Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 75
LXXIII. O que é que a Miiko quer saber?




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Eu ouvia as vozes e sentia o movimento em meu redor, mas o meu cérebro não era capaz de processar o que estava a acontecer. Era como se a minha capacidade de raciocinar tivesse sido destruída juntamente com as fracas ilusões que protegiam a minha mente. Eu passara os últimos dias a esforçar-me ao máximo para não pensar naquele assunto, numa derradeira tentativa de manter a pouca sanidade que me restava, mas as palavras daquela mulher não me deixavam outra opção senão enfrentar a cruel realidade.

No fundo, eu já suspeitava de que não tinham sido só faeries adultos a perder a vida em Eel. Afinal, os escombros das casas destruídas por Ihlini não discriminavam quem iriam esmagar a seguir. Tanto podiam atingir o guarda armado que passava na rua naquele momento… como o bebé inocente que dormia tranquilamente entre as paredes que deveriam protegê-lo.

Uma parte de mim queria atribuir a totalidade da culpa daquelas mortes a Ihlini, ou até a Ashkore. A outra parte sabia, contudo, que não faria diferença. Independentemente do que tentasse dizer a mim mesma, sentir-me-ia responsável até ao fim da minha vida. Eu tivera tantas oportunidades de evitar o ataque a Eel. Tantas… Bastava ter dado ouvidos a Masaomi quando dissera que eu não estava pronta para o combate. Bastava ter dado ouvidos a Rubih quando dissera que o melhor seria abortar a missão de desativar o círculo e voltar para trás. Bastava ter dado ouvidos à vozinha no fundo da minha consciência que desde o início dissera que não queria nada daquilo. A mesma voz que, desde então, se desmanchava em pedidos de perdão.

— Perdoem-me — dei por mim a murmurar, com a voz embargada e o olhar fixo nos meus próprios pés — Perdoem-me… Perdoem-me… Não era minha intenção… Eu… lamento tanto… Perdoem-me…

As vozes ao meu redor silenciaram-se, por isso não tive qualquer dificuldade em captar o som dos passos rápidos e pesados que vieram na minha direção. Levantei instintivamente cabeça, pressentindo a ameaça, e vi Lithiel atravessar-se na minha frente para impedir a mulher-carneiro de atirar-se a mim.

— Achas que pedir desculpa vai mudar alguma coisa? — rosnou ela por entre os dentes cerrados, lutando para se desenvencilhar da doppelganger — Achas que pedir desculpa vai trazer o meu menino de volta?! Ou sequer aliviar o meu sofrimento?! Mas que raio tens tu na cabeça?! Será que não tens noção do mal que nos fizeste?! Sua… cabra! Tu vais pagar pelo que fizeste! Eu vou-te fazer pagar pelo que fizeste!

— Já chega, Twylda! — ralhou Lithiel — A Eduarda não é a culpada pela morte do Mery!

— É, sim! É tudo culpa dela! É tudo culpa dela!

A mulher-carneiro continuou a gritar insultos e ameaças, lutando contra o aperto de Lithiel com tanta veemência que Lee teve de se juntar à doppelganger. A minha vontade era aproveitar a oportunidade para dar meia volta e fugir dali, mas obriguei-me a ficar e assistir a tudo. Até àquele momento, eu sempre desviara o olhar diante da mágoa dos faeries, com medo de encarar as consequências dos meus atos. Mas a verdade era que eu não podia continuar a fugir. Isso não seria justo para com os faeries… porque aquela mulher tinha razão. A culpa era toda minha… e eu tinha de pagar pelo que fiz.

— Soltem-na — murmurei tão baixinho que, por instantes, achei que as minhas duas amigas não me tinham ouvido. Lithiel, contudo, não demorou a lançar-me um olhar incrédulo por cima do ombro.

— O que disseste?

Eu fechei momentaneamente os olhos e inspirei fundo.

— Soltem-na — repeti.

— Eduarda…

— Eu sei. Soltem-na.

Lithiel e Lee trocaram olhares apreensivos, mas acabaram por libertar a mulher. Eu retesei-me, pronta para a sua investida, mas, para minha surpresa, ela não se mexeu. Parecia tão confusa e desconfiada quanto Lithiel e Lee.

— O que pretendes com isto? — acabou por perguntar.

