Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 72
LXX




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Sentei-me de repente, com o corpo banhado em suor e um grito preso na garganta. Escancarei os olhos, ansiosa por descobrir que nada do que vira era real, mas as imagens continuavam a flutuar diante de mim, como se estivessem gravadas na minha retina. Desorientada, desesperada e completamente aterrorizada, comecei a tatear em meu redor, procurando saber onde estava, procurando uma forma de sair dali… mas o que encontrei foi um corpo firme e quente.

— Eduarda? — tartamudeou uma voz masculina ensonada.

O meu cérebro demorou alguns milésimos de segundo a assimilar e reconhecer a voz.

— Nevra… — sussurrei, sendo percorrida por uma onda de alívio tão forte que fiquei tonta. Comprimindo os lábios enquanto lutava contra as lágrimas, amarfanhei a roupa do vampiro entre os dedos, querendo certificar-me de que ele era real.

— Eduarda? — repetiu ele, mexendo-se por baixo das minhas mãos, parecendo estar a virar-se para mim — O que é que se passa? Estás… estás a chorar?

O nó na minha garganta era demasiado grande para conseguir falar, por isso, sacudi rapidamente a cabeça. Só depois me lembrei que estávamos mergulhados na escuridão e ele não me conseguia…

— Estás, sim, tens lágrimas nos olhos, nem tentes negar — acusou ele antes de a sua mão deslizar pela lateral do meu rosto, passando o polegar pelas minhas pestanas húmidas — O que é que se passa?

— Tu… consegues ver-me? — murmurei, perplexa.

Nevra soltou um risinho baixo e suave que, no meio do negrume, soou perdidamente sensual.

— Que tipo de predador seria eu se não tivesse uma visão noturna perfeita? Mas não respondeste à minha pergunta — lembrou, adotando um tom mais sério — O que aconteceu para estares a chorar?

Eu funguei levemente.

— Foi só… um pesadelo…

— Hum… Queres contar-me esse pesadelo?

Sacudi levemente a cabeça.

— Não, nem por isso…

— Far-te-ei bem.

— Talvez… ou talvez não…

— Tem… algo a ver com o que aconteceu em Eel?

Eu trinquei o lábio inferior com força, enquanto os meus olhos se enchiam de novas lágrimas. Era assim tão óbvio? Tão previsível…?

— Está tudo bem — murmurou o vampiro, envolvendo os meus ombros com as mãos e puxando-me para si — Vem cá… Está tudo bem…

— Não, não está — neguei com voz chorosa, soltando-me dele — O Chrome… o Chrome não está bem. A Eweleïn não está bem. O Kero, aquele fauno mal-humorado… Nenhum deles está bem…

Nevra soltou um suspiro quase inaudível, mas não disse nada. Limitou-se a poisar novamente as mãos nos meus ombros e a puxar-me contra o seu peito. Eu deixei-me ir desta vez, enroscando-me no seu corpo enquanto sentia a sua mão afundar-se no meu cabelo, tecendo carícias que, noutra altura qualquer, me teriam feito derreter que nem manteiga. Naquele momento, contudo, não conseguiam sequer aliviar o nó que me estrangulava.

— Quem me dera voltar atrás no tempo, Nevra…

— Não penses assim…

— Como queres que pense, então?

— Não sei, Eduarda, mas não podes ficar a remoer o passado dessa forma. Não te faz bem. Precisas de pensar noutras coisas, desanuviar a cabeça, esquecer por um bocadinho…

— Se fosse assim tão simples…

Nevra soltou um pequeno “humm” pensativo.

— Por acaso, até há uma forma bastante simples.

— E qual seria?

— Cinco ou seis canecas de hidromel — revelou o vampiro com um risinho divertido. Eu franzi levemente o sobrolho.

— Isso é suposto ser uma piada?

— Sim. Resultou? — inquiriu com um sorriso na voz.

— Não, nem um bocadinho.

— Ah… É uma pena — murmurou o Mestre da Sombra, encostando o nariz ao topo da minha cabeça — Achei mesmo que te poderia fazer rir com essa…

— Boa sorte — resmunguei baixinho.

— Posso sempre recorrer ao velho método das cócegas…

— Não te atrevas — atalhei num tom de aviso — Dou-te um pontapé nas canelas se me fizeres cócegas.

