Último dia na terra escrita por Heiiko


Capítulo 1
Capítulo único




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 Chutou o cobertor. Passou a mão pela testa. E, no escuro, ficou sentado. Fixa um ponto não visível, como se refletisse sobre aquilo ou sobre algo. O que oscilava era algo primitivo, modesto demais para um pensamento. Podia ser a tentativa de recordação de um sonho. Imóvel, força o ar pelas narinas procurando faze-las voltarem a funcionar. É acordar num inferno de todo calor. Dormiria mais cedo se tivesse sono. Dormiria... E, com essa palavra, de súbito tomou consciência de que naquele dia morreria.
 Um garoto de olheiras fundas e cabelo despenteado pedindo socorro. Sem desviar, os olhos posados no espelho não levantaram voo. Mas depois a mente voou e vagou. E as coisas que pensou lhe doeram no estômago. Uma dorzinha gelada e persistente. Refletiu a respeito. Instinto de sobrevivência, talvez. Ao menos algo estava certo contigo. Os olhos se tornaram mais fundos.
 De pé observou a cena feito um boneco, sem que fosse dela ou ela dele. Viu os olhos da irmã cresceram ao “bom dia” inesperado. Tão inesperado que não respondeu. Saiu rindo, correndo, contando à mãe. Havia certa graça naquela pequena correndo animada. Mas era pequena demais. Pequena demais. Abafada, a voz alcoólica esmagando a ilusão.
 Bebericava o chá. A cabeça pendida, o redemoinho no copo dos movimentos circulares. Quando criança, odiava esse líquido quente e adocicado, preferia suas bolachinhas secas. Levou até o rosto e cheirou. Viu os cortes de folhas nos dedos. Alguém fara chá amanhã? Ao adeus de quem partia fez soar um som distante e cortado, longe de palavra.
 Parado diante da estante, lia os títulos dos livros. Estendeu a mão e quase tirou um, mas a recolheu lentamente. Também recolheu a mochila de um canto no chão. Antes de partir deu uma última olhada para suas coisas e para sua cama.
 Na escola viu dois gigantes encantoarem e agredirem o tremente passarinho quatro-olhos. Seus punhos se fecharam, enquanto sentia algo crescer dentro de si. O que teme o homem morto? Deu um passo a frente, mas se afastou rápido, antes que o percebessem. Nada mudara. Os olhos fechados, balançou a cabeça lentamente e foi.
 Voltando para casa, procura em cada rosto apressado que cruza o caminho. Vivendo suas vidas. Tão alheiros. No profundo de cada um se esconde um aperto? Como o veem? Suspeitam? Faça tudo corretamente e será indolor. Rápido como uma bala. Tão rápido. Mínimo. Insignificante. Nada. Nada.
 Tem crianças brincando no parquinho. Tem um banco na sombra. Qual é o sentido da pressa. Sentado, pega seu caderno e pensa registrar a inocência. Um risco e nada. Não pode fazer nada. Nada pode ser feito.
 — Está desenhando?
 É uma moça de rosto magrelo e olhos tão fundos quanto os seus, que surge sentada ao seu lado.
— Não. — Sua voz sempre tão baixa.
— Me deixa ver seus desenhos.
 Os desenhos são partes dele. Tão dele e tão ele. Mas já não importa. Entrega o caderno.
 Vê os olhos da menina se tornarem mais rasos.
— Uau. Você desenha muito bem. São incríveis! Vai ser desenhista? Teria um futuro brilhante.
 Seu sorriso é libertador. Ele sorri também, tímido.
 Durante o restante do percurso, sente-se cheio. Carregava a certeza que se encontrariam outra vez. Ela era um anjo? Perguntava-se o tempo todo.
 Chega em casa. Ignora o barulho. Entra em seu quarto. E se enforca.


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