Coisas da vida escrita por Blue Butterfly


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Cris e Duda, o brigada por tudo, desde sempre.



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É uma semana fria. A mais gelada do ano, até então. Dias mais cedo, Jane teve uma idéia que pensou ser brilhante. Ela estava checando o jornal, desinteressada, enquanto na casa da mãe. A mulher falava pelos cotovelos, e como Jane não queria ficar louca, mas também não queria insultá-la, começou a ler as notícias das últimas horas enquanto fingia que prestava atenção na conversa. Na página de cultura, seus olhos pararam numa imagem que lhe chamou atenção. Um novo espetáculo de balé tinha estreado na cidade: Maria e João. Era adaptado da produção original que fora apresentada na Escócia, e agora ficaria nos anfiteatros da cidade por, pelo menos, um mês. Ela conferiu as críticas: todas excelentes. Pegou o celular, checou os preços do ingresso. Não eram tão caros como ela imaginava. Comprou dois, por impulso, e pediu para que eles fossem entregues por correio em seu endereço, em vez de usar o sistema de leitura digital na hora da peça.

Agora, andando nas ruas congeladas de Boston, ela teme que talvez devesse ter checado apenas mais uma coisa antes de comprá-los. Tarde demais para arrependimentos, ela pensa e continua andando. Entra no prédio que estava procurando – uma extensão da faculdade de Cambridge, cuja instalação é apenas destinada à pesquisa medicinal – e sente-se perdida no hall de entrada. Uma mulher jovem, provavelmente notando a confusão estampada em seu rosto, aproxima-se dela e pergunta educadamente:

‘Oi, você precisa de ajuda?’ Ela veste um jaleco branco, tem a pele e o cabelo escuros, olhos inteligentes e bondosos.

‘Eu, ahn… Estou procurando pela doutora Maura Isles.’ Ela diz sem ter certeza de que a moça conhece a pessoa a qual ela se refere.

‘Oh!’ Ela exclama, franze o cenho como se estivesse resolvendo uma conta de matemática. ‘Não tenho certeza se ela ainda está em horário de trabalho, sendo que a vi no prédio hoje de manhã. Mas em todo caso, você pode querer checar no terceiro andar, sala 302.’ Ela oferece com um sorriso, depois adiciona: ‘a porta sempre está aberta enquanto ela está no prédio. Se ela não estiver na sala, é só entrar e esperar.’

A informação surpreende Jane. Ela nunca viu Maura como uma pessoa aberta, disponível a receber colegas de trabalho ou qualquer outra pessoa a qualquer momento, sem nem antes serem anunciados.

Ela agradece, procura pelo elevador, e encontra a sala de Maura vazia. Bem, talvez seja melhor assim. Ela coloca o copo de café que vem segurando por minutos em cima da mesa, tira do bolso de sua calça um envelope com os dois tickets dentro. Procura uma caneta em cima da mesa (excepcionalmente organizada) e escreve:

Me parece como um compromisso.

Ela suspira, coloca o copo de café em cima do envelope e sai da sala antes que Maura chegue. Agora, ela não quer ser pega no ato. Um certo receio corre em suas veias. E se ela tivesse que ter checado mesmo com a loira antes de comprar os ingressos? Virando-se sobre os pés, ela sai da sala com pressa. Ela tem medo da rejeição, mas se Maura a pegar ali, de surpresa, ela vai ficar ainda mais envergonhada.

Quando ela está finalmente fora do prédio, passa pela sua cabeça que talvez tenha sido idiotice não assinar o envelope com seu nome. E se mais outra pessoa estiver cortejando Maura assim? E se a mulher achar que aqueles tickets podem ter vindo de qualquer outra pessoa, menos dela?

Ela quase tem um ataque de ansiedade, fica dividida entre recolher os ingressos e o café e ligar para Maura outro dia e perguntar se ela está interessada, mas acaba decidindo contra. O bilhete deve ser claro, se a mulher tiver uma memória boa ela saberá que ele veio da morena.

