como assim? - Admirou-se- É seu sonho se concretizando Mari.
Mariane: Meus sonhos tem tomado outros rumos Cibele. Festa agora é o que menos importa. -Triste-
Cibele: Você não vai desistir de fazer à essa altura do campeonato vai? -Insistiu incrédula-
Mariane: Não. Já está tudo pago. O jeito vai ser se divertir. -Sorriu-
Isabel: Isso aí! -Comemorou-

    Sem dúvida todas suas amigas vem dado à Mariane muita força para suportar todo o problema que vem enfrentando desde que começara a entender o problema de seu pai. Ela sem dúvida, é muito grata à todas. Anabela aproxima-se com seu jeito doce:

Anabela: Mariane eu estou com fome.
Mariane: Não sei o que posso fazer Ana.
Isabel: Podemos fazer pipoca e assistir alguma coisa.
Anabela: Pode ser Nemo?
Emília: Eu adoro Nemo! -Alegrou-se-

     Cibele fitou-a com raiva, como uma menina aos 13 anos poderia gostar de assistir desenhos infantis? Angélica tem razão, Emília é deveras infantil, pensou.
      Mariane continua:

Mariane: Não vamos ver Nemo Ana. Vamos ver algo que seja do agrado de todas. -Resolveu-
Anabela: Droga! Nunca pode ser nada que eu gosto. -Indignou-se sentando-se no sofá de braços cruzados-
Emília: Tamu junto! -Olhou para Anabela-

    Emília conseguia decifrar exatamente o sentimento de Anabela. Ainda é a única de todas as amigas que ainda brinca, muitas vezes, diverte-se com crianças menores na pracinha. Sua mãe já a levou à inúmeros psicólogos achando que poderia ter algum atraso comportamental e todos eles alegaram que tanto sua capacidade cognitiva quanto emocional estavam adequadas para a idade. Emília apenas não gostava de exercer atividades como suas companheiras, seus interesses eram mais lúdicos e isso não a tornava uma menina infantilizada.
     São 7 horas da noite, Ventura e Sônia estão sentados à mesa do restaurante esperando Angélica que à 1 hora atrás havia confirmado por mensagem sua presença no jantar. Ventura olha seu celular ao lado da mesa na expectativa de algum retorno da filha que nesse momento já deve ter ido para o concerto com André sem ter avisado nada à ninguém. Seu semblante triste evidencia toda a dor que sente naquele momento, Angélica conseguira fazê-lo sentir o pior dos pais. Toda sua rejeição o faz sentir-se exatamente como ela se sentiu todas as vezes que a deixou esperando. Nunca havia contemplado tanta dor na alma. Nem quando perdera seus pais sentiu-se assim. Angélica talvez não tenha conseguido entender o quanto de amor há em seu coração pronto para fornecê-lo e reparar toda a dor que possa ter causado. Ele está disposto a recomeçar mas para isso precisa que ela lhe dê uma chance. Sabe que não pode arrepender-se do caminho profissional que escolheu, mas se pudesse voltar atrás, nunca teria entrado no doutorado. Sua ganância por dinheiro fôra a culpada pelo abismo que se formou entre eles e ele não se perdoa por isso.

Restaurante Vero

     O Vero é um restaurante extremamente requintado. Ventura frequenta-o com regularidade já que fica próximo à Climédia, clínica onde trabalha. Com duas partes, interna e externa, uma iluminação à luz de velas e uma decoração bem romântica dão o toque final para propiciar um ambiente apaixonante e bem familiar. Ventura pega sobre a mesa o cardápio ficando a olhá-lo. Já pedira sua refeição mas sem qualquer clima, procura algo para beber. Sônia chateada pela condição do marido quebra o silêncio de mais de 10 minutos.

Sônia: Lamento! -Chateada-
Ventura: O quê? -Peguntou olhando o cardápio-

     Estava distraído demais em seus pensamentos e sentimentos para ouvir o que Sônia queria lhe dizer.

