Vazio escrita por truthbullet


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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“Tu usa a esquerda?”

 

A pergunta demora para entrar em sua cabeça. Seja por você estar distraída ou pela voz rouca, catarrenta, não colaborar com sua audição diminuída pelo uso excessivo de seus fiéis fones de ouvido. “Oi?”, é tudo que você consegue articular, abaixando a cabeça para perto.

 

O idoso repete a pergunta. “Tu usa a esquerda?”

Com o entendimento, você assente, de forma automática, erguendo o garfo que segurava com a mão citada. “Ah, sim, eu sou canhota. Nunca tinha reparado?”

 

Ele balançou a cabeça de forma negativa, e murmurou mais alguma coisa que fugiu à sua capacidade de compreensão. Agindo da mesma forma de sempre, você riu e deixou a situação fluir, voltando a comer.

 

Terminando o jantar, largou o prato na pia e foi cumprir a tradição de encontrar um lugar onde pudesse descansar sozinha. Com primos e tios ocupando todos os quartos, viu-se seguindo para a garagem, onde puxou uma cadeira e se sentou, a visão rapidamente entrando no padrão de olhar para a frente e ao seu redor, e então para a tela do celular.

 

Não tinha muito o que fazer por ali, a não ser aguardar pacientemente pela sobremesa. Ou seja, tempo livre.

 

Ou seja, tempo para pensar.

 

Quase que de imediato, a realização lhe trouxe um pensamento que estivera lhe incomodando desde o jantar. Seu meio de expressá-lo foi através de um suspiro. Abriu um chat já conhecido, e então deixou que seu coração fluísse para os dedos.

 

“Eu não entendo se é realmente falta de coração”, escrevia, sem pensar, com os lábios crispados. “Eu sinto demais em tanta coisa, mas não consigo sentir absolutamente nada agora.”

 

A resposta veio tão rápida quanto o esperado.

 

“Talvez ele queira perdão. Queira ser lembrado como alguém bom.

E não é falta de coração. Você não é obrigada a perdoar ninguém.”

 

“Não vai.”, você afirma, mais rápido que o necessário. Não é como se você tivesse realmente sofrido algum dano físico por causa dele, porém, não havia nada de bom a ser lembrado a respeito daquela pessoa. “Nunca vou conseguir olhá-lo dessa forma. Nem ele nem os outros.”

 

Notando sua falta de lágrimas, você percebe o quanto as coisas mudaram dos últimos meses para cá. Não existia nem uma mínima vontade de chorar no fundo do seu peito, e você não sabe como se sentir quanto a isso.

 

“Eu entendo.”, foi uma resposta curta e seca, mas que não a irritou, pois você sabe que ele entende a sensação muito bem. Sem nada além disso, bloqueou a tela e voltou a encarar o céu, coincidentemente desprovido de estrelas.

 

Você não é obrigada a perdoar ninguém, era o que lhe fora dito. E você concordava. No entanto, não sentia a necessidade do perdão.

Não havia ranço ou mágoa. Apenas um vazio estranho, familiar, que deveria conter o amor intenso que você devia sentir por alguns parentes. O vazio que indicava talvez choro suave em um futuro funeral, talvez tristeza pelo que a não-existência dele faria com o resto da família.

 

A sensação de vazio a assustava. Lhe parecia inumana. Não deveria haver amor ali? Ao menos algum tipo de afeto? Ou desprezo, talvez?

 

Ao mesmo tempo, seu lado racional a aliviava. Não havia desprezo por você ser incapaz de guardar rancor, de qualquer coisa. Não havia desprezo por que você é incapaz de sentir raiva por mais do que alguns dias. E, principalmente, não havia mágoa, por você saber que indiretamente, você é o problema e a causa principal dela.

 

Você é quem constrói sua própria mágoa. De si mesma.

 

Balançou a cabeça mais uma vez, em silêncio. O som de gritos na cozinha a alertou; estavam começando a cantar o parabéns. Ninguém a chamara, mas não era como se tivesse feito algo de pessoal para quererem deixá-la de lado. Suspirando como no início, verificou o horário, desligou o celular e se levantou, quieta feito um túmulo.

 

Dirigiu-se à cozinha o mais rápido possível, e logo já estava sorrindo de novo.


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