Seus ombros giram num movimento para quebrar a tensão, e quando ela se dá conta, está sentada na cadeira de seu escritório, no trabalho. O dia passa lentamente, enquanto lá fora a neve cai rodopiando no ar, congelando superfícies, prometendo um dia seguinte ainda mais frio do que aquele.

Ao chegar em casa, Jane cozinha um jantar rápido; bem, na verdade ela esquenta um jantar rápido. Pizza congelada. É o suficiente para ela naquela noite. Isso e uma garrafa de cerveja. Ela liga a TV, senta-se no sofá e cobre as pernas cruzadas com a coberta. A pizza é picante e cai bem com o gosto meio amargo da cerveja. Combinação perfeita. Seus olhos estão quase se fechando quando o celular em cima do sofá vibra.

O nome de Maura aparece na tela.

A morena alcança o aparelho com o braço e sorri.

Encontrei os dois ingressos para o balé. Agora que tenho um extra, preciso encontrar alguém para ir comigo.

Jane ri divertida com o humor da outra, e responde logo.

Você machuca meus sentimentos desse jeito, Maura.

A resposta da outra demora em torno de dez minutos, mas chega.

Eu estava te provocando. Parece ótimo, e eu estou empolgada para assistir. Nos encontramos no anfiteatro?

Jane tamborila os dedos em cima da tela. Ela iria se oferecer para pegar Maura em sua casa, mas agora a loira já tinha descartado essa possibilidade.

Perfeito. Ela escreve e envia.

Jane, obrigada pelo café, também.

A morena sorri, automaticamente escreve um por nada, mas depois muda de idéia e replica:

Espero que não tenha se importado, eu tomei metade dele antes de entregar para você.

Ela envia a mensagem e sente seus dedos tremendo de ansiedade. Tomara que Maura entenda que aquilo é uma brincadeira, porque se não, ela apenas passará vergonha tentando se explicar.

Oh. Deus.

Tomara que Maura responda, porque se ela não responder, Jane jamais saberá o que se passou em sua cabeça ao ler a mensagem. Por misericórdia, a resposta chega logo em seguida.

Vou me certificar de comprar dois sacos de pipoca quando formos ao balé. Assim, você não precisa comer minha comida também.

A morena joga a cabeça para trás em uma gargalhada. Ela não esperava por aquilo, e suas bochechas estão ardendo agradavelmente com a sensação calorosa que se espalha em seu corpo. Ela digita de novo uma resposta.

Chocolate cairia bem também.

E em troca:

Não abuse da sorte. Boa noite, Jane. Me avise se mudar de idéia.

A morena suspira, um pouco decepcionada pela conversa que não durou muito (mas, sobretudo, feliz por ter acontecido).

Eu não vou. Te vejo no próximo domingo.

O resto da semana passa tão lentamente que, para Jane, parece mais uma tortura. Ela está ansiosa para se encontrar com Maura e não consegue parar de pensar no que aquele encontro vai resultar. No último, a loira tentou dispensá-la sutilmente, sendo que Jane nunca dera a entender que queria uma relação mais séria do que a de amizade. Ela está tão distraída que não nota quando Rachel para em frente de sua mesa.

‘Jane, você está me escutando?’ A mulher estala os dedos bem na frente do seu rosto.

Ela sai do transe e pisca os olhos. ‘Perdão?’

A mulher suspira dramaticamente. Ela se sente a vontade para sentar na cadeira, cruza as pernas e coloca as mãos sobre os joelhos. ‘Você, por acaso, estava pensando naquela linda mulher que estava com você outro dia?’ Ela provoca, um sorriso brincalhão no rosto.

Rachel e Jane são amigas por anos, e se antes a mulher parecia contida e extremamente profissional no lugar de trabalho (o que ela continuava sendo), agora a mesma se aproveitava das oportunidades em que tinha um tempo livre para abusar da intimidade que tinha criado com Jane.

‘Ela é apenas uma amiga, Rachel. Nada mais.’

‘Certo. Se você diz.’ Ela ergue uma sobrancelha em dúvida, mas não insiste. ‘De qualquer forma, eu perguntei se você pode redigir a denúncia sobre o desvio de dinheiro público da escola primária.’

