Spectral - Os Signos da Noite escrita por LadyDarkness


Capítulo 2
Capítulo II: O Pedido do Inferno




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O corvo me estudava com um olhar paciente, quase hipnótico. Eu não sei o motivo, mas senti medo daquela situação esquisita. Eu realmente nunca vira um corvo em toda minha vida, mas graças aos filmes americanos, tinha plena certeza que aquela ave negra que me fitava tão curiosa, era de fato um corvo.                                                                        

Tentei esticar minhas pernas lentamente, torcendo para que o bicho não visse aquilo como ameaça. Ok, tudo bem, ele nem sequer movera um músculo com minha atitude. Bom sinal. Respirei fundo sem desviar o olhar um segundo sequer da ave. Ela me assustava pra valer, e eu realmente não entendia o motivo. Depois de revirar minha mente á procura de lembranças como a desta situação, percebi que nunca fora muito fã de aves.                                 

O meu último contato com uma foi no sítio de meus avós, aos seis anos, quando corri pelo campo gritando agudamente porque uma das galinhas se soltara do galinheiro e decidira me perseguir graças á pipoca que eu carregava.

Que criança idiota era eu — pensei.                                                        

Enquanto pensava no caso da galinha e do quão eu era estúpida antigamente, o corvo entortara a cabeça para o lado e começara á se sacudir com a intenção óbvia de pular no colchão da cama. Meu desespero quando percebi que ele estaria á um passo de distância de meus pés se o fizesse, me fez levantar de um súbito, gritando apavorada enquanto eu descia apressadamente as escadas. O corvo gralhou escandalosamente enquanto plainava no teto do quarto, mas eu não fiquei tempo o suficiente para saber se ele conseguira sair.                                                              

Quando cheguei na ponta da escada, parei para recuperar o fôlego, sem deixar de conferir de meio em meio minuto se a ave horripilante não havia me seguido, tal qual a galinha de minha lembrança. Respirei mais fundo, aliviada, quando vi que se ele quisesse de fato me seguir, já estaria aqui em baixo.                                                                       

Encarei meu rosto no espelho novamente. Se eu achava que meu cabelo estava horroroso antes, agora me dava vontade de enfiar um saco de pão na cabeça. Parecia que eu acabara de sair de uma zona de guerra, minha franja lateral parara no topo de minha cabeça. Dei uma leve ajeitada em meu cabelo e bati em minhas roupas antes de decidir que era hora de ir. Eu passei uma hora dentro daquela casa, percebi quando conferi o horário no celular. Meu Deus — pensei — o quão louca mais eu posso ser? Ao sair para o jardim, fechando a grande porta de mogno atrás de mim, meu estômago roncou com força. Eu sentia ele oco e percebi que era pelo fato de que havia passado muito da hora do almoço. Respirei fundo e, quando pensei em pegar minha barra de cereais na mochila, notei uma árvore familiar no canto da casa. A árvore de minha fruta preferida em todo mundo. Eu não resistiria á matar a saudades do gosto doce de uma semente de romã.               

Corri até a romãzeira, exasperada, e percebi que só lhe restara um único fruto; quão sortuda era eu! — pensei. Retirei o fruto delicadamente da árvore e meu estômago protestou, com fome. Ora, que se dane, eu comeria ela ali mesmo.                                                                                   

Sentei na beirada de uma grande árvore enquanto me saboreava do mel doce da fruta que não comia á anos. Enquanto comia, pensava em minha vida, de como crescera feliz, até que meus avó morreram e meu pai decidiu arranjar um emprego no interior.                                      

As avenidas de São Paulo ainda eram uma lembrança constante dos pais á ele. Eu era jovem e otimista na época, pensara que na nova cidade eu seria feliz, encontraria amigos valiosos, me casaria, teria filhos e todo aquele blábláblá que suas tias falam quando te visitam no fim de ano. Foi um grande engano.                                                              

As pessoas já tinham suas amizades, estas construídas de uma vida inteira, e uma novata em seu bando era tudo o que elas não queriam tão cedo.                                    

Infelizmente, pra mim, sempre fora uma dificuldade sem tamanho para se fazer amizade; em parte por minha timidez, em parte pelo meu entusiasmo. Não atoa, meu tio predileto me apelidou de "ovelha negra".                                     

