Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 68
LXVI


Notas iniciais do capítulo

*Eychi surge como se não tivesse sumido durante quase seis meses*

Oi, como estão? :D Escrever esse capítulo foi difícil p'ra crlh, mas finalmente, depois de três tentativas fracassas, consegui terminá-lo. Está um pouco menor que os anteriores, mas, em princípio, conseguirei escrever o próximo mais rápido agora que "levantei" o meu bloqueio criativo.

Como passaram seis meses, vou fazer o resumo dos acontecimentos recentes: o Ashkore atacou e destruiu Eel e a Eduarda quase morreu porque quebrou a promessa com o Leiftan. Ezarel conseguiu "curá-la" da poção do amor, mas ela ainda está sofrendo os efeitos da abstinência. Entretanto, a Miiko convidou a Eduarda a lutar do lado dos faeries, mas ainda está à espera de uma resposta. A Lithiel está feita num oito e a Lithiel levou um tapa da Ykhar que lhe sacudiu os dentes. E é isso xD

Espero que gostem! *3*



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 Fiquei a mirar a porta por onde a brownie ruiva saiu após o seu discurso enfurecido, chocada e incrédula. O que diabos fora aquilo? Porque estava Ykhar a culpar Lithiel pelo que acontecera em Eel? De onde tirara ela a ideia de que Lithiel tinha ajudado Ashkore a entrar na cidade? Por aquela altura, Ykhar deveria saber que eu era a única culpada por isso! Nada do que ela dissera fazia sentido!  

— Ela… endoideceu — murmurei antes de me conseguir conter.

Lithiel soltou um pequeno suspiro antes de murmurar, num tom ainda mais baixo que o meu:

— Não… Ela não endoideceu. Ela só me conhece bem e sabe do que eu sou capaz…

— Tu jamais ajudarias o Ashkore a entrar em Eel — defendi de imediato.

Lithiel soltou um risinho sem humor. A sua pele estava cinzenta como pedra e as raízes do cabelo adotavam lentamente a mesma cor. Quando ela levantou o rosto para me fixar, notei que até os seus olhos tinham perdido a cor. Parecia que o discurso de Ykhar mexera mesmo muito com ela…

— Não sejas ingénua, Eduarda. Não te fica nada bem depois de tudo aquilo por que passaste. Esqueceste-te que o meu plano inicial era libertar um titã furioso no meio de Eel? Arriscando milhares de vidas inocentes apenas para provar que eu estava certa? Tu mesma me atiraste à cara que isso não seria diferente de deixar o teu irmão entrar na cidade. Na realidade, as coisas só não aconteceram exatamente como a Ykhar as descreveu porque o teu irmão preferiu servir-se do meu sangue em vez da minha inteligência. Mas se ele me tivesse pedido ajuda para entrar na cidade, eu tê-lo-ia feito sem hesitar. Não só seria capaz de abrir o portão da muralha de par em par, como estenderia uma passadeira vermelha no chão para ele passar — Lithiel inclinou a cabeça para o lado com um meio sorriso — Se pensares bem, eu não sou assim tão diferente dele, Eduarda… Podes até dizer que somos farinha do mesmo saco! Uso e abuso das pessoas do mesmo modo que ele usou e abusou de ti. Tu és a única que se recusa a vê-lo. O Ashkore levou-te pela mão para a beira de um precipício e atirou-te lá do alto com um sorriso nos lábios… e eu poderia ter estado ao lado dele, vendo-te cair com um sorriso igual ao dele…

— Mas não estavas — constatei num tom brando — Pelo contrário, tentaste avisar-me. Fui eu que não quis ouvir…

Lithiel ergueu uma sobrancelha de um cinzento ligeiramente mais escuro que a sua pele.

— Isso quer dizer que finalmente reconheces a vilania do teu irmão?

O rosto ferido de Lee apareceu com um flash diante dos meus olhos, deixando-me um gosto amargo na boca e um novo aperto no peito. Engoli em seco numa fraca tentativa de me livrar do mau estar… mas não resultou. Pelo contrário, só ficou ainda mais intenso.

— Eu… não sei, eu…

A pontada de dor na minha têmpora durou um mero milésimo de segundo, mas foi forte o suficiente para me fazer levar a mão à testa. O aperto no meu peito estendeu-se ao meu estômago, deixando-me indisposta e com um suor frio sobre a pele.

— Eduarda?

