Desabafos escrita por Yurie


Capítulo 6
Estranho




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Hoje é um daqueles dias. 

O sol tá brilhando dourado lá fora, quente e convidativo como só o sol de verão sabe ser. O céu é uma imensidão azul clara e sem nuvens, e o mar deve estar lindo. 

E isso só faz deixar tudo pior. 

Já estava uma merda, é claro, quando acordei e descobri que tinha que ir no churrasco de aniversário do tio Rui - que, pelo Desabafo anterior, você sabe que é o marido da tia Renata. O que é positivamente um cu. 

Então, chegou esse sentimento. Essa sensação tão estranha e ao mesmo tempo tão comum. 

A de não pertencer. A de estar fora do próprio corpo. A de se remexer desconfortável na própria pele, sem se encaixar nas curvas que geralmente são tão confortáveis. 

Um dia em que não quero ser "ela" e nem "ele". Um dia em que só quero me encolher em um canto, debaixo do cobertor, com um fone de ouvido e ficar assistindo os vídeos do Luba pra ver se me animo. 

Não comi nada de café e tive que me arrastar para o almoço. Foi a famosa muqueca de peixe da minha avó, que todo mundo diz que é incrível, mas que para mim não era nada memorável - um pouco temperada demais, até, se alguém quiser saber. 

Então a minha irmã brigou com o namorado. E quando meu pai pediu para ela descer, ela brigou com ele. E aí todo mundo ficou meio retraído, meio cochichando, e papai ficou irritado. 

Resultado: papai foi caminhando, bravo, pro centro. A minha irmã foi comer meio chorando por causa do namorado. Minha mãe ficou irritada com o papai e com todo mundo, e eu me tranquei aqui no quarto porque eu precisava desabafar sobre isso. 

Sobre como o papai sempre carrega três pedras na mão quando se trata da família da mamãe: uma pro vovô, uma pra Marie e uma pro mundo. E eu não o culpo por carregá-las. E também não a culpo por ficar chateada por isso. 

Eu só queria ir para casa. 

Queria sentar na minha cama de verdade e ler. Queria passar o dia assistindo Netflix. Queria - minha irmã me crucifica se ouvir isso - me arrastar para a escola e assistir quantas aulas fossem. Só para sentir que tá tudo normal

Sabe, colocar aquele uniforme andrógeno, puxar o capuz sobre a cabeça, me encolher na minha carteira e torcer para que nenhum professor me chame para responder nenhuma pergunta. Porque eu não quero. 

Não quero vestir nenhum gênero hoje. Não quero ter nome. Não quero cair de paraquedas em uma briga. Não quero aturar meu avô, ouvir minha avó ou mesmo jogar um jogo idiota de sinuca. Não quero ter que olhar na cara da Renata, nem fingir que eu dou a mínima para nada. 

Eu só quero me encolher debaixo do cobertor e ficar lá. 

Pois é. Hoje é um daqueles dias. 

O sol tá lindo. O céu tá limpo. O mar deve estar uma delícia. 

E eu tô estranho. 

Tô numa concha. Tô sozinho. Tô indo do livro pro YouTube, do YouTube pras minhas músicas no celular, do celular para o Word, ver se escrevo alguma coisa, e de volta para o livro. 

Minha cabeça não para quieta. Já reli a mesma página cinco vezes. Abri um documento e fico zanzando de ideia para ideia, de conto para conto, sem saber exatamente como escrever nada, querendo escrever tudo. Quero sair andando, mas tenho preguiça. Quero ficar jogando no celular, mas meu dedo dói. Quero sair e aproveitar o sol, mas não quero ficar perto de pessoas. 

Eu não sei. Como eu disse, é um daqueles dias. 

Em que tá tudo no lugar, mas fora dele. Em que tá tudo meio esquivo, meio estranho, mas do jeito de sempre. Em que eu sou eu mesmo e sei quem sou, mas não tenho certeza de nada e não sou ninguém. 

Realmente, é um daqueles dias. 

Um dia estranho. 


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