Desabafos escrita por Yurie


Capítulo 20
Saudade




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"Veja o sol dessa manhã tão cinza. A tempestade que chega é da cor dos teus olhos..."

...

Não gosto de sentir saudade. 

É um sentimento maldoso, que assombra a nossa cabeça e fica lá, feito uma nuvem escura, rondando todos os nossos pensamentos e lembranças. 

A saudade pesa. 

Estou escrevendo isso em um ônibus depois de um dos melhores fins de semana desse ano, deixando para trás um dos melhores lugares do mundo, sentindo saudades de coisas que mal acabaram, que nem terminaram. Coisas que mal conheci. 

Quão cruel é eu estar fazendo essa viagem ao lado de uma das minhas maiores saudades? 

Eu não quero te contar exatamente o quanto eu sinto a sua falta, mas ainda assim quero que você saiba. Sinto falta dos teus beijos, dos teus abraços, do teu toque, do teu cheiro, dos nossos papos, da nossa amizade que aparentemente evaporou. 

Acabamos de sair do lugar onde tudo meio que começou. Do lugar do nosso primeiro quase-beijo, o lugar que vai ficar sempre guardado na memória, no reflexo dos teus olhos. 

Faz tanto tempo. Parece que foi ontem. 

Quando a gente namorava e eu sabia que alguém se importava. Quando ainda existiam ADSDs. Quando eu não sabia meu nome, mas não ficava questionando meu corpo e minha cabeça o tempo todo. Quando eu não sentia que meus amigos sentavam comigo só por pena. 

Não vou mentir e dizer que não esperei, mesmo que só um pouco, alguma coisa se repetir. 

Alguma coisa mágica. 

Não que não tenha. Nossa conversa foi perfeita, cada segundo dela valeu a pena. Estar do teu lado, mesmo que não do jeito que eu gostaria, foi tão especial agora quanto naquela época. 

Qual é o meu problema? 

Porque eu podia jurar que tinha te superado, que eu nem gostava de você daquele jeito. Que você era meu melhor amigo e nada mais. Que nosso namoro não foi nada além de um erro causado pelo impulso. 

Um erro de interpretação. 

Mas eu estudo o nosso reflexo no vidro e me lembro de como a gente fica bem junto. De como você é incrível. De como era bom sentar do teu lado, apoiar a cabeça no teu ombro e ficar só sentindo o teu perfume. 

Eu costumava achar que amor é um negócio egoísta. Que é muito ruim você ser possessivo, querer uma pessoa só para você e se fechar ao mundo. Que a gente só ama uma pessoa por vez. 

Mas como posso pensar assim agora, se você e ela se fundem na minha cabeça e se tornam apenas um? Se vocês fazem meu coração se acelerar do mesmo jeito, se eu penso em vocês nas mesmas situações, se ontem eram vocês dois no meu sonho, em mil e uma cores que explodiam feito fogos de artifício? 

Talvez a gente não tenha cometido um erro de interpretação. Talvez tenha sido só eu, quando tentei ler o passado. 

Eu sei que fiz a coisa certa quando pedi para te deixar ir; era o que eu queria, o que eu precisava. 

E não poderia ser de outro jeito, até porque arrependimento não faz o tempo voltar. 

Mas, ah, eu desejo mudar o passado. Posso? 

Só uma vez?

Não vou culpar os hormônios, até porque não posso continuar fazendo isso para sempre. É hora do meu coração assumir a culpa pelo que faz. 

[nesse caso, por ser um filho da puta indeciso]

Humberto Gessinger já pediu "vamos voltar àquele lugar; ao tempo em que nada nos dividia: havia motivo para tudo [...] Era perfeita simetria.", e nunca me pareceu mais do que um pedido alheio bem-ritmado. 

Agora, quero fazê-lo a quase todo mundo. 

...

Ei. 

Vamos voltar? 