A segunda pontada de dor foi mais forte e duradoura, fazendo-me curvar pela cintura enquanto apertava a cabeça entre as mãos. Não tive sequer tempo para respirar fundo antes de a terceira pontada me atirar de joelhos ao chão.

— Eduarda!

Ouvi passos apressados na minha direção e senti um par de mãos frias tocar os meus ombros desnudos, mas não sabia dizer se eram de Lithiel ou de outra pessoa qualquer. A dor era tão intensa que me roubava a visão e…

“Eduarda…”

Subitamente, a dor desapareceu por completo, deixando-me a tremer e a arfar. Estava ainda a tentar recompor-me quando ouvi uma voz feminina que me era vagamente familiar:

“Abre os olhos, Eduarda… Deixa-me mostrar-te…”

Eu não me apercebera sequer do momento em que fechara os olhos, mas obedeci sem hesitar, ansiosa por entender o que diabos se estava a passar. O que vi, porém, só me deixou ainda mais confusa…

Eu estava numa grande gruta mergulhada na penumbra, diante de um lago de água esverdeada que eu conhecia demasiado bem. Ficara muitas horas a olhar para a sua superfície estática durante o momento mais traumático da minha vida, enquanto tentava dizer a mim mesma que estava a viver um pesadelo e acordaria em breve no mundo real. Não fazia a mais pálida ideia de como é que viera ali parar, mas, ao mesmo tempo, não podia dizer que estava surpreendida. Uma parte de mim pressentira que eu não estava mais no vestiário com Lithiel desde o instante em que ouvira aquela voz. Só não poderia ter adivinhado que, em vez disso, estaria nas masmorras de Eel…

O som de uma voz conhecida fez o meu coração dar um pulo e tentei dar rapidamente meia volta, mas o meu corpo não se mexeu. Não tardei a perceber que nenhum dos meus músculos me obedecia, nem sequer aqueles que me permitiam mover os olhos. Eu estava completamente imobilizada!

“Não te mexas”, recomendou-me a voz feminina mesmo a tempo de evitar o meu ataque de pânico. “Estás longe e o elo entre nós é frágil. A mais pequena perturbação física ou mental poderá quebrá-lo, mas, antes que isso aconteça, há algo que quero que testemunhes. Não tenhas medo. Deixa-me guiar-te. Limita-te a observar e a ouvir…”

Eu não fazia a mais pálida ideia do que a voz queria dizer com aquilo, mas não me parecia restar outra opção senão obedecer. Inspirei fundo mentalmente e fiz um esforço para me acalmar.

“Quem és tu?”, atrevi-me a perguntar, tanto para me distrair como para me tentar orientar naquela situação inexplicável e bizarra.

“Sirsha. Sou a titânide que estava no cristal de Eel…”

“És a titânide que me trouxe da Terra!”, constatei, admirada.

Ela riu-se leve e suavemente.

“Sim. Não foi fácil, mas, felizmente…” O barulho de uma pesada tranca a mover-se interrompeu-a. “Falaremos sobre isso noutra altura. Temos assuntos mais importantes no momento. Estás pronta?”

“Acho que sim…”

“Muito bem…”

Sem que eu tivesse dado qualquer ordem nesse sentido, o meu corpo moveu-se sozinho, virando as costas ao lago e encaminhando-se para o pequeno grupo de pessoas que se quedava diante de uma das celas da prisão. Foi nesse momento que percebi que aquele não era realmente o meu corpo… Eu estava no corpo de Sirsha, dentro da sua mente, vendo e ouvindo o mesmo que ela. Não fazia a mais pálida ideia de que os titãs conseguiam fazer aquilo, mas, por outro lado, havia muitas coisas sobre os titãs, e em particular sobre Sirsha, que eu desconhecia por completo. Gostaria de a ter interrogado sobre algumas dessas coisas, mas os meus pensamentos foram subitamente desviados de todo e qualquer assunto quando os olhos da titânide poisaram no rosto que eu tanto ansiara por ver. O rosto que me assombrara durante incontáveis noites e dias. Um rosto que fazia o meu coração palpitar e aquecer o peito… mas, ao mesmo tempo, me tolhia as entranhas até o sabor da bílis me inundar a boca…

Ashkore estava diante da porta da cela, mais imponente e intimidante do que as minhas memórias eram capazes de retratar. A armadura preta e vermelha que trazia vestida e a expressão severa no seu rosto só o tornavam ainda mais temível… mas também estranhamente sedutor. Tinha os braços firmemente cruzados na frente do peito e o olhar concentrado no que acontecia dentro da cela; tão concentrado que não pareceu sequer notar quando Sirsha se colocou ao seu lado. Ela estava tão perto do titã que os ombros quase se roçavam, deixando-me perdidamente ansiosa pelo toque. Porém, em vez de satisfazer o meu desejo, a titânide fez-me olhar na mesma direção que Ashkore.