‘Claro. Claro.’ A outra responde com seriedade, inicia um documento no computador.

‘Isso é, depois que você redigir sua carta de amor.’ Ela provoca de novo, e Jane se segura para não atirar o grampeador em sua cabeça.

‘Cai fora, Rachel.’ Ela diz brincando e esfrega os dedos na testa para tentar esconder as bochechas rosadas.

Mas ela não pode negar. A sensação está ali.

Domingo chega com um céu limpo, sem uma nuvem sequer. A ironia, entretanto, é que está frio como nunca. É isso que acontece de acordo com a lei da física: como em uma compensação para o equilíbrio da temperatura, o ar quente trabalha para derreter a neve, que acaba sugando seu calor, e depois o ar oferece ainda mais calor para evaporar toda água que veio da neve. O resultado disso, de acordo com os cálculos de Jane, é que toda a população está bem ferrada e vai morrer congelada essa noite, considerando a quantidade de neve que tem no chão agora.

Ela entra no anfiteatro e espera por Maura no saguão. O lugar está lotado, e ela olha em volta para estudar a arquitetura, algumas pessoas, cartazes de peças, musicais e balés. Um minuto depois, Maura aparece do seu lado.

‘Jane.’ Ela está sorrindo timidamente, como se tivesse pego a morena num momento inoportuno.

‘Oh, oi!’ Depois de se virar para a voz, ela abre um sorriso imenso. ‘Nós chegamos mais cedo do que combinamos.’ Ela observa. ‘Como você está?’

‘Bem. A direção foi um transtorno com esse tanto de neve.’ Ela diz, mas dá de ombros como se não desse muita importância ao fato agora. Seus olhos recaem na alta cúpula da entrada no teatro e observam com encanto a qualidade dos detalhes esculpidos e pintados nas paredes. ‘Não é magnífico?’ Ela murmura em encantamento.

Jane estuda Maura, dessa vez. Seu cabelo loiro está devidamente escovado, brilhando sob a luz dourada do ambiente. As bochechas estão rosadas por conta do frio, e ela veste um vestido vermelho embaixo do casaco, agora aberto, preto e longo. As botas sobem até o joelho, e a cor escura se perde com a calça de lã que aquece suas pernas. Ela se vestiu para essa noite sem exageros, mas com mais classe do que qualquer pessoa ali.

‘É,’ Jane finalmente diz, ‘é, sim’, mas agora ela não tem certeza se estão se referindo a mesma coisa.

Os ingressos são recolhidos antes da entrada para o teatro em si. Elas procuram pelos assentos designados para cada uma, sentam-se lado a lado e conversam sobre nada de muito importante. Jane conta sobre sua semana, os casos (que podem ser comentados) do trabalho, sobre sua família. Maura conta sobre seu trabalho, comenta sobre uma ligação que recebeu de sua irmã que mora no Colorado e que a deixou feliz, sobre detalhes banais do dia-a-dia: compra de livros, uma ida em um restaurante novo para ela, compra dos presentes de Natal.

Jane absorve cada detalhe, e ainda que seja um pequeno, ela finalmente sabe algo da vida pessoal de Maura: ela tem uma irmã! Ela não quer ser intrometida, e ela definitivamente respeita esse espaço que a loira coloca entre elas, então não pressiona e não pergunta mais nada. Agora, entretanto, ela acredita que passo a passo elas vão se aproximar ainda mais, futuramente.

As luzes se apagam e o espetáculo começa. É uma explosão de cores e sons, movimentos. Jane não é muito fã de balé, mas isso não é nada do que ela viu antes. É balé contemporâneo combinado com uma estrutura de cenário impecável. Dançarinos profissionais e indiscutivelmente capacitados e talentosos. Apesar de a história ser baseada em um livro infantil, a atração foi preparada para o público adulto.

No intervalo entre a troca de atos, Jane está sem fôlego. Ela vira a cabeça para Maura quando as luzes se acendem e vê em seu rosto o mesmo ar de surpresa e contentamento.

