Vênus de Solveig (one shot) escrita por Mariiidesa


Capítulo 1
Vênus de Solveig - Único


Notas iniciais do capítulo

Oii gente!! Andei com vontade de postar essa one antiguinha minha, então aqui vai



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Gerin sabia de cor e salteado o discurso que estava prestes a ouvir. Os motivos pelos quais fora chamado ali não eram nenhum mistério e ele não fizera questão de contestar quando seus próprios subordinados o abordaram na porta de sua velha e minúscula casa dizendo-lhe que havia sido chamado ao Gabinete. Havia desobedecido uma ordem clara de um superior. Riu com desdém enquanto caminhava escoltado por Hugo e Dino ao pensar que um homem que nunca havia pisado no campo de batalha era considerado seu superior. Não estavam vivendo sem regras? Sem democracia? A última coisa de que precisavam no momento era de um líder político, afinal, não havia sido por culpa de gente como eles que aquela maldita sociedade que era obrigado a chamar de lar havia ruído? Poderiam voltar a aparecer e governar com seus novos ideais, ideais que o próprio Gerin apoiava, mas apenas quando a guerra acabasse de uma vez por todas. Deixava-os pensar que o governavam, mas na guerra, ele governava.

Ao chegarem no estabelecimento aonde fora instituído o Gabinete do Novo Parlamento, um cabaré, Hugo entrou na frente, anunciando a chegada do General Gerin ao soldado posicionado ao pé da escada. O guarda, um certo Bernardo que tinha a reputação impecável de colocar os ideais do Novo Parlamento acima da sua própria vida, era excelente em batalha, Gerin tinha de admitir, mas fora designado para cuidar da segurança do Sr. Casper Oliver, o líder político da revolução. Um tremendo desperdício. Gerin o cumprimentou cordialmente com um aceno de cabeça enquanto subia as escadas, ignorando todo o barulho e gritaria do bordel. No mezanino, Casper o esperava cercado de outros membros do Parlamento, incrivelmente concentrados em um jogo de azar.

O líder ignorou a chegada do General. Olhava para seu adversário fixamente por cima dos óculos, esperando a jogada que definiria a partida. Todos os presentes respeitaram o momento decisivo do jogo, até que depois de vários minutos suando e franzindo as sobrancelhas, o oponente finalmente cedeu à pressão e lançou as cartas à mesa, frustrado, provocando uma exagerada comemoração do Senador Oliver.

— Devia ter parado de jogar na primeira vez que perdeu, Barns. Agora me deve até as calças! — Gritou Casper. Riu por mais alguns segundos, e elegantemente ajeitou os óculos, levantando o olhar para Gerin, que esperava pacientemente seu senhor lhe dar a sentença. — Como vai, General? Contente por ter colocado sua arrogância na frente de tudo e me desobedecido?

— Estou tranquilo com minha consciência, senhor — respondeu, inabalável e indiferente às consequências que aquilo traria.

— Disse para trazer aqueles malditos oficiais com vida. Sabe quem eles eram? Sabe o que representavam?! — Gritou, irritado. Gerin permaneceu impassível. A expressão fria de sempre pareceu incomodar o Senador. — Responda-me, droga!

— Senhor, os oficiais que matei eram um símbolo para a parte da população que ainda apoia os conservadores. Trazê-los para cá com vida implicaria em uma brecha para que o resgate se transformasse em uma chacina. Já não somos muitos. A maior parte de nosso exército é totalmente despreparada.

— Que chacina? Faríamos o resgate em termos de rendição, Gerin! Rendição! Conhece essa palavra?

— Não vou arriscar trazer os inimigos para esta aldeia, Senador. Não importa minha punição. — Oliver relaxou em sua cadeira enquanto passava as mãos energicamente pelos cabelos brancos, indignado com a ousadia do General. Sabia que não conseguiria fazer com que Gerin mudasse de opinião, e dadas as circunstâncias, nem adiantaria mais tentar agir diplomaticamente. Gerin observou o homem bater os dedos na mesa, estava considerando qual seria seu próximo passo, a punição que lhe daria. O líder levantou uma das mãos, chamando uma das garçonetes designadas para ele com um gesto.

