Conexões escrita por Creeper


Capítulo 2
Isso não passa de uma farsa


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♥!



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A casa está inteiramente cinza, uma atmosfera tensa e desagradável paira sobre ela dia após dia. Não ouço mais vozes, nem risos, sequer os espíritos tentam saborear a bela refeição de sentimentos negativos servida em nossa residência.

Lembro-me de ter me trancado em meu quarto e chorado até adormecer. Estou confuso quando me levanto, estranhamente deitado na cama de Luck, sentindo seu cheiro nostálgico. Cerro os dentes e aperto o lençol com força, sinto que vou chorar de novo.

Ando pelo corredor nada convidativo, nenhuma luz está acesa, tudo está um breu. Por quanto tempo eu dormi? Não era possível que tivesse passado o dia inteiro na cama.

Observo o relógio de pêndulo na cozinha, sua esfera dourada vai de um lado para o outro, seu tique taque torna o tempo mais lento. São seis e quinze da tarde.

Adentro todos os cômodos e concluo que estou sozinho. Um sentimento de solidão me invade e traz consigo uma angústia incessante.

Vou até o banheiro de maneira determinada, acendo a luz acima do espelho e encaro meu reflexo fixamente.

— Luck. Luck. Luck. – sussurro com um semblante sério.

Subitamente sinto um arrepio percorrer meu corpo e a queda de temperatura é gritante. Minha imagem no espelho vai sendo substituída aos poucos, dando forma a um ser de pele pálida e olhos vazios.

— O que você quer?! Eu estou morto, não é mesmo? – Luck diz com sarcasmo.

— Sinto muito, eu estava com raiva... Mas não deixa de ser verdade! – franzo as sobrancelhas.

— O que você quer? – Luck repete de maneira impaciente.

— Conselhos... – apoio-me na pia. – Eu não sei se devo parar ou...

— Continuar a fingir que você sou eu para ganhar dinheiro para o nosso querido pai? – ele dá um sorriso cínico.

Mordo o lábio inferior, um tanto pensativo e receoso.

— Sinceramente... – Luck suspira e se alonga. – Isso é muita filha ‘putagem’... Entretanto, creio ser a única saída, senão vocês irão morar na sarjeta e em breve a mamãe se encontrará comigo.

— Ei! – o repreendo.

— Não deixa de ser verdade. – imita-me. – A mamãe precisa do tratamento e você sabe o quanto é caro, Taylor. Você quer mesmo ver nossa família se desmoronar assim? – murmura com a voz carregada de tristeza.

Faço o máximo para segurar o choro preso em minha garganta e procuro-me manter-me de pé em meio a tremedeira.

— Eu detesto quando você está certo! – cuspo as palavras. – M-Mas... Continuar com isso é tão desonesto... – abaixo a cabeça e encolho os ombros. – Não quero seguir essa carreira... Tenho meus próprios sonhos...

— Às vezes, precisamos abandonar nossos sonhos do presente para que possamos sonhar no futuro. – Luck diz seriamente.

Enxugo as lágrimas que ameaçavam cair e afirmo com a cabeça vagamente.

— Eu preciso encarar a realidade... – falo sem firmeza. – Pela nossa família. – respiro fundo, preenchendo meu corpo com o ar gelado.

— Ou o que restou dela. – Luck cruza os braços, fazendo as correntes enferrujadas em seus pulsos tilintarem. – Adeus, Taylor. – acena com a cabeça.

Sua figura torna-se embaçada e volta a dar espaço para o meu reflexo. Estou sozinho novamente.

Não é como se eu prendesse meu irmão no espelho, o fato é que nossa ligação de gêmeos não permite que a sua alma vá embora enquanto eu estou no primeiro plano. Foi uma descoberta incrível que fizemos juntos, a qual eu decidi de maneira egoísta não revelar para mamãe, nem para vovó e muito menos para o papai, ele sempre achou esse lance espiritual uma besteira mesmo, nunca nos dava ouvidos sobre as aparições durante as madrugadas.

