Correnteza escrita por Blurryface


Capítulo 1
Capítulo Único




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Eu costumava ter medo de conversar com garotas como ela. Na verdade, tinha até medo de olhá-la. Engraçado como as coisas mudam. Agora eu dirijo enquanto ela está sentada no banco de carona ao meu lado, olhando pela janela distraidamente. Ela parece tão distante de mim, não era assim no começo...

Talvez ela esteja pensando em todas as palavras cruéis que tem dirigido a mim, em como o seu comportamento parece mudar de uma hora pra outra sem motivo aparente. Essa inconstância irritaria e afastaria a maioria dos homens, mas eu a amo demais e só quero ajudá-la.

—Você vai perder a entrada da praia se continuar prestando atenção em mim ao invés de pregar os olhos na estrada – ela disse sem tirar a testa da janela, a voz fria como gelo.

Virei o rosto para a estrada, logo veríamos a entrada da praia. Achei que seria bom irmos dar uma volta, ela sempre gostou do mar. Acho que combina com a personalidade dela.

Quero dizer, ela tem o jeito forte das ondas. Bate com força, volta atrás, depois bate de novo. Algumas vezes ela te atinge com delicadeza assim como uma maré fraca, em outras te deixa com a cara enterrada na areia como uma onda gigantesca. Mas não foi sempre assim...

Ela era adorável nas primeiras vezes em que saímos, era engraçada e espirituosa. Também tinha uma pitada de humor negro que me assustava mas acabei me acostumando com isso. E o sorriso... Meu Deus, eu nunca vi um sorriso como aquele! Nunca entendi o que as pessoas queriam dizer quando falavam sobre sorrisos que podiam acabar com guerras e curar o câncer, até vê-la sorrir, claro. Meus amigos mal podiam acreditar que um cara sem graça e comum como eu poderia estar saindo com uma garota como ela, podia ver nos olhos de todos eles o quanto tinham inveja de mim e eu reconheci que era um homem de muita sorte. Lembro de ter pensado que aquela garota era a coisa mais preciosa que eu havia encontrado na vida, às vezes me pergunto se ainda acredito nisso.

Avistei a entrada da praia e diminui a velocidade. O carro chacoalhava enquanto passávamos pela pequena estrada de terra irregular.

Mantive os olhos nos obstáculos à frente e disse:

—É um dia lindo. E a praia parece vazia...

—É porque você é o único idiota que decide ir à praia depois das 5 da tarde – ela resmungou afundando no banco de carona. Suspiro, só queria dizer alguma coisa agradável. Talvez todos estivessem certos no começo, não sou o suficiente, ela merece um homem melhor...

—Só achei que seria uma boa ideia fazermos algo legal... – comentei tentando não soar tão magoado, sinto que falhei miseravelmente.

Ela me avisou, antes de tudo começar, não posso negar que ela me alertou sobre como era complicada. Eu a beijei quando estávamos saindo do cinema, foi a primeira vez. Vimos um filme meio bobo, uma daquelas comédias românticas em que o homem passa o filme inteiro fugindo da mulher até perceber que encontrou o amor da vida dele. Ela me beijou com vontade, como se fosse a última cena de um filme mas me afastou depois de alguns segundos.

—Você vai se arrepender...

—Por quê? – não consegui pensar em nada melhor pra dizer, não entendia o que ela queria dizer, não entendia por que ela se achava tão ruim. Agora talvez eu entenda.

—Eu sou uma bagunça – ela disse baixinho, meus braços ainda na sua cintura, seus braços ainda em volta do meu pescoço.

—Eu não ligo – não ligava mesmo, ela era a coisa mais incrível que tinha acontecido comigo. Agora eu mal a reconheço.

—Você não vai mais falar isso quando me conhecer de verdade – sua voz tinha uma tristeza muito grande, vejo agora que talvez ela tivesse um pouco de razão. Eu a venerava demais, não conseguia enxergar nada além do meu amor por ela.

—Então deixa eu te conhecer, depois eu te digo o que acho – eu sorri, ela sorriu. E nos beijamos de novo.

Paro o carro e observo o mar. Nós dois ficamos em silêncio enquanto nossos olhos percorrem a praia vazia. Quero dizer tanta coisa mas não sei por onde começar: quero dizer que está tudo bem, quero perguntar se ela ainda me ama, quero que ela saiba que estou sempre aqui, quero uma promessa de que ela vai tentar voltar a ser o que era antes... Mas sinto que a perdi.

Ela abre a porta do carro e sai antes que eu possa dizer alguma coisa. Tranquei o carro e a segui, ela começa a caminhar pela praia. Em pouco segundos estamos andando juntos, as ondas molham nossos calcanhares para se recolherem logo depois e em seguida nos alcançarem novamente. Talvez essa seja uma boa metáfora para os relacionamentos: por mais que vocês caminhem juntos algumas coisas vão continuar molhando seus tornozelos.

—Ainda não entendi o ponto, o que estamos fazendo aqui exatamente? – ela perguntou um pouco irritada, senti um nó na garganta.

—Só achei que seria bom darmos um tempo, de todo o estresse, sabe? – sorri para ela mas fui completamente ignorado.

—As coisas não vão melhorar com uma ida na praia, é infantilidade sua achar que tudo se resolve assim...

—Pelo menos eu estou tentando.

—Acha que eu não tento? – a irritação continuava em sua voz, faria qualquer coisa para que fosse embora.

—Sinto muito, não quis dizer isso – ela parou de caminhar e, com seus pés, começou a mexer em uma garrafa de vidro jogada na areia, quis pedir para que parasse pois podia acabar se cortando mas não o fiz, ela odiava que eu a tratasse como uma criança –Só queria que as coisas melhorassem...

—Eu te avisei que ia se arrepender – ela respondeu sem me olhar nos olhos ainda concentrada na garrafa –Aposto que você faria qualquer coisa pra não ter me beijado depois de ter saído daquele cinema. O último ano deve ter sido o pior da sua vida...

—Não chegou nem perto – a interrompi –E não me arrependo de nada. Eu só... Preciso saber.

—Saber o quê? – ela voltou sua atenção para mim agora, nossos olhos se encontraram e congelaram.

Silêncio. As palavras presas na minha garganta.

—Eu estou te perdendo e nem sei por que – consegui dizer –Preciso saber... Se você quer ir embora, se vai me deixar.

Ela ficou calada. Seus olhos não deixavam transparecer nada, apenas uma indiferença assustadora. Por fim, ela pegou a garrafa de vidro com as mãos e a jogou no mar. As ondas engoliram a garrafa no momento em que ela encostou na água.

Assim como a correnteza a estava engolindo.

Assim como também me engolia.

Assim como engolia nós dois.


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