É, eu sempre fora. Não que eu me orgulhasse desse feito, mas gostava de minha personalidade indiscreta demais. Algo que era um repelente de garotos. Não que eu me importasse por ser bv aos 17 anos, mas parecia importar na cabeça das pessoas ao meu redor. E, na verdade, eu sabia o porquê. O medo de uma vida solitária causava pânico na maioria das pessoas. Eu sempre me dera bem comigo mesma e minha mãe repetia consecutivamente aquele ditado de que "o cara certo chegará na hora certa". Não esperava que ela estivesse certa, muito menos errada, mas eu de fato não via como alguém poderia se apaixonar por mim algum dia; e vice-versa.                                                 

Eu me acostumara a vida toda que era apenas mais uma no mundo e gostava disso. E, obviamente, sabia que o destino me cobraria, cedo ou tarde. De fato viver me dava mais medo do que o da morte.                                                               

Limpei minhas mãos lambuzadas na calça jeans e pus-me de pé em um salto. Andei calmamente até o grande portão de ferro negro, e puxei a maçaneta com uma força moderada. Ele não se abriu. Eu tentei novamente, acreditando que este estava emperrado, mas, mais uma vez minha força não fez efeito. Comecei á me desesperar e puxava-o cada vez com mais força, mas parecia rigidamente trancado. Não importava o quanto eu puxasse, ele mal se movia. Comecei á me cansar, meu fôlego começou á falhar novamente, eu encostei minha cabeça no portão e choraminguei; eu estava exausta, minhas forças todas haviam sumido. Suprimida pelo cansaço, meus joelhos bateram no chão com força.                                          

Um vento úmido bateu em meu rosto, erguendo meus cabelos e eu levantei os olhos mais uma vez para o portão. O dia começara á escurecer graças á uma tempestade que avançava. Não havia nenhum abrigo próximo além da grande casa, mas a ideia de voltar lá pra dentro me soou um tanto assustadora. Depois do incidente com a ave, aquele lugar perdera todo o encanto para mim, talvez pelo fato de me fazer entender enfim que aquilo não era um reles sonho bom. Mas, infelizmente eu não tinha nenhuma alternativa. Respirei fundo e me levantei, dirigindo-me para a direção da casa.                                                                                                           

Ao abrir a porta, rezei para que a ave negra houvesse ido enfim embora. Dei mais uma olhada no meu reflexo, agora frouxo pela falta de luz, no espelho ao lado. Meu rosto nunca esteve tão assustadoramente medonho. O cansaço fizera de minha vivacidade tranquila um poço de olheiras e óbvia fadiga. Até mesmo meus olhos castanhos pareciam ter perdido o característico brilho chocolate que refletia o ânimo extasiado que eu sempre tivera e meus cabelos pareciam sem vida, opacos e deprimentes. A pele resplandecia ainda o seu tom típico de oliva, mas também perdera um pouco de sua viva característica.                              

Dei um suspiro profundo.                                                          

Eu estive tão intensamente interessada em minha agora decadente aparência que empurrara para o canto mais profundo de minha mente algo que meu instinto gritava tão escandalosamente para que eu reparasse. Arregalei os olhos, fazendo-os triplicar de tamanho. Tinha uma mulher parada atrás de mim!                                                                  

De aparência inocente, com cabelos loiros em um tom de linhaça dourada, me dissecava com os olhos redondos, curiosos que brilhavam em um lindo brilho violeta azulado. Seu corpo parecia ter sido comprimido, pois era extremamente reta e magra. Vestia uma longa camisola de linho, branca e também transparente, notei quando vi os seus mamilos pequenos transparecendo. Pequenas sardas quase transparentes brotavam embaixo de seus olhos e seus lábios compridos e levemente cheios se estendiam em uma linha reta, indecifrável. Sua aparência não parecia séria de um todo, mas algo me dizia que ela não estava de fato contente. Todos meus neurônios dispararam simultaneamente em meu cérebro indicando perigo. Em um súbito de pânico me virei para sua direção e meus olhos focaram na direção da menina loura e esbelta... ...só que ela não estava mais ali. Meu coração congelou de medo quando meu cérebro processou o que aquela menina provavelmente era. Eu não ficaria naquela casa nem sequer mais um instante. Assustada, corri em direção do portão mais uma vez e o empurrei com toda a força que meu corpo podia empregar naquele momento. Sem sucesso mais uma vez. Eu comecei a grunhir de medo, batendo consecutivamente no portão de ferro.                     