O entusiasmo provocado pelo reencontro com Ash foi instantaneamente substituído por uma onda de puro choque quando vi uma Eweleïn em mau estado ser arrastada pelos cabelos até aos pés do meu irmão. Ela estava imunda, com os cabelos emaranhados, a roupa amarrotada, o rosto manchado de pó e as mãos tingidas de um vermelho escuro que me deixou um friozinho na barriga. Por favor, que não seja sangue… Os guardas que a arrastavam obrigaram-na a prostrar-se diante do titã, empurrando a sua cabeça para baixo até quase tocar no chão, mas soltaram-na quando Ashkore lhes fez um discreto sinal com a mão. Depois de uma breve hesitação, a enfermeira levantou lentamente os ombros e a cabeça, apenas o suficiente para lançar um olhar ardente de ódio ao titã. Ashkore fixou-a durante alguns instantes, como se estivesse a analisá-la, até que questionou:

— És tu a enfermeira Eweleïn?

A elfa não respondeu e, depois de esperar alguns segundos, Ashkore agachou-se na frente dela, colocando os seus rostos ao mesmo nível. No processo, os olhos deles nunca se separaram.

— És tu a enfermeira Eweleïn? — repetiu o titã com mais insistência.

— E se for? — volveu a elfa num tom frio e arrogante.

Os olhos vermelhos de Ashkore estreitaram-se. Eu sabia o quanto ele detestava ser desafiado e, por instantes, temi pela integridade física de Eweleïn. Todavia, para minha surpresa, o titã controlou o seu descontentamento.

— Quero que prestes assistência médica aos meus homens — disse num tom que não admitia contestação. Eweleïn, todavia, abriu um meio sorriso sarcástico.

— Porque haveríeis de precisar da assistência de uma pobre e fraca elfa, ó grande senhor? Um ser divino como vós não tem conhecimento de nenhum encantamento miraculoso que lhe permita salvar os seus moribundos?

Ashkore rangeu os dentes e eu fiz uma súplica mental para que Eweleïn parasse de provocar o titã. Se ela lhe desse mais uma resposta atravessada…

— Infelizmente, há limites até para o que um titã pode fazer — murmurou Ashkore num tom azedo antes de endireitar orgulhosamente os ombros — Eu e os meus adeptos viemos de uma colónia isolada e com recursos limitados. Parece-me natural que os conhecimentos dos meus curandeiros se encontrem um pouco… ultrapassados. Felizmente, um dos meus servos infiltrado em Eel informou-me sobre ti e sobre as tuas competências como enfermeira. Desse modo, pretendo oferecer-te uma oportunidade de me seres útil e, se me servires bem, talvez te deixe viver…

Eweleïn atirou a cabeça para trás e soltou uma curta gargalhada seca.

— Tu não me vais matar — retrucou ela com um sorrisinho impudente — Tu precisas de mim. Se me matares, estarás também a matar a única hipótese de sobrevivência dos teus adeptos…

Ashkore fez um sorriso ameaçador e fechou uma mão no rosto de Eweleïn, amassando as suas bochechas com os dedos enquanto a palma se sustinha sobre o queixo.

— Não te sobrestimes, enfermeira… Preciso de ti na condição de salvares os meus adeptos e não pretendo perder o meu tempo a tentar convencer-te. Se recusares a minha proposta, então ser-me-ás tão útil como um cadáver… — os olhos vermelhos do titã desceram pelo corpo da elfa como se a estivesse a avaliar e fez um novo sorriso ao voltar a fixar o seu rosto — …e acho que vou adorar transformar-te num…

Eweleïn soltou-se da mão de Ashkore com um safanão tão brusco que a fez tombar para o lado, precisando de apoiar uma mão no chão para não desabar por completo. Quando voltou a fixar o titã, o seu rosto perdera toda a insolência e voltara à seriedade e fúria iniciais.

— Nesse caso, podes matar-me já. Eu não pretendo fazer o mínimo esforço para salvar a vida dos teus adeptos enquanto o meu povo definha nestas celas!

Ashkore encarou Eweleïn antes de fazer um pequeno sorriso diabólico e levantar-se com um ar estranhamente satisfeito.