Nevra riu-se suavemente, apertando-me mais contra si e esfregando o nariz no meu cabelo.

— Hum… O teu cheiro está a voltar ao normal — comentou num murmúrio.

— E isso… é bom?

Ele inspirou profundamente antes de soltar o ar com um pequeno suspiro satisfeito.

— É fantástico… mas muito problemático.

— Porquê?

— Porque vai tornar muito mais difícil cumprir a promessa de não te encostar um dedo.

— Ah… Deves estar a falar dos dedos dos pés, então, porque os das mãos estão todos em cima de mim neste preciso momento.

Nevra atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada que fez um arrepio quente subir-me pela espinha e acomodar-se na minha nuca. Céus, o riso dele… era como um bálsamo para mim…

— Oh, meu bombom… Isto não está sequer perto do que eu considero encostar um dedo. Acredita…

Eu comprimi os lábios numa linha fina, tentando controlar as minhas emoções e reações. A vontade de desafia-lo a dar-me um exemplo do que ele entendia por “encostar um dedo” estava bem na ponta da minha língua… mas a culpa que me atormentava não demorou a relembrar-me que eu não me podia deixar levar por aquele tipo de impulso. Não importava o quanto gostava de Nevra. Não importava o quanto queria estar com ele. Eu não era digna dele…

— Já está a amanhecer — queixou-se Nevra, apertando-me mais contra si —, mas não me apetece nada levantar. Preferia passar o resto do dia aqui, contigo…

— O que te impede?

Nevra soltou o que pareceu ser um risinho atrapalhado.

— Muitas coisas, na verdade. Eu… descuidei-me um pouco dos meus deveres nos últimos dias, então, tenho bastante trabalho para compensar. A Miiko e a Huang Hua também vão precisar de mim para organizar a viagem até Nuum, por isso… acho que não nos voltaremos a ver até ao cair da noite.

— Oh — fiz, sentindo-me subitamente desanimada — Então…

— Então o quê? — insistiu o vampiro quando eu não prossegui.

— N-nada, estava só a pensar… no que poderei fazer para passar o tempo.

— Podes fazer o que quiseres. Eu até te convidaria a vir comigo, mas… bem…

Eu torci levemente a boca quando entendi onde ele pretendia chegar.

— Pois… Os faeries…

— O problema não são só os faeries — Nevra apressou-se a dizer — Aliás, os faeries já nem sequer deveriam ser um problema. Tu estás do nosso lado agora e eles terão de se habituar à ideia mais cedo ou mais tarde. O que me preocupa é que estás ferida e o meu dia deverá ser passado a correr de um lado para o outro. Não quero que te esforces desnecessariamente.

— Hum…

— Porque não vais visitar o Lee? — continuou o vampiro — Ele também deve estar bastante aborrecido, trancado naquele quarto. Vocês poderiam fazer companhia um ao outro.

— Oh… Boa ideia. Vou-me vestir, então — aprontei-me, sentando-me e procurando a borda da cama.

— Já? O Lee não deve estar acordado a esta hora…

— Não faz mal, eu não me importo de esperar — asseverei, saindo da cama. Estaquei quando me lembrei que estava no meio da escuridão — Hã… Luz…

— Espera, eu vou abrir a janela.

Ouvi um suave sussurrar de tecido e senti Nevra passar reste a mim. Pouco depois, ouvi o barulho de um trinco e a pálida luz do amanhecer entrou no quarto… incidindo principalmente sobre o vampiro ilegalmente atraente.

Embaraçava pelos meus próprios pensamentos, apressei-me a murmurar um agradecimento, peguei na minha roupa e escondi-me atrás do biombo. Obrigando-me a pensar noutra coisa que não fosse Nevra enquanto me trocava, acabei por me lembrar do final atribulado da minha conversa com Lee no dia anterior.