Eu sorvi mais um fôlego de coragem, antes de murmurar:

— A senhora tem razão. A culpa do que aconteceu em Eel… é minha. Eu podia ter travado o ataque em várias ocasiões… mas não o fiz. A culpa é minha…

— Fico contente que tenhas a decência de admiti-lo, mas se estás a tentar conquistar a minha compaixão…

— Não, claro que não. Sei bem que não a mereço. É justamente o contrário — afastei ligeiramente os braços do corpo — Eu… estou disposta a receber o meu castigo. Se… espancar-me a fizer sentir-se melhor… se isso aliviar o seu sofrimento, nem que seja só um pouco… vá em frente.

— Eduarda — Lithiel chamou-me em tom de aviso, mas eu ignorei-a. Permaneci concentrada na mulher-carneiro, que me mirava com asco e desconfiança. Ninguém se mexeu ou pronunciou durante vários e longos segundos, mas, finalmente, a mulher aproximou-se com passos calculados e cautelosos. Ela quedou-se diante de mim e ergueu lentamente a mão direita, mas hesitou a meio do gesto. Os seus olhos percorreram o meu rosto e a mão erguida perdeu alguma da pouca firmeza que tinha. Achei que ela ia desistir. Porém, quando os seus olhos finalmente se cruzaram com os meus, o rosto dela fechou-se… e a sua mão despenhou-se na minha cara.

O sabor a sangue inundou-me de imediato a boca e perguntei-me vagamente se titãs conseguiam regenerar dentes perdidos. Não tive, contudo, muito tempo para pensar nisso porque a segunda bofetada não tardou a chegar. A mulher-carneiro não me poupou, atingindo-me repetidamente e com cada vez mais violência. Eu podia tê-la parado, podia ter-me desviado… mas não o fiz. Eu queria realmente acreditar que o sofrimento daquela mulher estava a ser transferido para mim a cada contacto, por isso abracei a dor em vez de a rejeitar. E isso trouxe-me um inesperado alívio. O alívio de saber que, depois da minha punição, poderia escapar de pelo menos uma parte daquela culpa torturante. Poderia finalmente ser livre…

— Mas que raio se passa aqui?!

Uma nova voz e um puxão no meu braço colocaram termo à minha penitência. Abri lentamente os olhos que fechara durante a chuva de bofetadas e vi Ezarel ao meu lado, puxando-me para si enquanto usava o outro braço para empurrar a mulher-carneiro para trás.

— Endoideceste, Twylda?! O que pensas que estás a fazer?!

A mulher desviou relutantemente o olhar de mim para fixar o Diretor da Absinto. Inspirou como se estivesse a tentar recuperar a calma, endireitou os ombros e disse:

— Justiça. É isso que estou a fazer.

Ezarel abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas eu poisei a minha mão sobre a sua para chamar a sua atenção.

— Não faz mal — murmurei a custo. A minha cara doía — Fui eu… que pedi…

O elfo lançou-me um olhar incrédulo e muito zangado.

— Mas… que raio tinhas tu na cabeça?! — ralhou baixinho — Se a tua cara não estivesse já toda amassada, eu seria o próximo a dar-te um excerto de porrada! — soltou um estalido exasperado com a língua antes de me arrastar atrás de si, através da mão que permanecia no meu braço — Anda, vamos tratar disso!

Eu deixei-me ir sem protestar, preferindo concentrar-me nas minhas tentativas de colocar um sentido no que tinha acabado de acontecer. Fisicamente, estava exausta e com muitas dores. O meu rosto estava a começar a inchar e, em breve, seria impossível manter o meu olho esquerdo aberto devido à rigidez das pálpebras. Por outro lado, psicologicamente… sentia-me como se tivesse acabado de acordar de um longo sonho perturbador. Os meus sentidos pareciam estar a voltar ao ativo, captando detalhes que antes me tinham passado completamente despercebidos. As cores garridas das tendas, a brisa que me acariciava o rosto e os cabelos, o cheiro a comida que esta transportava… Eu estava mais desperta e atenta do que nunca.

Estava tão maravilhada com a minha nova condição que só me dei conta de que estava de volta à estalagem quando Ezarel me fez entrar na mesma sala onde tirara as minhas ligaduras, há pouco mais de uma hora. Ele empurrou-me para o mesmo banco que ocupara antes e, enquanto recolhia alguns frascos e panos limpos, Lithiel, Lee e Adonis entraram cautelosamente na divisão. As duas raparigas permaneceram junto à porta, mas o centauro veio até mim e agachou-se ao meu lado.