Eu sei que não sou louco, mas estou quase chegando lá. Minha sanidade mental é consumida conforme eu converso com um certo defunto pelo espelho. De qualquer forma, não me importo se isso não passa de uma alucinação, ao menos eu tenho como conversar com a pessoa que eu mais amava no mundo. Acho que ainda amo, apesar de bizarro.

— Taylor! – escuto a voz de papai um pouco distante. – Já acordou? Eu trouxe comida! Venha jantar logo antes que esfrie!

— Já vou. – grito de volta sem me esforçar para soar empolgado.

 

xXx

Regra I: Nunca diga a um morto que ele está morto, isso pode irritá-lo.

xXx

 

Enxugo a gordura de meus dedos com um guardanapo ainda mais gorduroso que toda aquela comida de fast-food servida sobre a mesa de jantar. É esquisito estar sentado em uma mesa de 12 lugares com apenas uma única pessoa. Encaro a mínima mordida que dei em meu lanche e minhas batatas fritas intactas dentro do prato de isopor.

— Olha, precisamos conversar. – papai diz após um longo e desconfortável silêncio.

Rapidamente, checo os acontecimentos dos últimos dias e tento me lembrar se fiz algo de errado, mas concluo que eu passei a última semana inteira na cama. Não dá para fazer algo errado na cama quando se tem apenas uma única pessoa, né?

— Quero deixar claro que eu sei o que vai dizer e que estou muito arrependido. Posso ir para o meu quarto agora? – ajo automaticamente.

— O que? Você se sente arrependido por eu ir viajar? – papai arqueia uma sobrancelha e me fita confuso.

Quase engasgo e lhe devolvo o olhar, um tanto perplexo. Como assim viajar?

— Precisarei viajar para fora do país para fechar negócio com uma empresa que se interessou por meus serviços. – papai cerra os dentes e encolhe-se discretamente.

— Oh, isso é ótimo. – comento. Uma pequena chama de esperança se acende em meu peito.

— Jura? Bem... – pigarreou hesitante. – Não vou poder levá-lo comigo. – essa frase deixou-me sem chão. – Sendo assim, decidi deixá-lo na casa de um ex-funcionário meu, o qual confio muito.

Odeio o modo como ele toma decisões sem importar-se com minha opinião. Respirei fundo e tentei contar até dez, mas logo no três eu me manifestei.

— P-Por que eu não posso ir com você?! – arregalo os olhos.

— Por dois motivos! Primeiro, você se esqueceu que ninguém pode saber da sua existência?! – ele encara-me.

Não me lembro bem de como chegamos a decisão de esconder-me da imprensa, talvez para evitar que minha imagem fosse exposta ou simplesmente uma antecipação de tudo que estava por vir.

— Segundo, não há como eu pagar viagem, estadia e alimentação para nós dois. – papai suspira cansado.

— Pois me deixe sob os cuidados do pessoal da banda! – sugiro desesperado.

Ele me lança um olhar sarcástico e eu sei o porquê. Afinal, Alexy ainda é menor de idade, Sora precisa cuidar da irmã mais nova e Philipe mora sozinho em metade de uma mansão para que não precise dividir o mesmo ambiente com ninguém (e isso incluí seus pais).

— Eu posso me cuidar sozinho! Tenho quase dezoito anos! – franzo as sobrancelhas e cruzo os braços.

— Quase, você ainda não tem! E eu não posso emancipá-lo sem que você tenha uma renda! – papai retruca. – Além do mais, eu me preocupo contigo, não quero que você fique largado. – acrescenta de modo meloso.

Minha cabeça grita: “FALSOOOOO!”, entretanto, mantenho a boca fechada.

— Continuando... – papai diz.

Bufo descontente e jogo o corpo para trás, de modo que deixo suspensas as duas pernas frontais da cadeira.

— Esse meu ex-funcionário tem um filho da sua idade ou um pouco mais velho, não me lembro... – ele prossegue inabalável.

— E daí? – o interrompo com rispidez.

Papai respira fundo e hesita um pouco antes de responder:

— É o garoto do acidente.

Minha expressão passa de raivosa para incrédula.