Pesadelo à parte, parecia que a noite de sono realmente servira para aclarar as minhas ideias, permitindo-me encarar a situação de forma mais ponderada e racional. O medo de ser repudiada por Lee permanecia, mas, ao mesmo tempo, sentia um certo alívio por poder ser eu a contar-lhe o que acontecera em Eel. Isso não só me permitiria explicar devidamente o meu lado da história, como me daria uma oportunidade para me desculpar pelos erros que cometera. Não tinha maneira de saber se isso seria o suficiente para impedir que Lee me odiasse, mas com certeza seria melhor do que deixá-la ouvir primeiro o relato parcial e repleto de rancor dos faeries…

Nevra aproveitara a divisão do biombo para trocar de roupa ao mesmo tempo que eu, portanto, estávamos ambos prontos para sair assim que emergi detrás do dito. Percorremos o corredor e descemos as escadas lado a lado, mas eu hesitei e abrandei o passo quando poisei os olhos na porta que levava ao exterior. Um nó de ansiedade e nervosismo apertou a minha garganta, mas cerrei os dentes e os punhos e continuei a avançar. Estava tudo bem… Eu estava com o Mestre da Sombra, por isso estava tudo bem. Ninguém se atreveria a levantar a mão contra mim enquanto estivesse com ele, por isso, não valia a pena entrar em pânico. Talvez nem encontrássemos ninguém na rua! Era muito cedo, a maioria dos faeries deveria estar ainda a dormir. Estava tudo bem…

Fiz o melhor que pude para manter a calma quando meti o primeiro pé fora de casa. Baixei o rosto, deixando que uma cortina de cabelo o cobrisse, e concentrei-me no que realmente importava. Respirar lenta e profundamente. Dar um passo de cada vez. Repetir incessantemente que estava tudo bem. Estava tudo bem. Estava tudo bem…

Primeiro, vi as botas. Dois pares delas, virados de frente um para o outro. Depois, ouvi o murmúrio de uma conversa a duas vozes… as quais se silenciaram por completo quando eu e Nevra nos aproximámos. E, de repente, mesmo sem levantar a cabeça, senti os olhares sobre mim. Sentia a sua raiva, o seu rancor, a sua repulsa, como um manto pesado e quente que me curvava os ombros e transpirava as costas. Eles estavam a olhar para mim. Eles tinham-me reconhecido. Eles…

Estremeci e encolhi-me quando senti um braço rodear os meus ombros. Um guincho alarmado subiu disparado pela minha garganta, mas consegui segurá-lo no último instante, quando percebi que era apenas Nevra a apoiar-me. Eu aceitei o amparo de bom grado, chegando-me mais ao vampiro e agarrando-me a ele como se fosse uma boia salva-vidas. Queria poder refugiar-me no seu peito e desaparecer para sempre…

A chegada à estalagem foi um alívio tão grande como retornar à tona da água depois de quase morrer afogada. O átrio estava deserto e eu estava finalmente longe dos olhares funestos dos faeries, mas, mesmo assim, não conseguia soltar a mão que fechara nas costas da camisa de Nevra. Ele também não fez qualquer gesto no sentido de me obrigar, preferindo simplesmente colocar-se na minha frente. No processo, o meu braço acabou por circundar a sua cintura.

— Oh, Eduarda… Odeio ver-te assim — murmurou o vampiro, afastando delicadamente o cabelo do meu rosto — Há alguma coisa que eu possa fazer para tirar esse medo dos teus olhos? Há alguma maneira de trazer de volta a menina que nunca hesitou em fazer frente a tudo e todos?

Eu engoli nervosamente em seco, perguntando-me o mesmo. Haveria alguma maneira de me livrar daquela culpa e daquele medo e voltar a ser a pessoa que era antes? A Eduarda determinada e destemida que sabia o que queria e que não tinha medo de enfrentar os problemas? Ou essa Eduarda continuaria a parecer-me outra pessoa, completamente diferente e exterior a mim, até ao fim dos meus dias…?

— Não chores — pediu Nevra, limpando a lágrima que eu nem percebera que soltara — Já disse que não quero mais ver-te chorar. Já chega…

Eu quase revirei os olhos.

— Se te incomoda, posso ir chorar para um canto escondido da próxima vez — propus, ressentida, arreliada e um pouco magoada. Será que ele não entendia…?

Para minha surpresa e indignação, o vampiro abriu um sorriso antes de envolver o meu rosto com as mãos e depositar um beijo na minha testa.