— Es-estás bem, Eduarda? — perguntou num meio murmúrio.

— Só estás preocupado com ela agora?! — ralhou Ezarel, sentando-se no banquinho diante de mim — Não parecias sentir o mesmo enquanto a Twylda lhe endireitava a cara à chapada!

Adonis corou e abriu a boca para gaguejar alguns sons incompreensíveis, mas eu adiantei-me:

— Fui eu que disse à Lithiel e ao Lee para soltarem aquela mulher.

— Já percebi essa parte, só não percebi porque raio deixaste a Twylda fazer-te este serviço!

— Isso é problema meu — murmurei, virando o rosto para o lado. Duvidava que Ezarel entendesse os meus motivos. Ele provavelmente achar-me-ia louca ou masoquista…

Um súbito ardor no canto da minha boca fez-me soltar um “au!” de protesto. Instintivamente, tentei recuar, mas Ezarel agarrou-me pela nuca e continuou a pressionar o pano embebido em algum desinfetante no ponto em que o meu lábio rebentara.

— Au! Para! Isso dói! — queixei-me, agarrando o seu pulso para o afastar de mim. O elfo resistiu, tentando alcançar o meu rosto novamente.

— Não deve doer mais do que a tareia que a Twylda te deu, por isso cala-te e aguenta! — rosnou por entre os dentes cerrados — Adonis, segura-a!

— Adonis, não te atrevas!

O centauro ficou a olhar de mim para Ezarel, com ar indeciso e aflito, até que senti alguém abraçar-me por trás para prender os meus braços contra o meu corpo. O conhecido som de guizos permitiu-me saber quem era sem sequer virar a cabeça.

— Lithiel, sua…!

Não tive sequer tempo de terminar a frase. O Diretor da Absinto voltou a encostar o maldito pano à minha cara e a minha boca ficou subitamente muito ocupada a berrar insultos e pragas contra o elfo. Este último abriu um sorriso maldoso e continuou a torturar-me com o tecido embebido em desinfetante até todos os meus cortes e arranhões estarem perfeitamente limpos.

— Tens uma boca muito suja, cuspideira — comentou ao terminar, dobrando o pano com pequenas manchas de sangue — Devo desinfetá-la também, para parares de dizer palavrões?

— Aproxima esse pano de mim novamente e eu faço-te engoli-lo!

Ezarel sacudiu a cabeça, soltando um suspiro dececionando, embora mantivesse um pequeno sorriso nos lábios. Arrumou o pano usado e pegou num pote de unguento.

— O teu nível de ingratidão é inacreditável. Eu estou a fazer o que posso para te oferecer um tratamento de qualidade superior e tu não paras de me insultar e ameaçar…

— E quem disse que eu precisava de tratamento? — volvi, empinando o nariz — Eu já tenho Maana suficiente para me curar, não preciso da tua ajuda!

— Preferes gastar a pouca Maana que tens para curar feridas que nem deveriam ter surgido para começo de conversa? — inquiriu o elfo, erguendo uma sobrancelha. Os últimos resquícios de divertimento desapareceram e o seu semblante voltou a ficar sério — Acredita, cuspideira, eu não estou a gastar os meus escassos recursos contigo por achar que mereces tratamento. Há muitos faeries nesta estalagem que precisam mais destes remédios do que a titânide idiota que se predispôs a ser espancada — recolheu um pouco de unguento com a ponta do dedo indicador e espalhou-o cuidadosamente sobre o corte no meu lábio — O único motivo por que estou a fazer isto é para secundar o processo de cura e tentar salvaguardar alguma da tua Maana. Sem ela, estaremos perdidos…

As suas palavras fizeram com que o conhecido sentimento de culpa voltasse a fincar as suas garras na minha caixa torácica, mas eu inspirei fundo até me libertar do aperto. Ezarel tinha razão, tratar dos cortes e equimoses no meu rosto não deveria ser uma prioridade quando havia faeries a recuperar de ferimentos bem piores debaixo daquele mesmo teto. Eu não precisava, contudo, de me sentir culpada por isso, porque havia a possibilidade de compensá-lo por aquele gasto ajudando no fabrico de novos remédios. Eu não percebia nada de alquimia, mas poderia trabalhar na recolha dos ingredientes, certo? Podia separar folhas e flores secas, esmagar grãos e sementes ou, na pior das hipóteses, recolher sangue de galinhas e cortar patas a sapos. Embora eu preferisse não ter de chegar a esse extremo…

— Pronto, terminei — a voz do Diretor da Absinto trouxe-me de volta à realidade, salvando-me da horrenda imagem de uma galinha decapitada. Estivera tão imersa no devaneio que nem me apercebera que Lithiel já me soltara.