Em poucos segundos, uma moça apareceu. Diferente das outras, ela não vestia roupas chamativas, curtas ou coloridas. O vestido que usava provavelmente já havia sido vermelho, mas estava tão desbotado que já poderia ser chamado de laranja, tinha um sutil decote capaz de atrair olhares masculinos, mas não o suficiente para competir com as prostitutas do lugar. Tinha os cabelos castanho avermelhados soltos, uma fita da mesma cor do vestido enrolada em duas finas tranças que se perdiam em meio ao resto do cabelo. Oliver sorriu ternamente ao vê-la.

— Kali, querida, por que não busca uma garrafa de uísque para nós? É o favorito do General Gerin, aqui — pediu ele usando um tom de voz exageradamente doce. Gerin quase riu imaginando que aquele seria o método de Casper agradar as mulheres, mas não conseguiu continuar a debochar de seu líder quando a moça levantou o olhar. E que olhar! Eram grandes olhos cor de mel, destacados pela pouca maquiagem que usava e pelos lábios delicados e rosados. Era um rosto delicado demais para aquele lugar. Ela toda parecia delicada e ingênua demais para aquele lugar. Fez uma reverência e se afastou. Gerin não pôde evitar segui-la com os olhos, e nem mesmo percebeu que o havia feito até Casper falar novamente. — Gostou da moça, Gerin?

— Senhor? — Gerin pulou, surpreso pelo tom do Senador, repreendendo a si mesmo por perder a postura em um momento como aquele. Casper indicou-lhe a cadeira à sua frente. Gerin sentou-se e se permitiu relaxar por um momento.

— Não se empolgue. Kali não é uma das prostitutas desse lugar. Foi gerada e criada por uma delas, mas não tem vocação para o negócio. Consegue imaginar alguém como ela servindo de distração para soldados frustrados ou políticos entediados como eu? As senhoras que trabalham aqui quase me apedrejaram quando cogitei a possibilidade. Essa menina é muito amada por elas. Apenas serve os clientes e limpa a bagunça que as outras fazem. Uma vidinha miserável, se quer saber. — Gerin não sabia porque Casper estava lhe contando tudo aquilo, se estava apenas adiando sua sentença, mas estava interessado em ouvir. A garota se aproximou com a garrafa de uísque e serviu os dois com a maior cortesia e educação possíveis. Ia se retirando, quando Casper segurou seu pulso e pediu silenciosamente que ela ficasse por perto. Ela entrelaçou os braços nas costas e permaneceu em pé, ao lado da cadeira aonde o Senador estava sentado. — Como eu estava dizendo... Kali não tem futuro nenhum aqui. Cedo ou tarde as moças mais novas a empurrarão para essa vida de prostituição. A única chance para ela seria se voluntariar para servir em nosso exército. No entanto... seria suicídio considerando essa fragilidade toda.

— Aonde o senhor quer chegar? Fui chamado para discutir assuntos pertinentes à.... — perguntou, impaciente, já desconfiando onde Oliver queria chegar.

— Esta é sua punição, General — interrompeu ele, gesticulando em direção à jovem aguardando ao seu lado. — Kali vai entrar em seu grupo, ficará responsável por ela. Dê a ela o posto que quiser. Faça com que a menina tenha uma chance de não ser influenciada por esse ambiente horrível que sou obrigado a chamar de Gabinete.

— Mas, senhor! — Protestou Gerin prontamente. O que aquele velho estava pensando?

— Senhor, eu... — Kali se manifestou pela primeira vez. A confusão era óbvia a julgar pelos olhos arregalados.

— Calados, calados... se eu ouvir que você a maltratou ou que deixou que a maltratassem, tirarei seu título de General e o direito de intervir em qualquer assunto referente à guerra. Ficará vagando pelas ruas sem ter o que fazer, gastando o que sobrar de sua renda com essas belas moças daqui. Leve-a com você e faça com que tenha alguma utilidade.

Gerin olhou mais uma vez para Kali, dessa vez se perguntando como transformaria aquela criatura frágil em algo útil para a revolução sem matá-la no processo.