— Isso mesmo — elogiou num murmúrio — É essa a Eduarda que quero de volta. Resmungona…

Abri a boca para protestar, mas Nevra cortou-me a palavra com um risinho e um novo beijo na testa, mesmo entre as sobrancelhas. O contacto durou um pouco mais que o anterior e, misteriosamente, evaporou toda a minha irritação e a maior parte dos meus pensamentos. Ficaram apenas os que notavam quão quente era o corpo do vampiro. Quão macios eram os seus lábios. Quão bem ele cheirava…

Tive de conter um gemido de protesto quando Nevra terminou o beijo. Tive de conter outro, por motivos completamente diferentes, quando ele inclinou a minha cabeça e traçou uma linha de beijinhos desde a minha testa até à ponta do meu nariz. Demorou-se um pouco mais aí, para um beijo mais profundo, e o meu coração começou a bater com mais força com o pensamento de que o próximo seria na minha boca. Estava fora de questão não haver um próximo…

Nevra não precisou de terminar de inclinar a minha cabeça quando os seus lábios abandonaram o meu nariz. Eu fi-lo sozinha, fechando os olhos e oferecendo-me sem reservas. O vampiro soltou o ar com um sopro trémulo e quente que eu senti nos meus próprios lábios, deixando-me ainda mais ansiosa. Ele estava tão perto que eu só teria de me esticar um pouco para alcançar a sua boca. Mas, justamente quando me cansei de esperar e me ia colocar em bicos de pés… Nevra afastou-se.

— Desculpa — murmurou com voz enrouquecida antes de aclarar a garganta e afastar-se ainda mais — É melhor… é melhor ir andando. Tenho muito trabalho para por em dia. E tu deves estar ansiosa por ver o Lee — esfregou nervosamente as mãos, como se não soubesse o que fazer ou dizer, até se lembrar que estava de saída. Deu alguns passos a caminho da porta, mas estacou e virou-se novamente para mim — Vou dizer ao Adonis para vir ter contigo mais tarde, pode ser?

Eu anuí com um pequeno aceno e um pequeno sorriso de lábios apertados, porque a minha garganta estava demasiado apertada para falar. Nevra imitou o meu aceno e retomou o seu caminho, saindo da estalagem. Eu fiquei ali, parada no meio do átrio, confusa e devastada.

Porque é que Nevra recuara? Ele parecia querer aquilo tanto como eu, então… porque parara? A única resposta que me ocorria… era que o vampiro se lembrara do que eu fizera. Ele lembrara-se de todas as pessoas que perdera por minha causa e concluíra que beijar-me seria o mesmo que trair à memória delas. O que, pensando bem, não estava assim tão longe de ser verdade…

Talvez fosse melhor assim. Eu não era digna de Nevra; não era digna de desfrutar de qualquer tipo de carinho e apoio da parte dele. O Mestre da Sombra já estava a dar-me muito mais do que eu merecia e fora um erro deixar-me levar pelos meus sentimentos daquela forma. Um erro que não poderia voltar a cometer…

Sentindo-me subitamente esgotada, dei meia volta e comecei a subir as escadas até ao quarto de Lee. Bati suavemente à porta, chamando a ninfa, mas não houve resposta. Presumi que ela ainda estava a dormir e decidi esperar que acordasse ali mesmo, no corredor. Estava prestes a sentar-me no chão quando ouvi uma porta abrir algures. Um pouco mais ao fundo do corredor, uma grande figura de cabelos brancos compridos saiu a cambalear de um dos quartos. Parecia uma múmia gigante, com gaze enrolada no tronco, gesso no braço amarrado ao peito e pequenos curativos espalhados um pouco por todo o corpo. Um homem com roupas orientais estava debaixo do seu outro braço, apoiando-o com dificuldade.

— Só vamos… até ao final do corredor — dizia o homem por entre os dentes cerrados de esforço — Depois… vai voltar para a cama… sem refilar, Comandante…

— Valkyon? — chamei antes de me conseguir conter. O gigante de cabelo branco ergueu o olhar para mim, confirmando as minhas suspeitas.

— Eduarda — reconheceu com a sua típica voz baixa e monótona — O que fazes aqui?

— Vim visitar o Lee.

— Estás sozinha?

— Sim — respondi depois de uma pequena hesitação, estranhando a pergunta — Porquê?

Valkyon não respondeu de imediato, mirando-me demoradamente, de uma forma que me deu calafrios.

— Não me parece prudente deixar a titânide que quase nos destruiu sem vigilância… mas imagino que já tenhas dado a volta ao Nevra.

