Apolo e Amélia, aqueles tempos. escrita por Letícia Garcia


Capítulo 1
Capítulo único — Aqueles Tempos


Notas iniciais do capítulo

Olá a todos e todas!

Trago para vocês hoje um conto leve e romântico que gostei muito de escrever. Comecei a publicar meus escritos aqui no Nyah! tem pouco tempo, apesar de sempre ter frequentado o site como leitora. Peço o apoio de todos e todas e desejo de coração que aproveitem a leitura.

Esse conto foi escrito para participar do desafio literário #GoExplore que foi produzido pela plataforma de escrita Sweek, e entrou para a shortlist dos dez melhores contos. Por esse motivo tenho um carinho muito especial por esse texto.

Então, chega de falar. Boa leitura!



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Nós precisamos viver todas as aventuras.
De uma única vez.

 
SEMPRE ME PARECEU difícil de acreditar que aqueles homens do passado fossem eruditos de fato. Por um lado, esperar que um nome e um número considerável de frases feitas atravessassem séculos intermitentes sem um motivo grandioso nunca me soou factível. No entanto, a questão talvez não sejam os sábios e suas sabedorias, mas a necessidade que as pessoas têm de empoderar a si mesmas a partir da sapiência do outro. A unidade humana é muito mais atrativa que um individual exilado em sua própria limitação.

Não se pode negar, no entanto, que todos esses conhecimentos compactados em parágrafos nada contextuais vieram propagando sentidos a partir de uma perspectiva atemporal. Afinal, quem nunca questionou a existência do universo, ou olhou para as estrelas pensando que olhos poderiam nos examinar daqueles pontos distantes? Certo, talvez nem todo mundo.

Pensando bem, isso pode soar meio esquisito. Admito.

Acho que todos nós concordamos que ela faria um trabalho bem melhor contando essa história, já deu para perceber. Posso imaginar as expressões e gestos que acompanhariam sua narrativa com a desenvoltura de quem nasceu para fazer do mundo um lugar melhor apenas com meia dúzia de palavras. Mas tal como os fanáticos pelo conhecimento alheio, eu sou um ser humano limitado e, sem Amélia, sou menos de um terço do que já fui um dia.

Como de costume a culpa é toda dela, responsável constante pelas melhores e mais inacreditáveis ideias. Amélia sempre soube mais do que eu, embora jamais admitisse sua imensidão. Percebeu a referência? Foi um desses conhecedores do passado que disse saber que não sabia de nada!

Tem também outro, bastante famoso, com nome francês e estátua pensante. E a gente, que pensa que sabe tanto, não chega nem perto de parecer tão sabido quanto aquele amontoado de bronze esculpido. No fim das contas, paralisada é a nossa mente, que no sufoco aceita de antemão tudo aquilo que basta para sobreviver. Mas não com Amélia. Nunca foi assim com ela.

Bem, não há equívoco nenhum em associar nossa história com aquilo que ditavam os antigos sábios. Tenho certeza de que algum deles uma vez mencionou qualquer coisa sobre a filosofia ser uma preparação para o ser humano. Uma preparação para a morte. Não há forma de refutar como essas sentenças são impactantes, especialmente quando a morte é a única certeza que a gente tem nessa vida.

Já a vida, bem, ela é a aventura que comporta todos aqueles sentimentos humanamente imperfeitos. E é uma imperfeição linda de sentir.

Acontece com bastante frequência de agências publicitárias utilizarem conjunções profundas como as ditas por filósofos e pensadores da antiguidade para compor um anúncio de qualquer temática. Muitos anos antes de aquilo acontecer eu me deparei com uma imensa propaganda fixada à traseira de um ônibus, que dizia em letras maiúsculas e coloração berrante: “NO MEIO DAS DIFICULDADES ENCONTRA-SE A OPORTUNIDADE”; ao lado, uma caricatura de Albert Einstein com a língua para fora apontava na direção do endereço eletrônico de uma clínica psicológica.

Impulsionado pela curiosidade, eu acessei aquele endereço assim que cheguei em casa e, durante uma noite inteira, li a respeito de todos os transtornos depressivos e condições de tratamento possíveis para que as pessoas tenham condições mínimas de se curar. Dentre algumas das sugestões havia uma que se repetia com bastante frequência, a do diálogo. Conversar, desabafar, confessar, escrever, e todo tipo de comunicação existente.