— Oh… obrigada…

— Espero que tenhas aprendido a lição e não voltes a cometer este tipo de estupidez.

Eu limitei-me a acenar debilmente com a cabeça. Ezarel levantou uma sobrancelha, pouco convencido, mas acabou por se concentrar noutra coisa. Ou noutra pessoa…

— Agora tu, anda cá — ordenou, chamando Lee com o dedo.

A ninfa piscou os olhos, surpreendida, mas obedeceu. Aproximou-se com passos hesitantes e, assim que a teve ao seu alcance, Ezarel agarrou e torceu uma das suas longas orelhas.

— Au! — protestou Lee, tentando soltar-se — Diretor…! Ai!

— Quem é que te deu permissão para saíres da estalagem?

— A Alajéa! Au! Foi a Alajéa!

— O quê…?

— Ela deu-me alta e mandou-me sair da estalagem! Juro! Au!

Ezarel soltou enfim a orelha de Lee e ela recuou apressadamente dois ou três passos, esfregando a orelha vermelha como um tomate.

— Ela deu-te alta? — repetiu o Diretor da Absinto.

— Sim… Ela disse que o sangue do Nevra apressou a minha cicatrização e, por isso, não precisava ficar mais tempo em observação.

— Ah… estou a ver…

— A Alajéa não deveria ter dado alta ao Lee? — inquiriu Lithiel, desconfiada.

— N-não, não é disso que se trata — Ezarel apressou-se a explicar — Eu só não pensei que ele recuperasse tão depressa, por isso fiquei surpreendido quando não o vi no quarto.

— O Diretor Ezarel estava à minha procura? — admirou-se a ninfa.

— Sim, foi por isso que fui ao refeitório do acampamento. A Miiko pediu-me para te levar até ela com a maior brevidade possível.

— O quê? Porquê?

— Ela quer questionar-te sobre o que aconteceu no esconderijo do titã.

— A-ah… Então… tenho de ir vê-la agora?

Antes que Ezarel pudesse responder, a porta do pequeno laboratório abriu-se de rompante e Nevra surgiu na ombreira. O seu único olho passou por todos os presentes até se fixar em mim. Ele soltou um suspiro pesado, fechou os olhos e deixou cair a cabeça enquanto esfregava a testa com a ponta dos dedos.

— Eduarda — gemeu num meio murmúrio — Em que diabos estavas tu a pensar…?

— Estou a ver que as notícias continuam a circular depressa por aqui — comentou Ezarel em voz baixa. Ninguém lhe prestou atenção.

Nevra entrou por fim na divisão, vindo ajoelhar-se na minha frente. Ergueu as mãos como se pretendesse tocar-me no rosto, mas desistiu a meio do gesto, preferindo poisá-las nos meus joelhos.

— Bendita Chama, Eduarda, a tua cara… Dói muito?

— Não, nada.

— Não mintas…

— Eu usei um regenerador com efeitos analgésicos — revelou o Diretor da Absinto — Ela não deve sentir dores durante as próximas oito horas.

— Eduarda, porque é que deixaste a Twylda fazer-te isto? — inquiriu Nevra, ignorando completamente a intervenção do amigo — Fazes ideia de quão preocupado fiquei quando soube o que tinha acontecido?

— Não precisas de te preocupar— garanti, poisando a minha mão sobre a sua — Estou bem…

— Como queres que não me preocupe? A tua cara está da cor duma ameixa!

— Isso passa. Eu estou bem. Sinto-me bem. Agora, sinto-me bem.

Nevra mordeu nervosamente o lábio, parecendo estar a remoer a vontade de dizer alguma coisa, mas acabou por desistir com mais um suspiro.

— Não voltes a fazer isto, Eduarda — pediu num tom exigente, mas brando ao mesmo tempo — Não vou mandar prender a Twylda porque há testemunhas de que a autorizaste a espancar-te, mas se mais alguém se atrever a levantar a mão contra ti…

— Não te preocupes, Nevra, não vai voltar a acontecer — interrompeu Lithiel — Eu, o Lee e o Adonis não vamos deixar. Entendido, Eduarda? — lançou-me um olhar tão sinistro por entre as pestanas que senti um arrepio descer-me pela espinha. Limitei-me a assentir timidamente.