As suas palavras atingiram-me como um murro no estômago, tão forte que me trouxeram o sabor da bile à boca.

— Eu… não dei a volta ao Nevra…

Valkyon soltou um pequeno soluço de desdém.

— O empenho dele em defender-te prova o contrário. Diz-me, com o que é que o compraste? Sangue? Sexo? Ambos? Ou decidiste seguir o exemplo do teu irmão e batizaste a comida dele com uma poção do amor?

— N-não, claro que não! Eu jamais faria isso! Eu nunca sequer pedi ao Nevra para me defender, ele…!

— É o talento dos bons manipuladores — cortou-me o Comandante da Obsidiana — Induzir os outros a fazer o que eles querem sem sequer ter de pedir.

— N-não… isso…

Valkyon virou-se para o homem que o segurava antes de eu puder terminar de me defender.

— Perdi a vontade de caminhar. Podes levar-me de volta à cama.

E, lançando-me olhares de puro ódio, os dois homens voltaram a entrar no quarto. Eu fiquei parada no corredor, tremendo sem controlo enquanto um frio estranho partia da boca do meu estômago.

Era aquilo que os faeries pensavam? Que eu tinha manipulado Nevra? Eles realmente achavam que eu era esse capaz disso? Que era esse tipo de pessoa? Os meus olhos encheram-se de lágrimas quando me ocorreu que os faeries não me consideravam sequer uma pessoa. Para a maioria deles, eu era só a titânide traiçoeira que os fizera cair em desgraça. Eles não viam em mim nada além disso…

Um suave pigarrear fez-me levantar o olhar do chão. O homem que apoiara Valkyon estava de volta, olhando-me como se estivesse a tentar enforcar-me com a força da mente.

— Lamento, mas tens de sair daqui.

— O-o quê? Porquê?

— Porque, como pudeste ver, a tua presença exalta os pacientes e com certeza irá distrair os enfermeiros.

— Mas… eu vim visitar o Lee…

— Nesse caso, porque estás parada no meio do corredor?

— Estou à espera que ele acorde.

— Espera dentro do quarto. Ou noutro sítio qualquer, não me interessa. Aqui é que não podes ficar — ditou antes de ir embora.

Eu soltei um trémulo suspiro desalentado. Definitivamente, aquele não era o meu dia…

Decidi seguir a “conselho” do enfermeiro para evitar mais chatices e entrei cautelosamente no quarto de Lee. A divisão estava imersa na semiobscuridade, iluminada pelo fino fio de luz que passava sorrateiramente por baixo das cortinas, por isso não tive qualquer dificuldade em chegar ao cadeirão no canto. Sentei-me, mas não tardei a aborrecer-me. Não tinha nada para fazer ali, além de mergulhar nos meus próprios pensamentos ou observar a ninfa adormecida. A primeira opção com certeza me conduzir à loucura em poucos minutos e a segunda fazia-me sentir uma tarada arrepiante, por isso, optei por mudar de posto e fui sentar-me na cadeira junto à janela. Afastei um pouco as cortinas, apenas o suficiente para poder espreitar o lado de fora, e fiquei a ver a vila despertar.

Estava ali há mais de uma hora quando um par de batidas na porta fez Lee revirar-se entre as cobertas. Sem esperar por resposta, uma rapariga de cabelos azulados e barbatanas nas orelhas entrou no quarto. Eu já a vira antes. Era a rapariga que me encontrara escondida atrás de um arbusto no parque, quando eu me tentara esconder de Nevra.

— Oh — fez ela ao ver-me — Estás aí.

Eu limitei-me a assentir. A rapariga mirou-me por uns instantes, como se eu fosse uma ratazana de esgoto ou assim, antes de decidir ignorar-me a aproximar-se da paciente.

— Lee? Acorda, é hora de mudar os pensos.

A ninfa resmungou qualquer coisa, muito baixinho.

— Não, está mais que na hora de acordar. Senta-te para poder mudar o penso no teu nariz.

Lee resmungou mais qualquer coisa e a rapariga fez uma expressão confusa.

— Não cheira a nada aqui. Vá, senta-te.

A ninfa suspirou e remexeu-se até conseguir sentar-se, esfregando um olho ensonado. O outro olho fixou-se diretamente em mim, como se já soubesse que eu estava ali.