Sempre foi tarde para nós, com certeza. Mas se existia a mínima possibilidade de escutar sua voz, mesmo que para falar sobre aquele dia, com quais forças eu seria capaz de ignorar? Se ambos precisávamos em alguma medida discutir sobre como tudo acabou dessa forma, qual pretexto eu poderia usar?

Especialmente enquanto escutava seus passos e lutava contra a vontade de abrir os olhos.

Já fazia algum tempo que sua presença havia me despertado. Não precisava enxergar para saber que alguém estava perambulando dentro da nossa casa. E não reconhecer Amélia era tão inadmissível para mim quanto respirar no vácuo.

Os pelos macios do gato preto que adotamos no mesmo dia em que decidimos morar juntos comichavam as solas dos meus pés, e isso indicava que ele continuava com o hábito  de dormir no mesmo local em que acostumou a se aconchegar todas as noites. Uma brisa levemente gelada entrava pela janela, trazendo consigo o perfume de madeira molhada pelo frio do inverno e o frescor do lago congelado. Foi engraçado imaginar suas feições impacientes pelo meu suposto despertar e imaginar seus movimentos ao redor de mim.

Amélia rodeou a cama umas três vezes com passos vacilantes enquanto eu fingia dormir como um covarde. Perto da lareira, sobre a qual ficavam todos os nossos porta-retratos, escutei quando pegou um objeto e voltou a colocá-lo no lugar.

Por favor, eu pensei, dure o tempo que for, mas que dure o suficiente.

Eu abri os olhos.

A cabana que aprendemos a chamar de lar continuava da mesma forma, embora alguns pequenos detalhes saltassem aos olhos com a importância do nosso sentimento; os livros nas prateleiras com anotações que compartilhamos, as xícaras sobre a escrivaninha de lugares que visitamos juntos, seus óculos de leitura abandonados há muito no criado mudo. As paredes de madeira deixavam entrar os raios solares através de buracos fabricados por cupins, que pontilhavam os móveis como flocos de luz. Na lareira, um porta-retratos muito importante jazia abaixado, a foto ocultada era a de nós dois no alto de uma montanha, a primeira que escalamos juntos.

Um movimento repentino me chamou a atenção e me levantei o mais rápido que minhas pernas bambas eram capazes. O gatinho rolou para o lado e caiu fora da cama em um amontoado de cobertores e pelos escuros, mas tampouco foi o bastante para acordá-lo.

Foi então que a vi. Dois grandes olhos do mais humilde castanho escuro me encaravam, divertidos, emoldurados pelo véu de cabelos igualmente marrons, tão longos quanto minha memória registrava. Amélia sorria, balançando-se sobre os calcanhares para frente e para trás.

— Bom te ver, Apolo — disse ela casualmente.

Claro que eu não respondi. Sua voz, a melodia que eu desejei ouvir eternamente, preenchia naquele momento toda a minha existência vazia. Eu duvidei, confesso que duvidei, mas seria inadmissível que o universo fizesse tamanha crueldade com o nosso amor. Busquei por frases bonitas e palavras de efeito por medo de me aproximar e tudo desaparecer outra vez. Eu devo ter feito uma careta, mas por dentro foi a tentativa de um sorriso.

— Você veio, faz um bom tempo — falei.

— Achei que eu deveria tomar a iniciativa, só para variar. Além do mais, hoje é um dia especial, você sabe...

Especial? — Um sabor amargo preencheu a minha boca. — Hoje, Amélia, é o pior dia das nossas vidas.

Com a melhor virada de olhos da história da humanidade, ela resmungou qualquer coisa sobre prioridades e prosseguiu com a exibição daquele sorriso persuasivo e genuíno. Amélia queria estar feliz.

No chão, o gato miou baixinho, e desviamos os olhos para ver que continuava dormindo. Aproveitei para encarar a mulher que sempre foi a mais importante da minha vida sem que ela percebesse. Talvez eu ainda estivesse sonhando, pois era uma explicação plausível. Um longo sonho. Apesar dos três anos que se passaram desde a última vez que a vira, Amélia continuava tão bonita e alegre como nunca.