— Bom, agora que parece estar tudo resolvido, preciso de levar esse elfo à Miiko — anunciou Ezarel, apontando para Lee.

— Já? Agora? A-agora mesmo? Não pode ficar para mais tarde? É que… eu… eu ainda nem almocei! — lembrou a ninfa, soltando um risinho atrapalhado.

— Não precisas de te incomodar com isso, Ez — disse Nevra, levantando-se — Eu preciso de trocar uma palavrinha com o Lee, posso levá-lo à Miiko depois disso.

— Ah, certo, tudo bem. Isso vem mesmo a calhar, na verdade, assim terei tempo de preparar mais algumas poções…

— Nós vamos deixar-te à vontade, então — aprontou-se o vampiro, indicando a porta a Lee, Lithiel e Adonis. Eu aproveitei a breve distração dos outros para me aproximar do Diretor da Absinto.

— Hã… Ezarel?

— Sim?

— Eu… eu queria agradecer-te mais uma vez por tratares de mim e… queria saber se… posso fazer alguma coisa para te compensar? — murmurei, brincando nervosamente com os meus próprios dedos — Tipo, eu podia ajudar-te com os ingredientes para as poções ou…

— Não te preocupes com isso, cuspideira — cortou-me sem sequer me olhar, distraído a reunir alguns fracos e caixas de madeira — Eu consigo dar conta do recado sozinho.

— Presumo que sim, mas…

— Se realmente me queres compensar, concentra-te nos teus futuros treinos. Posso precisar de ti para me salvar o couro na próxima batalha — acrescentou com um pequeno sorriso torto.

Eu hesitei, sem saber se devia encarar as suas palavras com seriedade ou não. Como o elfo continuou a sorrir, acabei por fazer o mesmo e assentir levemente. Depois, despedi-me e deixei-o em paz.

Nevra e Lee estavam à minha espera no corredor, mas Lithiel e Adonis tinham desaparecido. Quando perguntei por eles, foi a ninfa quem me respondeu, coçando nervosamente a cabeça:

— Ah, eu… pedi à Lithiel para tirar o Adonis daqui para poder conversar à vontade com o Nevra. Ela decidiu aproveitar a oportunidade para ir buscar o nosso almoço…

— Oh… Nesse caso, devo ir com eles?

— Não, não te preocupes, podes ficar. O que quero falar com o Nevra não é nenhum segredo para ti…

— Vamos andando para casa do Prefeito — pediu Nevra, indicando as escadas no final do corredor com um gesto de cabeça — Se não nos apressarmos, a Lithiel voltará com a vossa comida antes de terminarmos a nossa conversa.

Lee concordou e liderou o caminho até à entrada da estalagem.

Circular pelas ruas cheias de faeries fora uma experiência bastante desagradável nos últimos dias, por isso não pude evitar uma pontada de apreensão no momento em que atravessei a porta para o exterior. Felizmente, não passou disso. Talvez se devesse à presença de Nevra, ou talvez se devesse à catarse da minha culpa, mas o medo dilacerante que sentia sempre que me cruzava com os faeries não se manifestou desta vez. Apesar dos olhares e sussurros dos faeries que me viam passar, consegui atravessar o largo diante da estalagem com passos firmes e com a cabeça erguida. Nem dois minutos depois, estávamos na casa do Prefeito.

Nevra levou-nos para o andar de cima, para o que parecia ser uma sala de espera situada imediatamente à esquerda das escadas. Uma das paredes fora substituída por um corrimão de madeira, criando uma pequena varanda que nos permitia ver o vestíbulo e a porta de entrada da casa. Havia um sofá de dois lugares, duas poltronas e uma pequena mesa de centro sobre um bonito tapete de arraiolos. O resto da decoração limitava-se a uma pintura de paisagem e alguns vasos com flores.

— Vamos conversar aqui? — inquiriu Lee ao ver Nevra sentar-se numa das poltronas — Não parece muito… privado — dirigiu um olhar duvidoso à pequena varanda.