— Ah… és tu, Eduarda — constatou antes de deixar escapar um pequeno bocejo que relevou as presas afiadas — Bom dia…

— Bom dia…

— Deixa-me mudar o penso no teu nariz — insistiu a rapariga com barbatanas, impaciente, abrindo a pequena sacola que trazia à cintura.

— Quem és tu? — volveu Lee com mais um resmungo — Onde está o Diretor Ezarel?

— O Ezarel está ocupado a tratar de outros pacientes, por isso pediu-me para cuidar de ti. O meu nome é Alajéa.

Lee franziu levemente o sobrolho, desagradada com a notícia, mas estava demasiado ensonada para protestar. Teve de ser contentar em fazer uma pequena careta emburrada e deixar que a sua nova enfermeira tratasse dela. A tal Alajéa trocou os pensos no nariz e no braço de Lee, lançou-me mais um olhar mortífero e, sem dizer uma única palavra, foi-se embora.

— Conheces a criatura? — inquiriu a ninfa em voz baixa, apontando com o polegar para a porta que a rapariga com barbatanas acabara de atravessar.

— De vista. Porquê?

Lee encolheu levemente os ombros.

— Achei estranho. Ela estava com cara de quem te queria arrancar a traqueia.

Eu soltei um pequeno suspiro desanimado.

— Provavelmente queria mesmo…

— O quê? Porquê?

Soltei mais um suspiro antes de me levantar e ir sentar na borda da cama de Lee. Fixei o olhar nas minhas próprias mãos, caídas no meu colo.

— Lembraste de… me teres perguntado se aconteceu alguma coisa em Eel?

— Sim.

— A verdade é que… aconteceu… Eu… eu…

A minha voz quebrou-se e os meus olhos encheram-se de lágrimas enquanto eu tentava, sem sucesso, empurrar as palavras para fora de mim. Lee esticou uma mão e poisou-a no meu ombro.

— Foi o teu irmão? — perguntou num tom brando.

Eu comprimi os lábios… e sacudi a cabeça.

— Não… não foi ele. Fui eu…

Lee limitou-se a olhar-me, como uma imagem congelada.

— O que… o que queres dizer com isso?

Soltei o enésimo suspiro do dia.

— Quero dizer que… a culpa do que aconteceu em Eel… é minha. Fui eu… fui eu quem baixou os escudos da cidade e deixou o Ashkore entrar. Eu… não sei porque o fiz, honestamente. Olhando para trás agora, parece-me uma grandessíssima estupidez, mas… na altura… na altura parecia ser a coisa certa…

— Espera, então… ele não te ameaçou para o fazeres?

Trinquei o lábio inferior com força antes de sacudir negativamente a cabeça. A mão que Lee mantinha no meu ombro escorregou lentamente de volta ao colchão.

— Porquê? — murmurou, muito baixinho — Porque é que o fizeste, Eduarda?

— Eu não sei — admiti com a voz embargada, sentindo-me sufocar enquanto tentava conter os soluços — Eu não sei, Lee, só me lembro… só me lembro de estar disposta a tudo para fazer o Ashkore feliz. De morrer de medo de desapontá-lo — engoli em seco, sem coragem de levantar o olhar das minhas mãos — Não sei se isso… explica ou justifica os meus atos, mas… os outros têm esta teoria de que o Ashkore me deu uma poção do amor e…

A ninfa cortou-me com uma sonora exclamação de alívio, revirando levemente os olhos antes de me lançar um olhar reprovador.

— Caramba, Eduarda, não voltes a assustar-me assim. Já estava aqui a pensar que o teu irmão te tinha virado o cérebro do avesso! Afinal, foi só uma poção do amor… Ufa…

Eu pisquei os olhos algumas vezes, surpreendida.

— Não… não estás zangada comigo?

Lee inclinou a cabeça para o lado, confusa.

— Porque estaria zangado contigo?

— Eel está destruída por minha causa. Um monte de gente morreu por minha causa.

— Isso não foi culpa tua, Eduarda — negou Lee, abrindo um pequeno sorriso compadecido e compreensivo — Pode ter sido o teu corpo a praticar os atos, mas a mente que os comandava… não era a tua. Talvez tu e os outros faeries tenham dificuldade em entender a diferença, mas, para mim, que cresci a ouvir histórias de como Úrano e Gaia costumavam subjugar a nossa consciência… é perfeitamente claro.