‘Isso é melhor do que eu esperava.’ Ela admite para Maura.

A outra ri docemente. ‘Posso dizer com segurança de que é um dos mais belos que vi.’ Ela aperta sua mão no braço de Jane. ‘Você me acompanha até o lavatório?’

‘Claro.’ A outra se força a dizer, hipnotizada pelo toque. Maura nunca tinha feito isso antes, não voluntariamente, abertamente. Elas tinham quebrado outra barreira?

Na fila para o banheiro, as duas engajam numa conversa sobre os contos infantis. Maura informa Jane em como alguns deles, em suas versões originais, são perturbantes. Como o da Cinderela.

‘Você sabia que na narrativa feita pelos irmãos Grim, Cinderela tem seu vestido produzido por pombos e que esses mesmos furam os olhos das irmãs malvadas dela?’

‘Merecidamente.’ Jane resmuga.

Maura lhe lança um olhar em choque.

‘Okay… Eles pegaram um pouco pesado, não é? Mas elas eram malvadas. Não me sinto mal por isso.’

A loira dá uma risada baixinha, mas balança a cabeça em não, repreendendo a atitude da outra.

Quando estão saindo do banheiro, elas dobram o corredor e passam pela exposição de produtos da companhia de balé. Camisetas, bonés e chaveiros estão sendo exibidos com o intuito de serem vendidos. As duas se olham e se comunicam discretamente com um balançar de cabeça. Não dessa vez. Antes que possam se mexer, entretanto, uma voz pega a atenção das duas.

‘Doutora Isles?’

A loira se vira (e Jane também) para se encontrar com uma mulher loira, de olhos verdes e toda sorridente.

‘Olá.’ Maura diz educadamente, mas a julgar pela sua expressão, ela parece não reconhecer a mulher.

‘Meu nome é Rebeca Taylor, nós nos encontramos brevemente alguns dias atrás, no comitê de recursos financeiros destinados para pesquisas da universidade.’ Ela diz com empolgação e aperta a mão da loira.

‘Oh, agora me lembro de você.’ Maura diz com a mesma empolgação. ‘Neurologia, estou correta?’

‘Exatamente.’ Ela sorri, e parece que só agora parece notar a presença de Jane.

Maura se adianta, antes que a situação se torne desagradável para a morena, e a apresenta. ‘Taylor, essa é Jane Rizzoli. Ela é promotora de justiça e minha amiga.’

Ambas apertam as mãos, trocam cumprimentos.

‘Bem, eu não quero segurá-las. Só queria ter a oportunidade de conversar com você um pouco e te deixar saber que sou uma fã do trabalho que você faz na universidade. Embora não seja meu campo de atuação, eu admiro muito a cardiologia.’

‘Obrigada, é muito gentil de sua parte.’ Maura agradece com sinceridade, suas bochechas levemente coradas.

A mulher se despede das duas, e tão logo elas estão sozinhas novamente, Jane lança um olhar misterioso para a menor.

‘Você tem fãs, Doutora Isles.’ Ela brinca.

A médica fica ainda mais corada e revira os olhos num gesto juvenil. ‘Não comece, Jane. Eu não trabalho sozinha.’

‘Mas aposto que você é a mais inteligente entre todos os outros.’ Ela devolve.

A loira não diz nada. Ela apenas lança um olhar para Jane, um que revela insegurança, como se ponderando se pudesse aceitar o elogio ou não. A morena não pressiona, não insiste. Ela apenas abre um sorriso confidente e depois guia ambas para os assentos.

O segundo ato começa. Sem intervalos, dessa vez, é seguido pelo último.

Quando as luzes se acendem no final da última dança, Maura tem um sorriso estampado nos lábios, lágrimas não derramadas nos olhos. Há algo nela que Jane não sabe o que dizer o que é. Talvez um tanto de pureza misturada com outro tanto de mistério. Algo belo e inominável. Seja o que for, vem causando esse efeito em Jane: como a neve que caía lentamente nos dias anteriores, ela vem caindo lentamente de amores por ela.


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