Histórias Cruzadas escrita por calivillas


Capítulo 4
Não é momento para isso




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— Um enterro?! – Não podia acreditar no que eu ouvi.

— Sim, o enterro de uma pessoa muito importante para mim. E já estou bastante atrasado – ele esclareceu em tom grave, andando depressa a passos largos, enquanto eu me esforçava para acompanhar seu ritmo, quase correndo através das aleias ladeadas por túmulos e mausoléus majestosos e estátuas solenes, que nos observavam impassíveis. Estou quase sem folego, minha garganta está seca, no entanto, ele não me nota, com o olhar duro e determinado para o caminho a nossa frente, sem se importar comigo, resfolegando e quase correndo ao seu lado. Até parar, subitamente, a certa distância de um pequeno grupo circundando um caixão perto de um túmulo, um padre profere os ritos finais, sob os olhares tristonhos e desolados dos espectadores, todos usam roupas escuras e elegantes, estão compenetrados e tristes. Mas, é um garoto que me chama mais a atenção, ele teve ter uns 15 anos, é o mais jovem e destoante do grupo de trajes conservadores, usando camiseta e jeans escuros, piercing na sobrancelha esquerda, vejo a cruz tatuada no pescoço e sua expressão é a mais devastada de todas.

O senhor Thomas não se aproxima, acompanhando tudo com muita atenção à certa distância, eu o observo pelos cantos dos olhos, percebo seus olhos brilhando pelas lágrimas contidas.

— Era alguém muito importante? – indago, em voz baixa, ele concorda com a cabeça.

— Ela foi o meu primeiro amor – ele revela, fico sem palavras, não sei o que dizer nessa hora, não sou boa nessa história de emoções fortes, não é da minha natureza.

A cerimônia acabada, quando cada um coloca uma flor branca sobre o caixão, antes de descer para o seu destino final, sob os olhares lúgubres dos acompanhantes. Foi aí que o senhor Thomas se aproxima do grupo com cautela, percebo os olhares de espanto sobre ele, principalmente, quando chega perto do garoto, que o encara com estranheza.

— Eu lamento muito, David – o senhor Thomas exprime com emoção, dá para notar que ele está sendo muito sincero, no entanto, o garoto desvia o olhar, continua encarando o túmulo a sua frente.

— Nós não esperávamos que você viesse, Olivier. Você estava muito longe – o homem louro, charmoso e elegante, da mesma idade do senhor Thomas, estendeu a mão para ele, em cumprimento.

— Jean-Pierre! – A voz do senhor Thomas saiu como um grunhido e seu punho voou na direção do queixo do outro homem, que cambaleou para trás com os olhos esbugalhado de espanto, mas não fez nenhum movimento de reação, a não ser massagear o ponto de impacto. As outras pessoas gritaram assustada, eu segurei o braço do agressor e o puxei para longe.

— Por favor, não é momento para isso. Vamos embora, senhor Thomas – supliquei, tentando manter a minha voz a mais tranquila possível, ele veio sem resistir, mas, notei que por um breve instante, seu olhar cruzou com o do garoto que brilhava de raiva. - Vamos, senhor Thomas! – Puxei-o de lá e ele começou a andar rapidamente, em direção a saída.

— Podemos voltar para o hotel agora e o senhor me devolve a minha mala? – peço, mas ele não me ouve.

Chegamos à rua, o senhor Thomas faz sinal para um táxi que passa e para repentinamente diante de nós. Entramos, ele fala ao motorista um nome que não entendo, mas sei que não é o seu hotel.

— Para onde vamos?

— Preciso beber alguma coisa - ele respondeu, com a expressão tensa, sem olhar para mim, acho melhor continuar junto dele, não posso perdê-lo de vista e não conseguir o meu anel de volta.

O carro singra por ruas e ruelas, até parar diante de um bar que destoa da paisagem local, com o aspecto típico de pub inglês, não tenho a mínima ideia de onde estou.

— Eu sempre vinha aqui, quando era mais jovem e sentia saudades de casa – revela ao entrarmos no pub mergulhado na penumbra, apesar de ainda ser dia lá fora. O lugar tem um forte cheiro de tabaco e uísque, e o senhor Thomas parecia mais calmo ali dentro. – Vai beber alguma coisa? Está com fome? – quer saber, mais educado, então percebo que estou com fome, pois só comi no aeroporto antes de vir para cá.

