Quem Deu o Habeas Corpus Para a Bruxa? escrita por Talita Vaconcelos


Capítulo 2
1ª Mente




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Merda.

Merda: substantivo feminino. Chulo. Matérias fecais; excremento, bosta. (fonte: dicionário Aurélio).

Merda: grito de guerra; desejo de boa sorte, de bom desempenho. (fonte: tradições teatrais).

Merda: aquilo que acontece quando você deseja “merda” (boa sorte) a um grupo de atores azarados, antes de um espetáculo apresentado num casarão assombrado, onde espíritos mal intencionados têm a mania de interpretar as coisas literalmente. (fonte: Lei de Murphy).

E qual das três definições se aplica ao nosso grupo? Pois é...

Existe uma tradição no teatro, em que nunca se deseja boa sorte a um ator. Desejamos que ele quebre uma perna. Ou merda. O problema é que no Teatro Máscaras, os deuses do palco têm o mau hábito de compreender os termos literalmente. Ou seja, não importa quão simples seja o espetáculo, sempre dá alguma merda.

***

Tudo começou como num filme. E um filme de terror. Reza a lenda que se você pensar positivo, o universo só enviará coisas positivas para você. O problema é que meus amigos e eu não estamos exatamente nas boas graças do universo no momento. Isso, ou é verdadeiro o boato de que o casarão onde funciona o teatro em que nos apresentamos foi amaldiçoado anos atrás, depois que um marido ciumento assassinou a esposa e o amante dela e espalhou pedaços dos corpos pela estrutura da casa.

Sério, ouvi uma história bizarra sobre isso! O Otávio Serqueira, empresário teatral e dono do casarão, tem um documento e um recorte de jornal da época que confirmam que pelo menos parte dessa história do casal assassinado e sepultado no casarão é verdade. Acho que isso explica um molar que eu encontrei certa vez numa rachadura na parede de um dos banheiros do andar de cima. Nojento!

Dizem que antes de morrer, o amante da dita cuja, que estava sendo torturado pelo corno, rogou uma maldição sobre seu assassino e todos que ocupassem o casarão daquele dia em diante. O que exatamente ele rogou na maldição, ninguém sabe. O documento, escrito de próprio punho pelo assassino só mencionava que o sujeito o amaldiçoou e ao casarão, mas não transcrevia as palavras exatas. Isso aconteceu em 1906, então não dá mais para perguntar às testemunhas. Mas é de conhecimento público que esse antepassado do Otávio que torturou e assassinou a esposa piranha e o amante vingativo inventava muita história. Também é de conhecimento público que ele era chegado na água que o passarinho não bebe, então, vai saber...

O fato é que, desde que começamos a utilizar o casarão para apresentar nossas peças nunca tivemos uma estreia sem transtornos. Nem mesmo quando a peça era somente uma montagem especial para o Mês das Bruxas ou para o Natal.

Já tivemos ator com piriri a dois minutos de entrar no palco; ator que chegou com uma cobra em posição obscena desenhada na bochecha com marcador permanente – nem queiram saber como o coitado conseguiu apagar aquilo da cara depois –, e ele devia interpretar uma freira; ator que perdeu a voz, e teve que passar a peça inteira fazendo mímica porque não tinha um substituto na hora – ele teve outro piriri –; uma namorada sequelada invadindo o palco para dar na cara de um ator porque ele estava abraçado com um travesti; e não vamos nos esquecer do incidente inacreditável em que tivemos que mobilizar metade do elenco para desentalar a bunda do Papai Noel de um frigobar – não me perguntem como ele foi parar lá...

E eu só citei os incidentes menos bizarros!

O caso é que a Lei de Murphy é apaixonada pelas nossas estreias, mas tem hora que ela abusa.

Por ser Outubro, nós apresentaríamos uma montagem inspirada nos monstros clássicos do cinema – Drácula, Frankenstein, A Múmia e O Fantasma da Ópera. Nosso grupo de teatro sempre produzia montagens especiais de Halloween e Natal, que só ficavam em cartaz durante um mês.

Nos preparativos, até que correu tudo bem. Chegamos cedo para a última passagem do texto, e admiramos o cenário impecável que tinha sido montado no dia anterior: o salão de um castelo mal-assombrado, com os móveis cobertos de teia de aranha, algumas velas inteiras, outras pela metade em candelabros antigos, cortinas de veludo vermelho pesado emoldurando a grande janela ao fundo, e uma escadaria igualzinha a do castelo do Drácula, do filme de 1931. Eu olhava para o palco e esperava que a qualquer momento Bela Lugosi fosse descer, envolto numa capa preta, com os cabelos lustrosos brilhando sob a débil luz produzida pelas chamas das velas – embora ainda não estivessem acesas.