Fiquei pelo menos uns trinta minutos tentando de todas as formas escapar daquele lugar que, travestido em uma paisagem de Sonho de uma Noite de Verão, se transformara em uma cena de terror estilo Conde Drácula. Quando senti meu rosto molhado pelas primeiras lágrimas, desabei novamente ao chão, chorando copiosamente, soluços fortes pareciam querer levar minha alma.               

Cobri o rosto com as mãos, tentando conter o turbilhão de gotas salgadas que escorriam dos meus olhos, mas nada adiantou. Um trovão ecoou agudo no céu, e eu já podia sentir o frescor da chuva de junho chegando. Foi então que, depois de alguns minutos, eu senti algo empurrar minha perna. Levantei meu rosto de um súbito, mas meus olhos estavam nublados pelas lágrimas que jorraram á pouco tempo atrás. Limpando meu rosto na manga imunda de meu abrigo de lã verde abacate, foquei meus olhos novamente para o lado de minha perna. Dei um pulo para o lado quando vi o que causara o contato. O corvo esfregava sua cabeça em minha coxa com uma motivação clara de demonstração de afeto. Mesmo se assustando com minha reação, a ave não fugiu, atendo-se apenas á copiar meu gesto, com o susto.                                                                  

Eu me sentia embaraçada; não sabia se sentia comoção ou espanto, ou talvez medo, ou tudo misturado, por aquela ave parada á minha frente, me estudando cautelosamente. Bufei de leve e curvei meu tronco para frente, demonstrando que não estava com medo, embora eu estivesse e muito. O corvo se contentou em abaixar a pequena cabeça e dar um pequenino passo á frente. Estiquei meu braço, subitamente interessada na ave. Quando estava á milímetros de encostar meu dedo indicador na ponta da cabeça do corvo, este recuou dois passos e alçou vôo, se escondendo na escuridão da mata, criada pela tempestade que agora pairava sobre minha cabeça, notei. Pisquei repetidamente quando as primeiras gotas pousaram em meu rosto, tempo suficiente para eu correr para dentro do grande casarão em busca de abrigo. Como de costume, ao passar pela porta levantei os olhos ligeiramente para meu reflexo cada vez mais frouxo no espelho. Nada havia mudado. Bom, quase nada, percebi depois de alguns segundos. O brilho chocolate de meus olhos havia retornado e estava mais brilhante do que nunca. Nunca vi meus olhos tão vivos na vida como naquele momento e fiquei o que me pareceu uma eternidade, o analisando, incrédula.                                               

Um som oco vindo da cozinha, ao fundo, me fez acordar de meus devaneios sobre o brilho dos meus olhos.               

Prendi a respiração. Pareciam passos.                                   

Tomada por um surto de coragem que não sabia nem sequer ser possível ter, me aventurei á passos lentos direto para a origem dos sons. Atravessando a grande sala, vi a porta de mogno que, supus, levaria até a cozinha e a área de serviço. Os sons aumentavam á cada passo que eu dava e, junto com eles, um pouco de minha súbita coragem também se esvaía. Prendi novamente a respiração quando toquei de leve a maçaneta. Fazendo-a rodar lentamente, deixei o ar escapar os poucos dos meus pulmões.            

Quando empurrei a porta, esta gemeu agudamente, como as de um filme de terror antigo.                                         