— Isso quer dizer que prezas mais a vida dos outros do que a tua própria! Que interessante… — Ashkore virou-se para os guardas que trouxeram Eweleïn — Trazei-me um dos prisioneiros que lhe fazem companhia.

Os três homens de armadura curvaram-se numa vénia e voltaram ao interior da cela. Um deles estendeu a mão para o refém mais próximo da porta, mas um prisioneiro que estivera escondido nas sombras do cubículo atirou-se aos outros dois guardas com um grunhido animalesco. Os três homens de armadura rodearam de imediato o cativo rebelde e não hesitaram em esmurrá-lo e pontapeá-lo até parar de se mexer. Eu senti as minhas entranhas embrulhar-se diante de tamanha violência, mas foi só quando Sirsha me fez olhar para Ashkore que eu me senti realmente nauseada.

O titã estava a sorrir… Um grande sorriso deliciado cruzava a sua cara de uma orelha à outra como se estivesse a assistir à coisa mais hilariante do mundo. Creio até que vi os seus ombros estremecer, como se estivesse a conter uma gargalhada. Era… aterrador…

Os guardas pararam finalmente de bater no prisioneiro e arrastaram-no para fora da cela com a mesma falta de delicadeza com que tinham arrastado Eweleïn. Atendendo à tareia que tinha acabado de levar, eu não ficaria surpreendida por descobrir que o pobre prisioneiro estava inconsciente, ou mesmo morto, mas, contra todas as expetativas, estava bem desperto. Susteve-se sem muita dificuldade sobre os joelhos quando os guardas o atiraram para os pés de Ashkore e ainda teve o atrevimento e a insensatez de cuspir na bota do titã o sangue que lhe escorria da boca. Ao contrário do que seria de esperar, Ashkore não ficou zangado. Em vez disso, abriu mais um dos seus sorrisos que me faziam estremecer de medo.

— Puxem-lhe a cabeça para trás. Deixem-nos ver bem a cara dele — pediu o titã aos seus homens. Um deles avançou para cumprir a ordem do seu senhor e eu tive de conter um gemido agoniado quando finalmente tive uma visão clara do rosto desfeito do prisioneiro.

Chrome…

— Olha para ele — ordenou Ashkore a Eweleïn. Só nesse momento me apercebi de que ela deixara a cabeça pender para o peito e as suas mãos tremiam muito discretamente. O espancamento de Chrome acontecera nas suas costas, mas ela com certeza ouvira tudo… — Olha para ele!

O berro de Ashkore ricocheteou nas paredes das masmorras, fazendo com que eu, Sirsha e Eweleïn estremecêssemos de susto. Mas, tirando isso, a enfermeira permaneceu sem se mexer. Manteve a cabeça baixa e o rosto teimosamente virado para os próprios joelhos. Irritado, Ashkore sacou da adaga que trazia à cintura e encaminhou-se para Chrome. Eu senti o meu coração parar no peito quando entendi o que ele ia fazer e, esquecendo que não estava no meu corpo, tentei dar um passo em frente para o parar.

“Não te mexas, Eduarda”, recordou-me Sirsha. “Vais separar-te de mim!”

“Não o podes deixar fazer isto… Faz alguma coisa!”, implorei, desesperada.

“Eu não posso…”

“Vais deixar que ele maltrate uma criança?!”

Um grunhido abafado distraiu-me da conversa mental com Sirsha e voltei a concentrar-me no que acontecia na nossa frente. Ashkore fechara uma mão no pescoço de Chrome e levantara-o do chão sem qualquer dificuldade. Desceu os olhos pelo corpo do pequeno lobisomem, como se estivesse a avaliá-lo… e levantou a mão com a adaga. O meu coração começou a bater tão rápido como as asas de um colibri e eu fiz uma nova tentativa de me mexer, mas a voz de Sirsha parou-me:

— A-Ash!

O titã imobilizou-se e, sem baixar a mão, olhou para a irmã por cima do ombro. Eu senti uma leve vertigem no momento em que os seus olhos vermelhos se cruzaram com os meus. O seu olhar era tão afiado que parecia penetrar até à alma e tão frio que a enregelava. Fixá-lo era como… encarar um predador do qual não conseguiríamos escapar. Como ver a nossa inevitável morte aproximar-se…

— Por favor, Ash, não faças isso… com ele — pediu a titânide, apontando com o queixo para Chrome.

— Porque não? — indagou Ashkore num tom inexpressivo.