Sônia: Toda essa situação. Eu lamento! Conversei com Angélica, ela me mandou mensagem dizendo que viria.
Ventura: Ela está querendo me agredir Soninha, tudo bem. -Colocou o cardápio sobre a mesa sem conseguir escolher qualquer coisa-
Sônia: Mas isso não está certo Tura. São situações diferentes. Ela não pode te culpar por ter se afastado dela.
Ventura: Você lembra do último recital que fez?
Sônia: Aquele que  você faltou e ela decidiu romper com tudo? Claro que me lembro.
Ventura: Ela fez pra mim.
Sônia: Como assim? -Admirou-se-
Ventura: Ela tinha feito uma música própria dedicada à mim e apresentou nesse recital e onde eu estava Soninha? No hospital. -Indignou-se-
Sônia: Meu amor! Eu não sabia disso. Se soubesse, jamais te deixaria passar por uma situação assim. -Disse em um acalento-
Ventura: Ninguém sabia. Só ela e sua professora. Sempre deixei o meu amor pela medicina falar mais alto que o meu amor pela minha filha. Você sabe mais do que ninguém como eu me orgulhava de vê-la tocando no palco um instrumento tão difícil com tanta perfeição. -Culpou-se-
Sônia: Você não podia deixar de trabalhar Tura.
Ventura: Eu poderia ter negado a assumir o plantão. Poderia ter dito que tinha um compromisso mas o quê eu fiz? Deixei minha filha para ajudar um amigo. Se você conseguisse imaginar a culpa que sinto. Eu queria tanto ter estado nesse recital Soninha, tanto! -Lamentou-se-
Sônia: Amor, não fique assim! -Consolou-o-
Ventura: Tudo bem! Vamos jantar tranquilos. -Suspirou-

     Clara, Érika e Carlos adentram o Vero, enquanto Carlos dirige-se ao garçom para solicitar sua mesa, Clara fica à procurar por um sinal de internet no celular. Quer ter notícias de Anabela. Ela e Mariane que estavam passeando pela Quinta da Boa Vista tiveram que voltar correndo ao C.V.M para buscá-la aos prantos. Enquanto anda um pouco mais à procura de um sinal, olha para a parte externa do vidro que divide os dois ambientes e ao ver Ventura e Sônia, cutuca sua mãe que está a esperar Carlos resolver sua reserva com o garçom.

Clara: Olha o Ventura ali mãe! -Apontou-

     Érika sentiu seu coração acelerar, não podia ter encontrado novamente Ventura, ainda mais naquele restaurante. Eles haviam se cruzado à dois dias atrás. De novo não! Pensou. Todas as suas memórias retornaram como que em um passe de mágica e sentiu seu corpo tremer. Tinha que disfarçar, Clara e Carlos estavam presentes e não poderiam perceber seu desconcerto.
     Ventura que jantava junto à Sônia em um silêncio profundo, ao levantar a mão para chamar o garçom, vê Érika imóvel fitando-o enquanto Clara à seu lado olha o celular. Era coincidência demais encontrá-la naquele lugar. A última vez que foram à esse restaurante ainda eram noivos. O que Érika estaria fazendo ali exatamente no mesmo dia e na mesma hora? Por um momento esquecera de seu drama pessoal e ficou a olha-la fixamente. Como estava linda! Suspirou admirado. Sempre que a vira ou estava uniformizada ou com roupas leves de fim de semana. Se assim já a achava bela, o que diria de sua super-produção para um jantar em família. Uma vontade de levantar e cumprimentá-la o toma, mas não pode ser tão impulsivo, Sônia não iria gostar que tivesse essa atitude. Com seus olhares entrelaçados, Érika e Ventura ficam ali, imóveis, a espera de que alguém decida quem cumprimenta quem. 

Continua...


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Notas finais do capítulo

Não desiste de mim. Por trás de tanta indecisão tem alguém que precisa de companhia mesmo fingindo que não. Tem alguém que odeia todo mundo num segundo e chora de saudades de todos no segundo seguinte. E de você principalmente.

Verônica H.



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