                                                            *************

Quando a guerra começou, treze anos antes, o jovem Gerin ainda trabalhava para o Sr. Oliver. Em troca dos serviços braçais prestados em sua propriedade, o Senador pagava o tratamento médico necessário para que a mãe de Gerin sobrevivesse à peste que atingira a região e levara uma onda de mortos consigo. As rebeliões haviam começado graças a nova lei instituída pela monarquia, uma lei que permitiria e determinaria a execução por decapitação de qualquer um que se recusasse a acatar a nova lei sobre os impostos. Os novos impostos recolheriam três quartos do lucro de cada família, e considerando a escassez do momento, seria impossível viver com o que sobraria. Os médicos começaram a abandonar Solveig pela falta de pagamento, e a mãe de Gerin não conseguiu sobreviver.  Sabendo de toda a força e ódio recém adquirido do rapaz, o Senador correu até Gerin, e o convenceu a liderar um ataque à coroa, mesmo tendo apenas dezoito anos. Primeiro o infiltrou como voluntário no exército do rei, esperou que fosse treinado e que aprendesse tudo o que podia com os melhores estrategistas. No tempo em que serviu, Gerin conheceu muitos soldados bons e os convenceu a aderir a revolução, conseguiu dividir a nação em duas partes, e plantara junto com Casper uma semente de esperança para a democracia.

Desde então, anos haviam se passado e nenhum dos dois lados saíra vitorioso. Depois da última afronta de Gerin ao matar os oficiais de Odair, o falso monarca, os combates armados haviam cessado. Não era um bom sinal, significava que estavam tramando algo grande o suficiente para eliminar de vez os revolucionários e toda aquela aldeia. Não permitiria que baixassem a guarda, nem seu grupo, nem os outros. Aproveitaria aquele período de paz para intensificar o treinamento e dar tudo o que pudesse.

            Kali surgiu como um símbolo vivo dessa paz momentânea. Desde que a havia trazido para seu grupo, os soldados de Gerin, tanto os homens quanto as mulheres, pareciam mais animados. Nos primeiros dias, ela parecia completamente deslocada, e gerara uma séria discussão no grupo quanto a sua utilidade, mas aos poucos o jeito de menina cativou grande parte dos membros. Hugo passava a maior parte do tempo ao lado dela, sempre disposto a ajudá-la com as tarefas mais pesadas ou a defendê-la de alguma piada suja feita por alguns dos outros veteranos.

Gerin a observava de longe. Era dedicada e atenciosa, estava sempre atendendo às ordens dos outros mesmo que não precisasse, e até mesmo conversava com os cavalos enquanto os alimentava e escovava. Ele não a queria em batalha e não a incluía nos treinos, mesmo quando ela mesma se ofereceu em uma das sessões que unira todos os grupos da ala leste da aldeia.  

— Quem é a menina e por que não está treinando com os outros, Gerin? — Perguntou Duncan, líder de um dos grupos da linha de frente, enquanto inspecionavam o treinamento. Gerin soltou um longo suspiro antes de responder

— Ela é.... minha protegida. — Tomou um demorado gole de água. — Cuidar dela foi minha punição por matar os cães de Odair.

— Mas que bela punição! — Duncan levou a caneca à boca, sorrindo ironicamente.

— Ela não é tão inútil quanto parece. Meus soldados parecem mais inspirados, dizem que ela os faz sorrir, que conta histórias quando se reúnem a noite... também está sempre cuidando muito bem dos cavalos, limpando as armas e a estalagem militar.

— Ela também lhe faz sorrir, rapaz? — O homem calvo ergueu uma sobrancelha, sugestivamente.

— Que merda está insinuando, seu pervertido? — Gerin balançou a cabeça, bebeu mais uma vez e olhou para Kali, que levava água aos colegas cansados de tanto bater e apanhar uns dos outros. Ela sorria toda vez que entregava um copo cheio. Em um momento que parou, um tanto ofegante, para descansar os braços cansados de carregar o balde, Gerin a viu fazer algo que causou em si um efeito inesperado. Ela enrolou uma mecha de cabelo nos dedos e a levou a boca. Um gesto aparentemente inocente, mas com uma sensualidade escondida extremamente perigosa. Ele só reparou que olhava fixamente quando percebeu os olhos cor de mel da menina sobre os seus. Ela lhe lançou um sorriso tímido, cheio de simpatia, e recolocou o balde nos braços, voltando a levar água aos companheiros.

Que merda estou insinuando... — Duncan repetiu em meio a uma gargalhada, certo de que sua teoria estava certa. Viveria para ver o frio e destemido Gerin se apaixonar.