Luck morreu em um acidente há um mês.

Era madrugada quando papai e ele decidiram ir a uma conveniência 24 horas para comprar bebidas em comemoração ao lançamento de uma nova música da Crux. Enquanto eles voltavam, notaram um garoto andando de jeito peculiar, sem nem olhar para onde estava indo. Luck concluiu que ele estava embriagado e quis ajudá-lo com uma carona.

Meu irmão desceu do carro e foi até o garoto, porém, ele se esqueceu de olhar para os dois lados da rua antes de atravessar. Um caminhão em alta velocidade estava prestes a acertá-los, Luck precisava escolher: ele ou o garoto. E adivinhem só? O corpo do astro musical em ascensão levou uma batida tão forte que acabou parando do outro lado do quarteirão.

Quando os paramédicos particulares de Scarlet chegaram ao local, não puderam fazer nada para salvá-lo. O rio de sangue na calçada deu origem a grande sujeira que viria a se tornar nossa família.

Não sei como é o fim do mundo, mas a definição mais próxima que conheci foi o funeral de meu irmão. Senti como se eu estivesse indo junto com ele a sete palmos abaixo do chão. Era como se tudo houvesse sido levado de mim em um piscar de olhos. Eu sabia que minha alma havia se partido e gritava angustiada, tentando enxergar uma realidade que não fosse aquela.

Perdi a conta de quanto tempo passei dentro do quarto, não tinha vontade de comer e não queria receber visitas. Eu me sentia morto.

E meu pai? Ah, meu pai... Ele não deixaria a imprensa saber do acidente e assim nasceu toda essa farsa, comigo tendo que fingir que sou Luck Ayers, o vocalista da Crux.

— Por que você acha que eu vou aceitar ir para a casa dele?! – elevo o tom de voz. – Ele é o culpado pela morte do Luck! – levanto-me bruscamente e bato com as mãos na mesa.

— Taylor, não há um culpado nessa história... – papai fala baixinho.

— Se ele não estivesse bêbado, saberia atravessar a rua direito e Luck não precisaria ter se arriscado! – cerro os dentes e grito com ódio.

— Por favor, você precisa lhe dar uma segunda chance... Ele já pediu desculpas... – levanta-se vagarosamente.

— Desculpas não trazem os mortos de volta à vida! – fecho os olhos com força e forço as mãos contra meus ouvidos.

— Mágoas também não! – papai grita o mais alto que pode.

Derrotado, deslizo as mãos de minhas orelhas até meu rosto e escondo minha face por um tempo. Volto a sentar-me, dessa vez com as pernas encostadas ao peito e minha cabeça entre meus joelhos. Mantenho as pálpebras fechadas com tanta força que consigo enxergar borrões vermelhos.

— Taylor, você não pode pelo menos considerar? – papai questiona suavemente. – É a única opção ou... Eu não poderei viajar. – suspira decepcionado.

— Então não viaje. – digo automaticamente, com um tom ríspido.

— Quanto mais cedo eu fechar contrato, mais cedo você poderá abandonar essa mentira e mamãe voltará a morar conosco. – a mão grande de papai pousa sobre meu ombro e eu desejo me afastar instantaneamente, mas não o faço.

O aperto em meu peito se faz tão sufocante que sou incapaz de segurar as lágrimas, então começo a chorar baixinho, torcendo para que papai não note.

— Olha, é melhor você ir descansar, sinto muito por te sobrecarregar tanto. – papai solta meu ombro e eu agradeço mentalmente. – Apenas lhe peço que pense no melhor para a nossa família...

Essa chantagem novamente. Eu não aguento mais ele colocando nossa família em cima das minhas costas, me obrigando a ser moralmente ético (de certo modo), me jogando o fardo de ser o “salvador”. Ele é um covarde.

— Vá dormir, você deve estar muito abalado com toda essa situação. – papai fala após um silêncio constrangedor.

Fungo e enxugo meu rosto com a camiseta que usava. Levanto o rosto, ignorando o fato de que meus olhos e nariz devem estar vermelhos.

