Marcas da Melodia escrita por Carpe Librum


Capítulo 12
Helena




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Até que aconteça com você
Você não sabe como é, como é
Até que aconteça com você
Você não saberá, não será real
(Como você pode saber?)
Não, não será real
(Como você pode saber?)
Não vai saber como eu me sinto

Até que o seu mundo queime e se desmorone
Até que você esteja no fim, no fim da sua corda
Até que você esteja no meu lugar
Eu não quero ouvir nada de você
Pois, você não sabe
(Til It Happens To You – Lady Gaga)

 

AVISO: Estupro

 

Era 21 de novembro de 1989. Eu estava animada. Tudo parecia estar indo bem. Eu estava me formando na escola, tinha um namorado, uma grande família e muito apoio emocional. Sempre fui uma boa aluna, daquelas com quem os professores se orgulham de ter compartilhado o conhecimento. Eu e minhas irmãs íamos juntas para a escola. Estudávamos no período da noite. Era perigoso, mas com elas eu me sentia segura. Nós íamos juntas e voltávamos juntas. Atreladas como peças de um quebra-cabeças — se faltasse uma peça, todas se sentiam incompletas. Não havia nenhuma chance de uma esquecer da outra. Mas, nesse dia... Tudo foi embaralhado. E as peças se separaram.

O sinal tocou. Eram dez e meia da noite. Peguei minha mochila, fui até o portão e aguardei. Toda a multidão passou, mas não as vi, não ouvi o som de suas risadas escandalosas e nem mesmo os seus passos grotescos. Pensei eu que elas tivessem ido embora mais cedo e então resolvi descer sozinha para o meu aconchego.

Meu vestido voava ao vento. Meus cabelos dançavam como uma bailarina peculiar. E meu corpo acompanhava o ritmo sagrado. Meus passos eram longos, e me lembravam a sincronia do desespero. Eu sentia medo, mas o guardava como um segredo. Comecei a sentir o suor escorrer pelo meu corpo e, no meio de um suspiro, dei uma pausa para recuperar o fôlego e descansar. Respirei como se o oxigênio fosse o meu alimento e meus pulmões estivessem famintos. Continuei andando, mas senti o cheiro do mal se aproximando. Tentei acelerar meus passos, mas alguém interrompeu o meu esforço. Ele me puxou pelos braços e passou a mão em meu rosto. Uma mão tão gelada quanto a brisa da noite. Eu pensei que fosse um assalto, mas era muito mais do que levar meu celular e alguns centavos.

Ele sacou uma arma e me mandou andar de cabeça baixa:

— Finja que é minha namorada e nada acontecerá à sua alma penada. — Sua voz cortava o silvo da noite fria e monótona.

E então ele me ditou algumas regras: andar devagar e seguir as rédeas. Aquela era a minha missão até chegar ao local desejado.

Sua voz era como um tornado, me destruía quando proferia um novo mandado. Ele me fez andar, atuar e aturar. Aquelas ruas geladas me lembravam um destino imutável. Eu queria correr, eu queria gritar, mas aquele homem.... Aquele homem iria me matar.

Quase não enxerguei a sua fisionomia, mas ele era alto como um guarda-roupa e sua pele fedia. Um longo caminho foi percorrido, como um ziguezague contínuo. Eu não queria pensar em nada além de minha salvação. Eu não queria saber o que ele desejava e nem mesmo o que ele pensava. Eu queria ir embora para a minha casa, sem ter sido tocada. Comecei a gaguejar e tomei coragem para perguntar onde iríamos parar. Levantei minha cabeça e ele mandou abaixar.

Senti um cheiro de grama e esgoto. Meus pés se atolaram no barro e no desgosto. Comecei a chorar internamente, pois aquele não era um fim decente. Minhas pernas ficaram trêmulas e minha respiração se desesperou. Ele me empurrou no chão e senti minhas vestes sendo molhadas. Ouvi o barulho de zíper sendo aberto e de uma respiração ofegante cada vez mais perto. Os passos me lembravam um animal em meio à caça, e meu corpo era a carcaça. Comecei a recuar, gritar, espernear, mas nada adiantava. Bati meus pulsos contra seu rosto, chutei sua barriga e empurrei seu pescoço. Meu corpo lutava contra uma grande avalanche. Me senti ferida após perder essa batalha.

Minhas vestes rasgadas. Minha vida arruinada. Meu corpo se entregava contra a minha vontade, a grama recém molhada. Minha alma gritava, mas eu me mantive calada. A minha alegria chorava e minha vida se desmanchava. Toda a euforia que eu havia colecionado.... Havia sido levada por um homem bruto, que tornou a minha vida um luto.

Ele se levantou após o ato, fechou o zíper e disse que eu fiz um bom trabalho. Após alguns minutos me recompondo no chão, com muita força eu me levantei. Eu estava trêmula, com medo de que alguém me tocasse novamente. Escorria sangue pelas minhas pernas. Meu cabelo estava bagunçado, cheio de nós como os do laço do meu sapato. Eu queria poder lutar. Mas nada do que eu fizesse seria capaz de me salvar. Eu tinha sido penetrada e torturada. Massacrada e maltratada. Violada e estuprada. A partir daquele momento eu não enxerguei mais nada, caí no chão como uma muralha. Meus piores pesadelos foram lembrados e me senti amaldiçoada.

Acordei com barulhos de sirenes e então gritei por socorro. Minha família havia me encontrado e a polícia os ajudara. Senti o toque humano me recolhendo. Me senti viva, florescendo. Meu choro calado saiu desajustado, eles me diziam para ficar calma. E eu fiz de tudo para abraçá-los. Após aquele dia, a vida foi um grande desafio, mas tudo terminou como devia. A paz retomou ao lugar de origem. O medo tirou grandes férias e a alegria se fixou ao meu novo império. Lutei contra mim mesma.

Por um tempo, eu acordava de madrugada com medo de ser violada. Era um desespero contínuo. Na hora do banho, eu quase nunca me tocava, pois sentia nojo dos resíduos que ali estavam, o resíduo da maldade humana, e o resíduo da crueldade que muitos injetaram em mim. Marcas ficaram. E algumas nunca cicatrizaram. Nesse meio tempo me casei, meu namorado se tornou esposo, e desse casamento saíram frutos. Duas filhas, lindas e belas, como o pai delas. Elas amam cada marca que há em meu rosto. E sempre me abraçam quando digo que sou um desgosto. O passado pode ter sido doloroso, cheio de queimaduras e ponta pés, mas aprendi que, enquanto o ódio consumir o amor, os pássaros não alçarão o voo. Enquanto há tempo, há cura. O vendaval pode vir a assoprar a sua casa de madeira, mas quanto mais amor, mais ela prevalecerá e nunca cairá.

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Escrito por Micaela Carvalho.


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