— Ele é só uma criança…

— Uma criança que atacou os meus homens e cuspiu nos meus pés — cortou o titã — Eu diria que ele precisa de um pouco de disciplina… não concordas?

Eu queria que Sirsha insistisse e o fizesse entender que tudo aquilo era muito errado, mas ela não disse mais nada. Antes que eu pudesse sequer tentar convencê-la, Ashkore voltou a concentrar-se em Chrome e, sem qualquer remorso ou misericórdia… enterrou a adaga na barriga do lobisomem. O rosto do pequeno contorceu-se numa careta, mas cerrou os dentes e só deixou escapar um queixume abafado.

— Vamos meter as coisas nestes termos, Eweleïn — disse o titã num tom tão grave que quase virava um rosnado — Presta auxílio aos meus homens e eu deixar-te-ei cuidar desde pequeno canídeo e de todos os faeries trancados nestas masmorras. Recusa… — Ashkore puxou lentamente a lâmina da barriga de Chrome — e eu continuarei a cortá-lo até soltar o seu último suspiro. Se a morte dele não for o suficiente para te convencer, irei buscar outro prisioneiro… — enterrou a lâmina na coxa de Chrome, mas o rapaz não soltou um som — e repetirei o processo. Vou matar quantos faeries forem precisos para te fazer entender que não estou a brincar! E se continuares a recusar mesmo depois de eu matar o último dos prisioneiros… — torceu a lâmina no meio da carne do lobisomem, arrancando-lhe um ganido —, vou-te fazer sofrer mais do que todos eles juntos. O que me dizes, Eweleïn?

A enfermeira tremia tanto que parecia prestes a desmanchar-se. Quando abriu a boca para falar, a voz saiu fraca e quase inaudível:

— Deixa… Deixa-o em paz…

Ashkore fez um sorriso maldoso e puxou violentamente a adaga da coxa de Chrome ao mesmo tempo em que soltava o seu pescoço. O rapazinho desabou de joelhos no chão com mais um gemido de dor.

— Eu não faria esse pedido muitas vezes, se estivesse no teu lugar. Poderás vir a descobrir que o meu entendimento de deixar uma pessoa em paz envolve um leito abaixo do chão — Ashkore bateu com a lâmina ensanguentada na palma da outra mão — E então? Vais responder à minha questão ou vou ter de esfaquear o pequeno canídeo mais uma vez?

Eweleïn hesitou, trémula e aterrorizada, mas, pela primeira vez desde que Chrome se envolvera na confusão, levantou a cabeça e olhou na direção do lobisomem. Ele fixou-a de volta durante breves instantes, antes de abanar lenta e discretamente a cabeça, num aceno negativo. Os olhos de Eweleïn arregalaram-se ligeiramente, como se não pudesse acreditar no que Chrome lhe parecia propor. Infelizmente, enquanto ela se debatia para entender a mensagem do rapaz, Ashkore fartou-se de esperar. Soltando um suspiro aborrecido e revirando os olhos, o titã encostou a adaga ao osso do maxilar de Chrome.

— Tens cinco segundos, Eweleïn. Cinco. Quatro…

— Es-espera… — murmurou a enfermeira, aterrorizada. Ashkore, contudo, ignorou-a por completo. A ponta da sua lâmina principiou a cortar a pele de Chrome e fez brotar uma gota de sangue enquanto ele continuava:

— Três. Dois…

— Eu aceito! — gritou Eweleïn, sobrepondo a sua voz à de Ashkore quando ele estava prestes a pronunciar o último número da contagem — Eu… trato dos teus adeptos… — acrescentou com um fraco murmúrio.

O titã fez um sorriso satisfeito e eu estava prestes a soltar um suspiro de alívio quando…

— Fico feliz… mas sê mais rápida para a próxima.

Aconteceu tudo ao mesmo tempo. Ashkore brandiu a adaga, o sangue manchou o chão, Eweleïn gritou, eu gritei e, no momento em que o corpo de Chrome principiou a tombar, fui subitamente engolida pela escuridão. A última coisa que ouvi foi a voz de Sirsha na minha cabeça:

“Isto é tudo o que posso fazer da minha parte… Boa sorte para cumprires a tua…”

A textura de um tecido macio, mas frio, a tocar os meus ombros nus foi o que me trouxe de volta à realidade. Abri rapidamente os olhos, procurando saber onde estava, e encontrei os rostos de Lithiel, Nevra, Ezarel, Leiftan, Miiko e Huang Hua alinhados ao lado da cama em que eu estava deitada, observando-me com a mesma expressão apreensiva.