                                                             ************

Gerin piscou algumas vezes depois de despertar, não se lembrava de muito do que havia acontecido após a invasão. Sua lembrança mais recente era a de estar deitado em uma cama de palha preparada às pressas em uma carroça, Dino gritando para que andassem mais rápido, Duncan pressionando seu abdome, tentando estancar o sangramento com as mãos e, por fim, Kali rasgando um pedaço da camiseta que usava para ajudá-lo. Depois disso provavelmente perdeu a consciência.

A primeira coisa que via agora que conseguia enxergar com clareza era ela.

— General? — Ver sua protegida ali, com o rosto tão próximo e o olhar tão preocupado quase o fez saltar da cama. Gerin fez uma careta de dor enquanto tentava se sentar. Kali tentou ajudá-lo, com certa relutância em tocá-lo. Ele conseguiu encostar-se na cabeceira da cama, a dificuldade em manter o controle da própria respiração o assustou.

— Kali... — O General deu uma boa olhada em volta. Estava em seu quarto, sua casa, com a mulher dos sonhos de qualquer um sentada em sua cama. Não fossem as circunstâncias desagradáveis, aquilo seria um sonho. — O que aconteceu?

— Coma algo primeiro, por favor — pediu ela suavemente. — O senhor já está há três dias sem comer praticamente nada.

— Três dias? — Perguntou, espantado. Coçou a nuca, alarmado. O que teria acontecido nesse tempo? Quando se trata de uma revolução, em três dias muita coisa pode acontecer, principalmente depois de matar o rei. Gerin lhe lançou um olhar involuntariamente autoritário, tomando cuidado para não assustá-la.  — O que aconteceu, Kali?

— O senhor cortou a garganta do Rei Odair na tomada da mansão, mas não antes dele apunhalar seu estômago. Te trouxemos para casa. Aquele médico que cuidou da perna de Hugo nos treinos na ala oeste o tratou a princípio, ficou aqui um dia inteiro sem descanso...

— Fritz — completou Gerin, apressando a história. — É o único que temos.

— Tínhamos — corrigiu ela prontamente. Baixou a cabeça, e quando a levantou, parecia relutar em continuar. — Eles o levaram. Estive cuidando do senhor desde então. Aprendi um pouco enquanto o observava.

Senhor... — repetiu Gerin, desdenhando da palavra pela primeira vez. Ela insistia em tratá-lo como um superior, mesmo o tendo visto em seu estado mais debilitado. No entanto, não podia culpá-la, nunca havia dado motivos para que ela se sentisse à vontade perto dele. Perguntou a si mesmo o motivo de ter mantido tanta distância. — Meu nome é Gerin. Pode me chamar assim.

— Posso fazer isso se aceitar comer antes de ouvir o resto da história. — Ela tirou uma mecha de cabelo que caía em seus olhos e a mordeu, sua expressão em um misto de apreensão e expectativa. Gerin ficou preso naquela visão por um tempo. Recobrou a postura e assentiu. Ela sorriu, satisfeita como uma criança que acabara de ganhar um brinquedo novo, e se levantou as pressas em direção à pequena cozinha do general.

Gerin tentou entender o que era aquela sensação. Solveig estava desabando ao seu redor. Depois da morte de Odair, os conservadores deviam estar vivendo em um completo caos e loucos para acabar de vez com os revolucionários. Mesmo assim, enquanto via Kali procurar por algo comestível em sua cozinha quase inutilizada, só conseguia pensar no quanto a havia negligenciado. Estivera tão obcecado com a Revolução que nunca havia prestado atenção em seus esforços para agradá-lo. Como quando fazia questão de lavar seus uniformes e entregá-los pessoalmente, ou quando corria toda a ala leste para lhe entregar recados urgentes de outros líderes, com os cabelos colados ao rosto e a respiração pesada.

Ela era tão bonita. De um jeito simples e, ao mesmo tempo, arrebatador. Não tinha muito a dizer quando ficava zangada. Odiava chamar atenção, mas estava sempre fazendo algo que a colocava em evidência. Era a primeira a evacuar as áreas de combate quando os conservadores resolviam invadir após a paz temporária acabar, mesmo sem que ninguém ordenasse, mesmo que o próprio Gerin a proibisse de se colocar em risco. O jeito de menina não a impedia de pensar por si, e por mais que respeitasse os superiores, jamais se escondeu por ordens de ninguém, jamais deixou de fazer o que pensava ser certo. Parecia se importar com todos. Dos soldados da ala leste, até os civis que nunca havia visto da ala oeste. Algo que Gerin nunca fora capaz de entender.