— Não te preocupes com isso, ninguém nos irá ouvir — garantiu o vampiro — Não está ninguém em casa e, mesmo que chegue alguém entretanto, nós seremos os primeiros a saber. Está tudo bem…

Lee não parecia muito segura quanto àquele plano, mas foi acomodar-se no sofá. Eu sentei-me ao lado dela, sentindo-me tão inquieta quanto a ninfa, que não parava de mordiscar o lábio e brincar com os próprios polegares.

— O que… querias falar comigo? — acabou por perguntar ao vampiro com uma voz acanhada. Ele inclinou a cabeça ligeiramente para o lado.

— Não eras tu que querias falar comigo?

— Sim, mas… tu disseste ao Ezarel que precisávamos de trocar uma palavrinha comigo…

— Ah, isso? Foi só uma maneira de o impedir de te levar à Miiko.

— Oh… certo. Obrigado…

— Mas espero que saibas que não vou poder salvar-te eternamente — acrescentou Nevra — A Miiko está decidida a interrogar-te e, quanto mais a evitares, mais desconfiada ela irá ficar. O melhor seria deixares-me levar-te até ela, como eu disse ao Ezarel que faria.

— Ela vai obrigar-me a beber elixir da verdade?

— Não sei. Talvez…

Lee levou a mão à boca, começando a roer a unha do polegar.

— Não posso ser interrogado com elixir da verdade… e acho que sabes porquê.

— Sei? — inquiriu o vampiro, fazendo-se de desentendido.

Lee soltou um estalido arreliado com a língua e levantou-se. Deu cinco passos, rodou sobre os calcanhares e percorreu outros tantos passos em sentido contrário. Fez esse percurso algumas vezes, sem parar de roer as unhas, até estacar diante do vampiro, com os punhos na cintura.

— Há quanto tempo sabes que sou uma rapariga? — perguntou de rajada, possivelmente para evitar que a sua voz tremesse. Ela quase foi bem-sucedida…

Nevra abriu um pequeno sorriso enigmático.

— Praticamente desde o início.

— Como… como é que descobriste? — murmurou Lee, estarrecida.

O sorriso de Nevra alargou-se.

— Como descobri? Eu é que te devia perguntar como achaste que poderias esconder isso de mim.

— Estás a dizer isso por seres um mulherengo?

— Não! — exclamou Nevra, com o que me pareceu ser um leve rubor nas bochechas — Estou a dizer isto porque sou um vampiro e o Mestre da Sombra! Devias saber que não sou assim tão facilmente enganado por disfarces!

— Contaste a mais alguém? — inquiriu Lee, inquieta — Ou sabes de mais alguém que tenha percebido que… não sou um homem?

— Não, não contei a ninguém. Sei que um ou dois dos melhores agentes da Sombra também perceberam a tua mentira, mas eles concordam comigo em como não há necessidade de tornar a informação pública. Podes ficar descansada quanto a isso.

— De certeza?

— Absoluta. Confia em mim.

Lee assentiu levemente, embora não parecesse estar convencida. Levou novamente a mão à boca, desta vez para roer a unha do mindinho.

— Porque é que nunca me denunciaste? — inquiriu num quase murmúrio.

— Que sentido teria denunciar-te? — volveu o vampiro, encolhendo os ombros — Não é como se estivesses a roubar a identidade de outra pessoa ou a lesar alguém ou a Guarda. No máximo, serias punida por entrares na casa de banho dos homens enquanto eles se lavavam, mas eu sei que nem isso fazes.

— C-como sabes que…? — Lee estava tão surpreendida que a voz a abandonou a meio da pergunta. O canto da boca de Nevra estremeceu como se estivesse a tentar conter um sorriso.

— Ora, Lee, não me podes culpar por ficar curioso sobre o motivo que te levou a mentir…

— Tu espiaste-me?!

— Só durante alguns dias.

Lee ficou a abrir e fechar a boca, gesticulando com o dedo indicador espetado no ar como se quisesse dar um raspanete ao vampiro, mas nem soubesse por onde começar. Antes que ela pudesse escolher as palavras, a porta de entrada da casa abriu-se e ouvimos as vozes de Lithiel e Adonis no vestíbulo. Nevra levantou-se e debruçou-se sobre a varanda para chamá-los. Eles não demoraram a surgir no topo das escadas, trazendo, cada um, duas tigelas de guisado nos braços.

— Entrega ao domicílio — anunciou Lithiel, deixando uma das tigelas sobre a mesa de centro antes de se ir sentar na poltrona que Nevra acabara de desocupar. Entretanto, Adonis veio sentar-se ao meu lado no sofá, estendendo-me uma tigela com um pequeno sorriso.