— Eduarda! — exclamou o Mestre da Sombra, aliviado — Como te sentes? Estás…?

A voz de Nevra dissipou-se exatamente ao mesmo tempo em que a minha visão ficava desfocada. Comecei por pensar que os meus sentidos estavam a falhar porque Sirsha me estava a puxar de volta à sua mente, mas não tardei a perceber que a imprecisão visual se devia somente às lágrimas…

Cobri os olhos com as costas da mão enquanto um soluço violento me saltava dos lábios. Sob o olhar perplexo dos que me rodeavam, desatei a chorar tanto ou mais do que no dia anterior, enquanto era soterrada pela consciência de que o meu pior pesadelo se concretizara bem diante dos meus olhos. Chrome… estava morto… e a culpa era toda minha!

— Eduarda…

Não sei de quem era a voz que murmurou o meu nome, nem de quem eram os braços que se enrolaram em torno dos meus ombros. Honestamente, também não importava. Limitei-me a desfrutar do conforto daquele aperto quente enquanto tentava, sem sucesso, limpar da memória a imagem do rosto ensanguentado de Chrome.

— Eduarda — murmurou a voz de Nevra, muito perto do meu ouvido — Nós não saberemos como ajudar-te se não falares connosco. Por favor, tem calma… respira fundo… e diz-nos o que aconteceu.

Eu tentei controlar o meu choro, mas foi inútil. Estava demasiado perturbada pelo que acabara de testemunhar. Eu vira uma vida terminar bem diante dos meus olhos… A vida de um amigo que o meu irmão decidira assassinar por puro capricho! Como é que ele fora capaz…? Eu sempre soubera que Ashkore era vingativo, mas nunca pensara que ele poderia ser tão cruel. Nem quando o vira maltratar Ihlini. Nem quando o vira atacar Lee…

A náusea sufocou-me quando me lembrei da situação em que a ninfa estava e fui novamente confrontada com a hipótese de ter sido Ashkore a deixá-la naquele estado. Como é que ele fora capaz de cometer tais atos? Como é que ele fora capaz de sorrir diante do sofrimento dos outros? Como é que eu me pudera apaixonar por uma pessoa assim…? Eu não devia amá-lo. Não fazia sentido amá-lo. Faria mais sentido ter medo dele! Um medo profundo, primitivo, paralisante… Um medo que, pensando bem… não me era desconhecido. Eu já o sentira antes. Ashkore já me fizera senti-lo antes… mas eu esquecera-me disso? Como é que…?

— Eduarda, por favor — murmurou Nevra, com o rosto enterrado no meu pescoço, arrancando-me dos meus pensamentos — Diz-nos o que se passa…

Eu inspirei profundamente, tentando conter o meu choro, e afastei Nevra suavemente. Ele lançou-me um olhar preocupado, não parecendo gostar da ideia de me soltar, mas não opôs resistência. Assim que ele regressou ao lugar em que estiver antes, percorri rapidamente os rostos dos presentes com os olhos ainda húmidos antes de os fixar no Diretor da Absinto.

— Ezarel — chamei com a voz embargada.

— Diz…

— A poção do amor… até que ponto pode alterar os sentimentos da pessoa que a bebeu?

O elfo franziu ligeiramente o sobrolho, parecendo surpreendido pela questão, mas respondeu:

— Até ao ponto de transformar um ódio mortal num amor inconsequente em meros segundos.

— Pode transformar medo? Mesmo um medo muito forte?

— Sim. Claro.

— E tens a certeza que o Ashkore me deu uma dessas poções…

— Absoluta. Se ele não ta tivesse dado, o antídoto que eu te ministrei não teria tido qualquer efeito e não terias passado por uma desintoxicação.

Eu trinquei o lábio e assenti levemente com a cabeça. Entretanto, Nevra lançava olhares ansiosos de mim para o elfo, até finalmente ceder à tentação de perguntar:

— Porque… estás a fazer essas perguntas agora, Eduarda?

Eu inspirei fundo mais uma vez, reunindo a coragem necessária para fazer o que a minha consciência defendia que tinha de ser feito. O meu coração talvez não estivesse totalmente de acordo com o plano, mas a firmeza da minha decisão não seria abalada por um sentimento que eu há muito reconhecera que não fazia sentido…

— Só queria confirmar… antes de aceitar.

— Aceitar o quê?

O meu olhar deslizou do Mestre da Sombra até à Sacerdotisa de Eel.

— Eu aceito lutar do lado dos faeries.


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