— Não vá ficar desapontado, por favor... — A voz doce de Kali invadiu o quarto enquanto ela entrava com uma bandeja nas mãos. Ela se sentou com cuidado e a entregou nas mãos de Gerin, com um sorriso. Ele a apoiou nas coxas. Era sopa. Tinha um cheiro bom, cheirava como carne. Não se lembrava de ter carne em casa. Kali tinha um sorriso envergonhado nos lábios. — Queria poder dar algo com mais massa, mas antes de ser levado, o Dr. Fritz disse que como passou muito tempo inconsciente, devia te alimentar com coisas leves quando acordasse. E também não é como se tivéssemos muitos recursos...

— Não precisa se desculpar tanto... — Gerin pegou a colher e a mergulhou na sopa. Levou à boca, apreciando com calma a primeira refeição de que se lembrava em três dias. Sorriu com sinceridade pela primeira vez em muito tempo. — Está gostoso.

— Ah, que bom! — Ela sorriu aliviada. Era um sorriso tão puro. Gerin odiava o fato de ser tão vulnerável por qualquer gesto mínimo dela. Sentiu o coração se aquecer. — Agora posso contar o que aconteceu...

Kali contou a Gerin o que havia acontecido desde que ele matara o Rei Odair como contava as histórias nas noites de fogueira do esquadrão. Uma narrativa detalhada de como o irmão de Odair, próximo rei, fugira com os nobres, deixando a Mansão para os revolucionários. Contou-lhe como Casper ficara feliz em estabelecer a sede do Novo Parlamento ali e finalmente deixar o cabaré, contou também sobre a estranha aliança que os conservadores de Odair haviam feito com Volker, uma violenta nação vizinha, e como isso fez com que Casper e Duncan repensassem mais um avanço. Ainda não estavam preparados para um confronto com volkerianos. Não depois da batalha sangrenta na fronteira.

Segundo Kali, isso aconteceu nos dois primeiros dias. Na madrugada do segundo dia, as maiores plantações de Solveig Ocidental foram queimadas pelos conservadores, e os rebanhos roubados na calada da noite. Os recursos eram escassos e havia muita coisa com o que se preocupar. Contudo, a moça disse que nunca vira os soldados tão empenhados. Vários civis que perderam familiares e bens haviam se voluntariado como guerreiros, incentivados pela vitória na fronteira. Estavam determinados a passar por cima de volkerianos e conservadores. Assim que Gerin estivesse de pé e em condições de ao menos planejar algo, não hesitariam em terminar de vez aquela revolução.  

Kali foi embora depois de lhe atualizar sobre tudo e só voltou no outro dia, apenas para alimentá-lo e correr de volta para suas tarefas. Mais tarde, ao anoitecer, ela voltou, o fez comer outra vez e depois de muita insistência, concordou em ajudá-lo a dar uma volta pela casa. Apoiou o General em seus frágeis ombros e o ajudou a andar de um lado para o outro, despertando risos sinceros a cada tropeço ou careta de dor seguida por um “vamos parar, Gerin, vai acabar caindo” e outro “vamos continuar, Kali”. Gerin não se lembrava de ter se sentido tão vivo desde que a guerra começara, e esperava ansiosamente para que o pôr do sol viesse logo para vê-la outra vez.

Na quarta noite após Gerin ter acordado, ela lhe trouxe um vaso com algumas flores selvagens e o colocou na mesa ao lado da cama enquanto ele andava de um lado para o outro no quarto, inquieto com a insistência de todos em mantê-lo em repouso. O cheiro das flores encheu o lugar, doce e suave, familiar como a própria Kali.

— Minha mãe costumava colocar essas flores ao lado da minha cama quando eu ficava doente. Dizia que o perfume ajuda a aliviar dores. Pode ser só um mito, mas em todo o caso... — Ela sorriu e Gerin pôde ver as olheiras a baixo de seus belos olhos. Ela não estava descansando o suficiente. Provavelmente dividir-se em cuidar de um ferido e cumprir as tarefas do esquadrão era exaustivo.

— Kali... — chamou Gerin, enquanto ela timidamente levantava sua camiseta para limpar a ferida e trocar o curativo. — Está sendo muito exaustivo para você?