— Ei, querida... — chamei. Precisava perguntar, mas a coragem não se fazia presente com intensidade suficiente para concluir as palavras. Por sorte, Amélia entendeu o que queria dizer.

Ela sempre entendia.

— Temos algum tempo antes disso — interrompeu. — Que tal uma volta no parque? Eu realmente estou com saudades do nosso lugar.

E fomos.

Por todo o caminho Amélia fez comentários casuais sobre o tempo e as folhas das árvores que enchiam as ruas com o anúncio de um inverno que se intensificava cada vez mais rápido. Caminhou em cima da mureta na beirada do rio e cantarolou músicas infantis com os braços abertos, ignorando todas as vezes que abri a boca para protestar ou puxar assunto.

Chegando ao parque, contudo, eu percebi quando hesitou em pisar no gramado com a ponta dos pés já descalços. O modo como contraiu os lábios e flexionou os dedos, recuando um passo. Entrelacei minha mão na sua, capturando o seu calor. Posso tê-la confortado, mas também fui em busca do conforto e da força que podíamos construir juntos.

O parque estava praticamente vazio e as poucas pessoas que arriscaram um passeio no inverno usavam roupas grossas e luvas coloridas. Subimos um longo declive que ficava à direita do caminho de pedras principal, escondido pela vegetação seca. Nosso esconderijo secreto. Um pedacinho do mundo que descobrimos só para nós. Depois da terceira rocha e de cinco arbustos meio velhos e com poucas folhas por causa do tempo, alcançamos a árvore sob a qual tantas vezes nos abraçamos.

O mundo naquele lugar parecia ter parado no tempo. Era o único pedaço de terra que ainda exibia alguma coloração verde. A grama baixa balançava de modo singelo por causa do vento gelado, mas não se via indício de que pretendiam se entregar aos castigos da estação. A árvore, alterosa, sucumbia aos poucos, pois muitas folhas se espalhavam ao seu redor, formando um círculo em tons de verde, amarelo e marrom.

E era ali, fixado ao chão perto das raízes, que um pequeno monumento quadrado de madeira descansava com o entalhe de um epitáfio. Não era uma lápide, nunca teve a intenção de parecer com uma. A verdadeira lápide estava exatamente onde lápides deveriam estar, em lugares tristes, sombrios e cheios de dor. Ali era o nosso ponto de encontro. O lugar em que estaríamos juntos, mesmo que em pensamentos.

Recostados no tronco da árvore, nós conversamos sobre tudo e, entre um assunto e outro, meus dedos acariciavam a superfície da sua mão. Amélia estava mais magra, embora eu não tivesse certeza do quanto. A felicidade por sentir outra vez seu toque e observar a ponta do seu nariz ficar vermelho toda vez que sorria devem ter interferido no meu sentido de julgamento.

Só muitas horas depois, nos demos conta do anoitecer. O dia passou como costuma fazer, sem trégua, e as primeiras estrelas lançaram sobre nós o aviso de outro fim. Mesmo que eu não gostasse de admitir, nossa história parecia ter mais pontos finais do que recomeços.

Eu retirei do bolso um papel.

A caricatura de Albert Einstein com a língua para fora exatamente como eu recordava estampava o verso. Ela respirou fundo, pegou a folha e olhou por muito tempo para a frase redigida ali.

— Parece... — começou a dizer, mas parou um momento para balançar a cabeça e sorrir, por fim, completou: — Interessante. A publicidade é boa.

— Eu não escolheria Einstein.  Arthur Schopenhauer seria mais poético, com toda aquela história de a vontade ser a essência do mundo e a libertação da vontade uma solução para a vida.

— Einstein vende mais.

Touché.

O silêncio reinou por um tempo, cada um perdido nos próprios pensamentos. O prelúdio dos minutos correndo assemelhava-se ao lamento de um fantasma.

— Naquele dia — a voz de Amélia cortou o ar — tudo foi tão perfeito. O sol, o mar, o horizonte, o céu. De vez em quando, eu fecho os meus olhos e escuto o som das nossas vozes cantando músicas em volta da fogueira. Ninguém viu a tempestade chegar.