A cozinha era ampla e alva. Á minha direita estava um grande armário de mogno puro, com desenhos florais graciosamente entalhados, como uma moldura aos vidros das portas. Por sinal, só sobrara uma das portas com alguns cacos do vidro original. Portas se estendiam á cima em uma comprida fileira, mais á baixo existia um suporte para frutas e objetos decorativos e, logo abaixo, diversas gavetas compridas e enormes portas idênticas às de cima. Assim como o móvel do canto esquerdo da porta de entrada, este reluzia como novo (exceto pelos vidros). Mais á frente se estendia um fogão de lenha de seis bocas, rústico porém tinha lá o seu charme. Na direita havia mais dois móveis idênticos ao armário de mogno da esquerda, porém em sua versão reduzida. Entre ambos, uma pequena mesa de mogno combinando, com uma toalha de renda branca delicadamente ajeitada sobre ela, acima um vaso de barro cheio de flores do jardim, percebi, enfeitando o ambiente. No centro uma grossa mesa de madeira se estendia até o fundo do aposento, fileiras e mais fileiras de cadeiras ao lado, compondo a sala de jantar. Nela também se estendia uma infinita toalha de renda branca, combinando com a da mesa de mogno. Em cima, os restos em cacos do que um dia fora um luxuoso candelabro de madeira. Suspirei involuntariamente ao imaginar a mesma cena que observava agora, na época em que fora construída. Deveria ter sido mais que belíssima!                       

Caminhei bem devagar, tocando extasiada a grande mesa que agora ostentava uma grossa camada de poeira marrom. Ao chegar perto do fogão á lenha, meu coração se tranquilizou: Era o som de uma goteira batendo no seu fundo de metal enferrujado que causara aquele barulho semelhante ao de passos.                                                      

Soltando a respiração, olhei para o fundo da cozinha, onde havia uma grande porta de vidro corrediça que dava para a área de serviço, pequena e coberta apenas por telhas velhas de zinco. A chuva martelava lá fora com toda força, e o dia virara um breu. Fiquei fitando fixamente a varanda no lado de fora até a hora que um trovão resoou agudo e um raio cortou os céus. Meus olhos se arregalaram mais uma vez, em menos de trinta minutos. A sombra de um homem alto e magro apareceu à centímetros da minha frente, ao lado de fora da casa, na área de serviço.                  

Porém tão rápido quanto o raio, a sombra se fora. Congelada de pavor, grunhi baixinho e recuei um passo, batendo a parte interna de meus joelhos no barro que chumbava o fogão à lenha no piso marmóreo da cozinha. Respirei fundo, tentando me acalmar, e tentei voltar para sala sem, em nenhum momento, dar as costas para a porta aos fundos da cozinha. Tateei as paredes e escorreguei para fora do aposento de maneira lenta e metódica, sem nem ao menos conseguir respirar de forma regular.  Aquele homem... ele despertara algo em mim, algo que me deixava confusa e ainda mais apavorada.                                 

Levei um susto quando me virei de costas e vi meu reflexo quase invisível no espelho. Meus Deus, eu estava em pânico! Pude perceber pelo reflexo de meus olhos espantados, meus lábios pequenos formando uma curva medonha de claro desespero. Minha face estava pálida como a de um fantasma e eu sentia minha respiração falhando. Foi então que eu ouvi um sussurro diminuto, que fora abafado por minha respiração pesada.                    

Tentando regular minha respiração, fiquei ereta e tentei identificar de onde vinha os sons.                                             

Foi então que eu ouvi.                                                              

Um sussurro abafado em uma voz feminina — Beatriz.            

A voz chamava meu nome, em um tom firme, sustentado pela voz de cordas. Eles queriam a mim.                 

Desesperada, subi as escadas em tempo recorde, nem parando para respirar quando o ar me faltou.                      

Entrei no primeiro quarto das fileiras de portas, sem me importar aonde este ia dar. Fechei a porta atrás de mim em um solavanco, olhando para todos os lados, apavorada, desconfiada, desnorteada.                                                   

O quarto era mais amplo do que o que eu havia entrado antes, com uma grande cama de casal ao meu lado esquerdo. Na parede direita, um guarda-roupas antigo e também de mogno se estendia até o fim da parede. Á minha frente estava a sacada e um baú de couro com mais de trinta centímetros repousava ao lado.                      

Desesperada para achar uma maneira de me defender, corri até o baú e o abri ruidosamente.                                       

Que bela porcaria! — pensei quando vi o que havia no baú. Como iria me defender do que quer que seja com um pesado livro antigo e acabado? E ainda por cima escrito em grego?                                                                            

Beatriz — o sussurro de soprano agora causava uma onda morna na minha pele; a pessoa estava á centímetros de minhas costas — Você não devia mexer nisso.


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