Ao tempo em que tudo era mais simples. Ao tempo em que vestibular era só uma prova muito distante. Em que eu sabia quem eram os meus amigos. Em que eu não sentia saudade de tudo [e de nada]. 

Ao tempo em que eu era uma menina e você, o amor da minha vida. 

Foi injusto, esse nosso namoro. 

Você nunca me mereceu; sempre foi bom demais para mim. 

Eu era tão impulsiva, tão carente. Estava determinada a não implorar por você, e acabei deixando o romance de lado para não ter que me entregar. 

Agora eu só quero isso de volta. Você. A gente. 

Ei, desculpa. 

Eu dormi no seu ombro. Pelo menos, acho que sim. Acordei quando você reclinou a cadeira, a minha cabeça caída em uma posição desconfortável. Não queria te incomodar, talvez teria sido melhor se eu tivesse sentado do lado da Jana. Teria sido melhor para nós dois. 

Talvez eu nunca teria notado que ainda quero você. 

Talvez eu não tivesse te incomodado.

Talvez eu nunca teria começado a escrever esse Desabafo, a pensar demais. Talvez eu não teria começado a quase chorar no ônibus, sentindo seu cheiro ainda impregnado em todos os meus sentidos, e me arrependendo de cada segundo em que eu não te digo tudo o que eu sinto.

Você ainda pensa nisso? Na gente? Ou sou só eu?

...

Ei.

Eu podia ter te abraçado hoje?

Quando eles fizeram a gente ter saudades de coisas que a gente nem conhece direito, você teria me abraçado e chorado que nem todo mundo? Eu estava distante demais, nem vi o que você fez. Mas eu só queria atravessar o salão correndo e me jogar nos seus braços, pedir o meu melhor amigo de volta.

Mas garotos não abraçam outros garotos, então eu só me contentei com o abraço curto demais de alguém que não era você e fingi que não via as pessoas com quem eu cresci se abraçando e chorando. Tudo pareceu tão verdadeiro, e eu me arrependo dos segundos que dediquei ao pensamento de como tudo aquilo parecia extremamente hipócrita.

Como elas poderiam não sentir a minha falta, quando eu sinto tanta falta delas?

Mas você não sabe disso, não é? Não sabe o que aconteceu com a gente, as tretas meio veladas. Você ao menos sabe que a gente não se fala mais?

Mas talvez isso simplesmente não seja da sua conta nem do seu interesse; convenhamos, você tem coisas bem melhores com as quais se preocupar.

Ei, psiu.

‘Tô com saudade de uma coisa que nem conheço direito. Com saudade de uma sensação que eu quase nunca tive, de algo que eu nem sei como funciona. Vai soar ridículo, e eu nem sei se você vai entender o que eu quero dizer, mas estamos falando sobre saudade.

Estou com saudade de ser livre. De fechar os olhos e me sentir longe desse corpo, longe dessa vida. De me sentir aliviado e fora dessa prisão, sem peso, sem amarras. Só eu e eu.

Eu nem sei se entendo como isso funciona exatamente, porque soa meio bizarro até para mim, mas eu experimentei algo muito próximo da liberdade – mesmo que apenas através de uma ilusão por detrás das minhas pálpebras fechadas – e agora eu quero isso de volta.

E tem tantas saudades que eu nunca soube verbalizar e agora elas todas se acumulam no meu peito, e eu acho que vai transbordar. E eu nem sei de onde tudo isso veio ou se você liga, mas, realmente, estamos falando sobre saudade.

Eu tenho saudade dos avós que nunca conheci. Dos doces que eu nunca comi. Das casas onde minha cresceu, das cidades que nunca visitei, das maravilhas que nunca vi, das conversas que nunca tive, das festas que não fui, dos momentos que não participei, das aulas que a gente nunca assistiu, dos segredos que você nunca contou.

Da pessoa que eu nunca fui, e da vida que nunca tive.

...

"... castanhos."


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