— Como você acha que eu vou esconder minha identidade dupla enquanto estiver morando com esses “desconhecidos”? – pergunto com a voz rouca.

— Você nunca se preocupou com isso de verdade. Enquanto Luck autografava bebês, você saia normalmente para comprar pão e ninguém corria para cima de você com microfones e câmeras. – papai arqueia uma sobrancelha.

Quando menores, Luck e eu éramos idênticos, mamãe até nos vestia iguais e papai tinha dificuldade de nos diferenciar. Ao crescermos, Luck decidiu adotar um estilo diferente: tingiu o cabelo de vermelho, colocou piercing nas orelhas, língua e umbigo, passou a usar óculos escuros sem estar sol (coisa que não fazia o mínimo sentido) e outras loucuras.

E eu continuei o mais normal possível, com o cabelo naturalmente loiro, óculos de grau (realmente necessários) e o mais radical que cheguei a fazer foi colocar um brinco de pressão que perdi em uma hora.

— Quando você vai viajar? – mudo de assunto.

— Daqui uma semana. – papai desvia o olhar. – E... Bem, eu estava pensando... Que tal visitarmos sua mãe em um dia que você não tiver ensaio? – segura em uma de minhas mãos.

— Qual o truque? – semicerro os olhos.

Eu sabia que papai não se sentia bem quando visitava a mamãe, ele detestava vê-la naquele estado e mergulhava em uma profunda depressão após toda visita. Então, ele não a visitaria à toa, não mesmo.

— Irei perguntar a ela se... Há algum problema em alugar a casa durante o tempo que estarei fora. – papai encolhe os ombros como um rato indefeso.

Arregalo os olhos e sinto meu coração falhar uma batida.

— Espera aí! – livro a minha mão das suas e afasto-me bruscamente. – Tempo? Quanto exatamente? – cerro os dentes e franzo as sobrancelhas.

— Um período de seis meses. – papai me olha com hesitação. Seu olhar não possuí nenhum traço de vida, ele parece extremamente esgotado.

— Seis meses?! – fico indignado. – É muito tempo! Pai, você me disse que era apenas para fechar contrato!

— Eu sei, é só que... Na realidade, a empresa gostaria de experimentar meus serviços antes de qualquer decisão concreta... Talvez eu possa até viajar para fora do continente. – ele afunda o rosto nas mãos, sem graça.

— Argh! – rosno irritado. – Pai, alguma vez na vida você vai me dizer a verdade?!

— Sinto muito, Taylor... Eu estava com medo da sua reação. – papai murmura com a voz embargada.

Em um estalo, notei o que estava acontecendo. Papai estava me dando algo que nunca deu ao Luck: o poder de escolher.

Tínhamos 16 anos quando a empresa de papai foi a falência, consequentemente ele obrigou meu irmão a entrar no ramo da música para que pudéssemos reestabelecer a nossa renda.

Sem dúvidas, Luck era mais talentoso, mais popular, mais extrovertido e mais narcisista do que eu, por isso papai o elegeu. Sinceramente, meu irmão nunca quis ser vocalista ou ter uma banda, ele possuía os próprios sonhos e metas, contudo, acatou a ordem de nosso pai sem relutar.

Papai está arrependido. Passou a vida inteira dando ordens ao Luck, sem deixá-lo ter uma escolha e então ele morreu, sem ter feito nada que realmente quisesse. Benjamin Ayers está vivendo com o fardo da culpa e tentando consertar as coisas com o filho que lhe restou.

Suspiro pesadamente e relaxo os músculos.

— Tudo bem, pai. – falo com pesar. – E-Eu... Estou de acordo. – engulo em seco e cerro os punhos em baixo da cadeira.

— Muito obrigado, Taylor. – papai levanta-se e envolve-me em seus braços. – Eu te amo, você sabe disso, não é? – suas lágrimas caem sobre minha pele. – Isso irá acabar em um piscar de olhos, eu prometo.

Fico em silêncio, pois sei que é uma promessa falsa como todas as outras.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam? XD
Até o próximo, bjjjjs!
—☆Creeper.



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