Sentamos em bancos altos, junto ao balcão de madeira brilhante, mesmo que haja várias mesas vazias, ele pede um uísque puro e eu vejo o cardápio e escolho um hambúrguer e uma coca diet, pois alguém deve ficar sóbrio ali. O barman coloca as bebidas na nossa frente, permaneço calada, enquanto ele, de cabeça baixa, encara o copo com o líquido da cor de âmbar.

— Eu sou um completo idiota – declara de repente, depois, tomando um grande gole do seu copo, tenho vontade de concorda, mas, também, levo o meu copo a boca, para não cair em tentação. Ele devolve o copo para o balcão, com um baque surdo. – Não devia ter socado a cara daquele filho da puta na frente do garoto, logo no enterro da mãe dele, mas não consegui me segurar.

— Não deve gostar muito dele, não é, senhor Thomas? – pergunto o óbvio, ele me fita surpreso, como se percebesse pela primeira vez, a minha presença ao seu lado.

— Por que você me chama de senhor Thomas o tempo todo? Por favor, eu não sou tão velho assim – ele reclama.

— Eu não sei, você nunca disse nada – Dei de ombros.

— Me chame apenas de Olivier. Você ama alguém? – A pergunta tão inusitada me pega de surpresa.

— Eu estou noiva e me casarei em breve.

— E você ama o seu noivo?

— Claro que amo! – Acho aquela conversa era absurda, ainda mais com um completo estranho.

— Então, diga isso a ele assim que puder – ele determina e leva outra vez o copo a boca para outro grande gole.

Meu hambúrguer chega, tem um cheiro maravilhoso, seguro-o com as duas mãos, cheia de desejo e meto os meus dentes e saco-lhe um grande pedaço. Minha boca é invadia por todo a delicioso sabor, gemo de prazer. Só mesmo em Paris para algo assim tão prosaico ser tão bom. As batatas fritas que o acompanham estão crocantes e sequinhas, estou totalmente absorvida e extasiada com a minha refeição, quando notou o olhar admirado dele sobre mim, encaro-o um tanto envergonhada e deposito o restante do meu sanduíche no prato.

— Isso deve estar bom – Sua expressão é divertida, está mais relaxado, deve ser o efeito do uísque, pela primeira vez o vejo sorrir.

— Você disse que o enterro era do primeiro amor da sua vida? – Não consigo segurar a minha curiosidade, mas me arrependo logo a seguir, quando a expressão dele se fecha. Sou uma idiota!

 Para disfarçar, pego novamente o meu sanduíche e dou uma grande mordida, o molho escorre pela lateral e suja os meus dedos, contudo, está tão bom que mão quero usar um guardanapo, então faço o que nunca faria diante do meu noivo Samuel, eu lambo os dedos um a um.

 - Sim. Eu não a via há muito tempo. -  Ele fecha os olhos, sei que a está revendo em suas lembranças. – O nome dela era Sarah. Ela morreu de câncer, estava doente há alguns meses – declara e contorce o rosto em uma expressão de dor.

— Eu lamento. No entanto, as boas lembranças são o que podemos guardar das pessoas que amamos e se foram – Aquilo soou terrivelmente clichê até mesmo para mim.

Ele me fita, mais uma vez, abismado, não sei se gostou ou não gostou, entretanto, não me importo.

— O problema que as lembranças ruins sobrepujaram em muito as boas. Eu não sei se Sarah me perdoou antes de morrer. – Ele abaixa a cabeça, toma o último gole e ergue o copo vazio para o barman, pedindo uma nova dose, com uma expressão abatida. Fico em silêncio e espero se ele vai continuar a falar. – Mas, eu mereço que ela não me perdoe, depois, de como a fiz sofrer – Ele faz uma pausa e minha curiosidade ainda aumenta mais. – Eu fui um covarde e a abandonei, quando mais precisava de mim, por isso, eu merecia que ela me odiasse.

O barman coloca um novo copo de uísque diante dele, que toma mais um grande gole.

— Não deve ter sido tão ruim assim – Tentou confortá-lo, ele me encara com raiva, percebo que falei algo errado.

— Foi muito ruim – ele afirma, olhando direto para mim, retraio-me. – Eu a abandonei sozinha em um momento muito difícil. – Faz mais uma pausa, espero com a respiração suspensa. – Você viu o garoto? – Eu confirmei com a cabeça. – Eu acredito que ele seja meu filho.


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