— De jeito nenhum — ela respondeu com a voz firme, mas manteve a cabeça baixa. Terminou de fazer o curativo, torceu uma mecha de cabelo nos dedos e a levou aos lábios. Sempre fazia aquilo quando estava envergonhada. Houve um longo silêncio, ela abriu a boca para falar pelo menos duas vezes antes de continuar.  — Na verdade, eu gosto de ficar ao seu lado, Gerin.

Ela levantou o olhar por um breve instante, parecendo um tanto receosa em encontrar os olhos de Gerin, que ainda processava o que acabar de ouvir. A amável Kali, que conversava com animais e estava sempre disposta a ajudar havia acabado de dizer que gostava da companhia de um General seco e rabugento. Ele se perguntou se o que ouvira não fora algum delírio causado pelo estado enfraquecido no qual se encontrava.

— Por que? — Gerin não sabia como reagir àquilo. Ela o havia pego de surpresa. Um golpe mais certeiro do que a facada no abdômen. Como interpretaria àquela frase? Estaria ela brincando ou apenas sendo gentil como era por natureza? Pegou a si mesmo desejando que ela dissesse outra vez.

Gerin não conseguia tirar os olhos de Kali, atento a todas as expressões nada sutis que a denunciavam. Apreciou a visão de seu rosto enrubescendo, o fato de que ela agora evitava mais do que nunca o olhar nos olhos, e mais ainda, a sensação das mãos suaves da menina em seu abdômen, movendo os dedos em uma carícia tímida enquanto hesitava antes de responder.

—É apenas uma boa sensação. Não é algo que eu saberia explicar — Gerin quase podia sentir as batidas pesadas do coração da moça e se sentiu mal por ser tão curioso sobre seus sentimentos.

— Se sente protegida comigo? — Perguntou, duvidoso. Queria tanto saber se os sentimentos de Kali não se limitavam à gratidão por tê-la resgatado daquele destino miserável que a esperava no bordel.

— Não só isso. — Ela levantou os olhos. — Aquecida.

— A maioria diria que minha frieza contamina qualquer lugar. — Gerin sorriu, feliz com a resposta.

— Não para mim... o único momento em que senti frio perto de você foi quando vi Duncan tentar desesperadamente estancar um sangramento que não queria parar. — Ela começou a torcer o cabelo nos dedos outra vez. Gerin o tirou das mãos da menina e o colocou atrás da orelha. A sentiu tremer de leve quando a tocou. Segurou suas mãos ternamente e as beijou.

Queria ter sabido disso antes. Queria ter tido a coragem de entender o que era ter a alma aquecida e de dizer a ela todos os seus efeitos sobre ele, mas não havia conseguido ao menos entender o que era aquele sentimento, enquanto ela dizia aquilo com tanta facilidade, de uma forma tão inocente. Era tão absurda a maneira como ela conseguia atraí-lo tão intensamente mesmo sendo seu oposto absoluto. Ou talvez não fossem tão opostos assim. Talvez Gerin estivesse há tanto tempo preso na forma de General que havia se esquecido dos sonhos sobre família e amor que tivera treze anos atrás.

— Acho que já posso morrer como um homem feliz. — Ele tocou o rosto de Kali, acariciando as maçãs de seu rosto com o polegar, e o levando até os lábios da moça.  Sorriu ao ver o brilho em seus olhos de mel. Ela tentou recolher a mão, mas Gerin a segurou e entrelaçou seus dedos. Sentia ao mesmo tempo o calor e a hesitação que ela tinha em se aproximar.      

— Ainda não — murmurou ela acanhada, aproximando lenta e timidamente o corpo do de Gerin. Tinha razão. Ele ainda tinha muito o que aprender com ela, muito o que sentir, e muito o que amar. Tomou o rosto de Kali nas mãos, apreciando a maciez de sua pele e o cheiro das flores selvagens. Pressionou os lábios contra os dela, e aos poucos a guiou a um beijo mais aprofundado e cheio de paixão, permitindo-se sentir em seu toque e no gosto adocicado do beijo, todo o calor do qual tivera tanto medo desde que a conhecera, pela primeira vez totalmente alheio à Solveig que desabava ao seu redor.


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Notas finais do capítulo

É isso!! Beijos ♥



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