— A minha consciência não foi subjugada…

— Claro que foi. O feitiço acorrentou a tua mente à ideia de que estavas apaixonada pelo teu irmão e silenciou os pensamentos que lhe eram contrários, condicionando todos os teus pensamentos. Tu podes até acreditar que estavas no controlo das tuas escolhas naquela altura… mas não estavas. Era mera ilusão. Tu nunca tomaste a decisão de atacar e destruir Eel, Eduarda. Foi o teu irmão quem a tomou por ti quando te deu aquela maldita poção.

Eu limitei-me a olhar para Lee, abalada pelas suas palavras. Nevra também dissera que a Eduarda que provocara aquela catástrofe não era eu, mas… seria mesmo verdade? Poderia realmente entender a situação daquela forma e acreditar que a culpa não era minha? Isso não seria antes uma forma de fugir da minha responsabilidade naquilo tudo…?

— Quanto tempo passou desde a desintoxicação? — perguntou Lee, curiosa.

— Dois dias…

— É normal que estejas confusa, então. Chegaste a descobrir como ou quando é que o teu irmão te deu a poção?

Eu assenti e sorvi um pequeno fôlego de coragem antes de iniciar o relato. Contei-lhe tudo, desde as vésperas da ida à Terra até ao momento em que acordara ali, e, à medida que as palavras me saiam da boca, ia-me dando conta de como o meu comportamento se tornara cada vez mais estranho… Lee ouviu-me atentamente, interrompendo apenas para pedir mais detalhes ou para insultar o titã.

Já se tinham passado horas quando terminei e os nossos estômagos roncavam escandalosamente. Eu estava a ponderar arriscar sair do quarto para pedir comida a um enfermeiro quando ouvimos três suaves batidas na porta. A ninfa deu licença para entrar e Adonis espreitou timidamente para o interior.

— O-olá, bom dia… Posso… posso fazer-vos companhia?

— Bom dia, Adonis! — exclamou Lee, abrindo um grande sorriso — Claro que podes, entra! Mas podemos pedir-te um favor antes?

— C-claro. Do que precisam?

— Eu e a Eduarda estamos a morrer de fome. Será que podias trazer qualquer coisa para comermos?

— Oh… O pequeno-almoço não foi o suficiente?

— Nós não tomámos o pequeno-almoço…

— O quê?! M-mas…! Os enfermeiros serviram o pequeno-almoço há mais de uma hora!

— Espera, é suposto eles fazerem isso? Eles deixaram-nos de fora?! — revoltou-se a ninfa, franzindo o sobrolho.

— Ah — fiz, abrindo um sorriso triste — Desculpa, Lee, acho que a culpa é minha…

— O quê? Porquê?

— Os enfermeiros não devem querer aproximar-se de mim…

— Isso… i-isso é ridículo! — disse Adonis, com as bochechas coloridas de vermelho — Não há nenhuma razão para eles te evitarem, m-muito menos deixar-vos passar fome! Eu vou falar com o Nevra, isto não…!

— Adonis! — chamei quando o rapaz se preparava para dar meia volta — Eu… preferia que não contasses nada disto ao Nevra.

— O quê? Porquê?

Porque não queria dar mais motivos aos faeries para acreditar que estava a manipular o Mestre da Sombra, mas é claro que jamais lhe diria isso.

— Não acho que valha a pena incomodá-lo com esse assunto — murmurei, baixando o olhar — Não é assim tão grave… e tu estás aqui agora para resolver o problema, então… não vale a pena.

O canto da boca de Adonis descaiu, pouco convencido, mas acabou por assentir.

— Tudo bem… mas, mesmo assim, temos de falar com alguém para que isto não se repita!

— Não, deixa estar. Honestamente, prefiro que sejas tu a trazer a nossa comida. Sinto-me… mais segura se fores tu.

O centauro adotou lentamente a cor de um tomate maduro.

— Bem… N-nesse caso… Eu… eu v-vou buscar o vosso pequeno-almoço — anunciou o pequeno, saindo rapidamente do quarto. Lee virou-se para mim assim que ele desapareceu.

— É impressão minha… ou estás com medo que os enfermeiros envenenem a tua comida?

Eu encolhi levemente os meus ombros rígidos.

— Mais vale prevenir que remediar…


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