Em pé na frente do palco, os oito atores que dariam vida aos monstros e aos heróis da nossa trama formavam um grupo espantoso: um homem vestido inteiramente de preto com cara de galã de cinema; um gigante de quase dois metros de altura abraçando pela cintura a namorada de olho roxo; uma baixinha de cabelos castanhos ondulados com uma camiseta do Mickey; uma linda garota de vermelho; a Daphne do Scooby-Doo; um maluco segurando uma garrafinha de Smirnoff; e outro fantasiado de palhaço.

Sentiu o drama, que esse pessoal é super normal, né?

O galã de preto, Leandro Bittencourt – Casanova, para os íntimos –, tentava manter alguma distância dos demais, para não nos contaminar com a gripe repentina que o acometera, mas inevitavelmente acabaria transmitindo o vírus a algumas de nós ao longo da peça, uma vez que ele interpretaria o Drácula, e morderia metade do elenco até o fim da noite.

O sujeito grandalhão é o Pedro Falabella – Pedrão, para íntimos e não tão íntimos –, nosso Frankenstein, e ele não tinha nada a ver com o hematoma no olho de sua namorada, Cristiana Alvarenga; aquilo era resultado de sua mais recente briga com a síndica do nosso prédio, Dona Lourdes – e antes que perguntem, não, a velha não agrediu minha amiga; a história é longa e complicada demais para explicar em detalhes, mas o caso envolveu o gato xexelento da Dona Lourdes, a vassoura e o balde da Bruxa do 71, e uma maçaneta ligeiramente torta. Não estava torta antes, mas agora está. Como Cristiana vai usar uma tonelada de maquiagem para se transformar no lobisomem – porque ela sempre pega os papéis mais bizarros, com muito orgulho –, o olho roxo não fará a menor diferença no nosso espetáculo. Pode ser até que torne o monstro mais assustador...

Ricardo Casagrande, que interpretaria a Múmia, estava engolindo um comprimido de Rivotril com a vodca Smirnoff – sua mandinga pessoal antes de cada espetáculo, o que não raramente explica seus piriris. Ok, eu não acredito que aquilo seja mesmo Rivotril, como o Casanova costuma dizer; é mais provável que seja só um comprimidinho de Dramin. Seja lá como for, não é muito seguro misturar com álcool, apesar de que eu já misturei analgésico com vinho tinto sem sofrer qualquer efeito colateral, mas isso não vem ao caso...

A propósito, sou a gata de vermelho, Emanuelly Lacerda – pode me chamar de Manu –, mas hoje serei Mina Murray, a paixão/obsessão de Drácula. Ui!

A baixinha com a camiseta do Mickey é a Valentina Trajano, heroína de nossa peça. A princípio, Leandro e eu escrevemos a personagem como Elsa Van Helsing, mas depois achamos mais legal manter o primeiro nome da Valentina.

E você não leu errado: depois de ganhar o rosto de Hugh Jackman no cinema, Van Helsing será uma mulher na nossa história. Oremos...

Foi o Leandro quem comentou que a Vick Lancaster estava parecida com a Daphne do Scooby-Doo, quando ela chegou, usando um vestido roxo, com as madeixas mais vermelhas do mundo balançando ao vento.

— Um pouco mais gordinha, né!? – retrucou Vick, de bom humor, fazendo a pose típica da Daphne, com os joelhos juntinhos e a mãozinha na cintura.

E o motivo de o Vicente Pena estar fantasiado de palhaço é que ele foi animar uma festa infantil naquele dia, mais cedo, e ainda não trocara de roupa. Ele será o Fantasma da Ópera, um papel que cai como uma luva para o Vicente, cuja especialidade é se transformar em fantasma.

Bem, depois de passar o texto pela última vez no cenário montado, tomando todo cuidado para não danificar as teias de aranha falsas, e de ter muita vontade de jogar a Rita Ortega, assessora do Otávio, que veio acompanhar o último ensaio, de cima do palco para fazer essa mulherzinha entojada parar de dar pitaco no nosso texto, nós finalmente estávamos prontos!

Prontos para começar a nos transformar em monstros.


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