— Só trouxeram quatro? — estranhei — Nós somos cinco…

— Eu disse à Lithiel para não trazer para mim — revelou Nevra, cruzando os braços e apoiando as ancas contra o corrimão da varanda — Eu almocei mais cedo. A propósito, Lithiel, como estão as coisas lá fora?

A doppelganger encolheu os ombros antes de pegar na colher de madeira que vinha dentro da tigela.

— Agitadas, mas não me parece que seja no mau sentido — enfiou uma colher de guisado na boca — Os faeries ficaram bastante impressionados com a proeza da Eduarda e as opiniões dividem-se entre aqueles que estão dispostos a acreditar que ela realmente se sente mal pelo que aconteceu em Eel e aqueles que acham que tudo não passou de uma farsa para ganhar simpatia e compaixão.

— E a Twylda?

— É a nova heroína do acampamento. Ouvi dizer que os faeries que assistiram ao espetáculo quase fizeram fila para felicitá-la depois que saímos de lá. Mas ela já não estava na cozinha quando eu e o Adonis fomos buscar a comida e nenhuma das pessoas que interpelei me quis dizer onde ela estava ou porque tinha ido embora. Imagino que eles não confiem muito em mim depois de me terem visto defender a Eduarda…

Nevra soltou um pequeno “hum” pensativo e Lithiel aproveitou a oportunidade para atulhar a boca com mais algumas colheres de guisado. Eu decidi seguir o seu exemplo, concentrando-me na tigela que permanecia intocada no meu colo. A minha cara inteira doeu quando abri a boca para passar a comida e mastigar foi uma autêntica tortura, mas cerrei o punho no cabo da colher e obriguei-me a continuar. A minha prioridade no momento era recuperar as minhas forças…

— A propósito, Nevra — chamou Lithiel ao fim de alguns minutos — Eu, o Lee e o Adonis decidimos formar uma escolta para tentar manter a Eduarda segura e longe de problemas. Tenho de admitir que a nossa primeira contrariedade não terminou da melhor forma, mas vamos fazer melhor daqui em diante. O que te parece?

— Parece-me bem. Não é boa ideia deixar a Eduarda sozinha.

— Se te quiseres juntar a nós, estás à vontade — acrescentou a doppelganger como quem não queria a coisa. O vampiro fez um pequeno trejeito com a boca.

— Eu gostaria de fazer parte da escolta, mas, de momento, não tenho disponibilidade. Tenho muito trabalho a fazer…

Lithiel levantou uma sobrancelha espantada.

— Sério? Então, o que estás a fazer aí especado a olhar para a Eduarda?

Nevra desviou o olhar e endireitou os ombros enquanto aclarava discretamente a garganta.

— Eu estou à espera que vocês terminem de comer para saber se devo ou não levar o Lee até à Miiko.

— Eu achava que tinhas mentido ao Ezarel justamente para desviar o Lee do interrogatório da Miiko.

— Sim, mas nós conversamos e eu sugeri ao Lee ir ver a Miiko agora, antes que ela fique mais desconfiada. E tu não me chegaste a dar uma resposta, Lee — acrescentou o vampiro na direção da ninfa.

Lee, sentada na segunda poltrona, engoliu em seco e esticou-se para poisar a sua tigela vazia na mesa de centro.

— O que é que a Miiko quer saber? — perguntou em voz baixa.

— Ela quer saber o que viste e ouviste enquanto estiveste no esconderijo do titã, para tentar encontrar alguma pista sobre os seus próximos planos.

Lee inspirou profundamente.

— Se for só isso, então está tudo bem. Vai ser um desperdício de tempo e de elixir, porque não vi ou ouvi nada que a possa ajudar, mas…

— Ah, ela provavelmente também vai querer saber porque consegues ver os seres elementais — cortou Nevra de súbito.

A ninfa empalideceu visivelmente.

— Como… é que a Miiko sabe disso?

— Eu contei-lhe — admitiu Nevra — Tive de lhe contar a verdade depois de ela descobrir que eu te tinha levado e à Lithiel para fora do quartel no dia em que desapareceram. Desculpa. Eu não pensei que fosse importante…

Lee não respondeu. Simplesmente enterrou o rosto nas mãos trémulas, branca como um cadáver.


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