— A gente não tinha como saber.

— Hoje em dia eu tenho pavor de trovoadas — ela gargalhou um riso nervoso e instável. — Muito tempo depois que você partiu eu sofri. Nunca imaginei que a dor pudesse ser realmente assim. Dolorosa em seu sentido mais brutal e sólido. Esse sofrimento foi se alimentando da minha alma, e depois tudo ficou tão vazio. Quando eu tentava me lembrar daqueles tempos bons, só o que encontrava era saudade. Nem lembranças, nem calor. Só essa saudade.

— Amélia...

— Sabe por que estou sorrindo? Por que hoje, assim que entrei em casa eu senti que te veria outra vez. Eu decidi que iria me encher de felicidade e, se eu parar de sorrir, todo aquele sofrimento vai retornar e vai ser real.

Ela estava na beira de um abismo, as lágrimas contidas no limiar das pálpebras. Acariciei o seu rosto.

— Eu não sou mais a sua alegria, Amélia. Eu sou o seu vazio, e não posso continuar assim. Por que eu te amo, e sempre vou amar.

Assim Amélia chorou. Eu a abracei, e chorei. Chorei por que a minha alma estava machucada. Chorei por que era cruel, injusto e ainda me revoltava. Mas chorei, sobretudo, por que só ali ela compreendeu que aquele era o nosso fim.

— Como vai ser amanhã? — questionou.

— Eu não sei querida. Talvez você não se lembre de nada, talvez pense que foi um sonho e, bem, na verdade pode ser um sonho. Mas, independente disso, você tem que ficar melhor. O mundo é seu, Amélia, não pode desistir dele.

Ela aquiesceu.

— E como vai ser agora?

— Nós precisamos viver todas as aventuras, de uma única vez.

Nosso beijo foi longo e tenro, um pouco salgado por causa das lágrimas remanescentes. O mundo ao redor se transformou e eu jurei escutar o cantarolar dos pássaros e o farfalhar de grama alta, sentir o calor do sol e a suavidade do vestido esvoaçante de Amélia no limite das minhas canelas. O nosso beijo era verão, céu azul e mormaço.

A última coisa que vi foi a inscrição no pedaço de madeira ao lado de nós, em que se lia: “De acordo com Aristóteles a felicidade depende de nós mesmos”, e logo abaixo “Apolo. Marido. Amigo. E eterno”.

Foi um beijo de adeus eterno, e é para mim. Pois no segundo em que nossos lábios se separassem, o mundo estaria igual como sempre esteve. Um mundo que não é mais meu. Não é mais nosso. 

Se a vida é uma aventura, então o amor é como pular de paraquedas pela primeira vez ou escalar uma montanha só para assistir o resplendor do sol se pondo. Amar é se arriscar com a certeza de que tudo pode dar errado, mas que se der certo então vai ter valido cada esforço.

Nós vivemos a nossa aventura. A minha chegou ao fim, é verdade. Mas foi boa. Magnífica. A melhor aventura de todas, pois eu tive a sorte de amar e ser amado do modo mais puro e profundo de todos.

Se for para isso que as aventuras servem, para que as pessoas explorem o mundo em busca da felicidade, então eu conheci a própria felicidade. E ela se chamava Amélia, pois a felicidade tem nome, basta que cada um encontre a sua. Não precisa ser uma mulher ou um homem, talvez um filho, um animal de estimação, um sonho ou uma melodia. A si mesmo, talvez? A felicidade é plural, feita de momentos, de pessoas, de lembranças e planos.

Mas seja como for, eu realmente desejo que essa felicidade dure o tempo que for preciso.

E que seja eterna como foi a minha.


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Notas finais do capítulo

É isso!

Agradeço de coração por ler até aqui. Se gostou, pode deixar um comentário para a gente conversar e trocar ideias. Se tem um crítica positiva ou negativa, vai ser um prazer conversar a respeito.

E se você gostou está com vontade de aproveitar para ler mais, pode visitar o meu perfil para ler a história "Floresta de Concreto" que comecei a postar no site. É uma história de romance sobrenatural, com muito mistério, magia, romance e personagens cativantes.

Então, até a próxima!



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