Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 62
LX




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742158/chapter/62

Os enfermeiros da colónia obrigaram-me a ficar na enfermaria durante mais dois dias, resultando num total de cinco dias de recobro. Durante esse tempo, não fiz nada além de comer, dormir… e matutar na última revelação do titã.

A intenção de Ashkore de atacar as Guardas de Eldarya não era uma novidade para mim. Eu conhecia os seus planos, sempre conhecera, e fora, aliás, para trazer ao meu irmão os meios necessários à vitória que eu viajara até à Terra. Ainda assim, ficar a conhecer a iminência do ataque a Eel afetara-me mais do que seria de esperar. Fora como se Ashkore me tivesse vazado um balde de água gelada pela cabeça abaixo… Só nesse momento me dei conta de que a guerra de que ele tanto falava nunca fora mais do que uma miragem distante na minha cabeça. Eu nunca a encarara com verdadeira seriedade, via-a como só mais um daqueles planos hipotéticos que as pessoas teciam para o futuro, sem saber quando ou se alguma vez teriam condições para os concretizar. Na Terra, esses planos costumavam ser uma viagem de sonho ou a aquisição de um artigo de luxo. No caso de Ashkore, era uma guerra sangrenta. Uma guerra que, ao som das suas palavras, se tornou assustadoramente real… e estava a meros dias de distância…

O facto de as Guardas de Eel serem o primeiro alvo de Ashkore também era motivo de inquietação, por muito que o quisesse negar. Eu tentava dizer a mim mesma que não tinha verdadeiros laços com nenhum dos seus membros, mas uma vozinha na minha mente não parava de enunciar os nomes daqueles que eu conhecera lá. Nevra, Ezarel, Valkyon, Adonis, Karenn, Chrome, Eweleïn, Keroshane, Broun… até Miiko e Jamon. Leiftan também. Ykhar, com quem eu nunca tivera uma conversa decente. Ou aquele fauno de quem eu não lembrava o nome, mas a quem Nevra prometera a minha ajuda durante uma semana quando regressássemos da nossa viagem. Eu não queria ver nenhum deles morrer. Ao contrário de Ashkore, eu não odiava os faeries a esse ponto. Teria preferido poupá-los… mas, infelizmente, isso não dependia de mim.

Ashkore veio visitar-me todas as noites enquanto estive na enfermaria, mas não ficava tempo suficiente para termos uma conversa decente. Ele não podia deixar os preparativos para o ataque sem supervisão durante muito tempo e também não queria atrapalhar o meu repouso. Não voltei a ver Tadeu e, quando o mandei chamar, Masaomi disse-me que o rapaz não podia visitar-me porque a sua transformação se completara mais cedo que o previsto e ele estava agora entalado no seu quarto, tal como acontecera comigo ao chegar ali. O próprio Masaomi não tinha muito tempo para me dedicar, uma vez que todos os alquimistas e curandeiros dos túneis estavam ocupados com a preparação de poções para a batalha que se avizinhava. Eu só não passava os meus dias completamente sozinha por causa do batalhão de mulheres que o meu irmão enviara para me adorar. Eram umas vinte ou trinta no total e faziam turnos entre si para que eu tivesse sempre alguém a transmitir-me o seu afeto. Teria gostado de conversar com algumas delas e saber das novidades, mas elas estavam tão concentradas na sua tarefa que nem me atrevi a abrir a boca. Permaneci deitada na minha cama, olhando o teto ou as paredes, perdida nos meus pensamentos conturbados.

O meu último dia na enfermaria não foi diferente dos outros até ao final da tarde. Masaomi trouxe o meu jantar mais cedo do que era habitual e, além da bandeja com comida, trazia uma trouxa vermelha debaixo do braço. O que me chamou a atenção, porém, foi o sobrolho franzido, como se o curandeiro estivesse muito contrariado. Nunca o vira assim… Pensei em perguntar-lhe se estava tudo bem, mas a presença das adoradoras no canto da câmara fez-me desistir da ideia. Masaomi não estava com cara de quem aceitaria falar sobre aquilo que o incomodava na frente de tanta gente…

Terminada a minha refeição, Masaomi costumava dar uma olhada rápida ao ferimento no meu pescoço para avaliar a sua cicatrização e trocar o penso. A presença das adoradoras nunca condicionara o exame, mas, desta vez, Masaomi pediu-lhes que saíssem. A súbita mudança de atitude intrigou-me e, assim que a última mulher atravessou a cortina na entrada, perguntei ao curandeiro porque as mandara embora. Ele limitou-se a soltar um suspiro e não respondeu.

Masaomi tirou o curativo no meu pescoço e examinou atentamente a marca da mordida de Ashkore, pressionando com a ponta dos dedos e perguntando se doía. Eu neguei e o curandeiro afastou-se com um aceno aprovador.

— Está com bom aspeto — murmurou — A ferida está fechada e as marcas vermelhas não deverão tardar a desaparecer, portanto, não é necessário um novo curativo — levou a mão ao bolso da sua bata, tirando uma longa agulha branca e um frasco com um líquido transparente — Vou verificar os vossos níveis de Maana agora, Ama…

Eu soltei um pequeno suspiro pesaroso, mas estendi-lhe a mão esquerda e deixei que Masaomi furasse a ponta do meu dedo médio até fazer brotar uma pequena gota de sangue. De seguida, o curandeiro mergulhou a agulha manchada de vermelho no conteúdo do frasco e mexeu lentamente. O líquido transparente ganhou de imediato uma suave coloração violeta, mas, pela forma como Masaomi torceu a boca, presumi que não era esse o resultado esperado.

— Os vossos níveis de Maana estão muito longe do que seria considerado ideal, mas terão de servir…

— Servir para quê?

Masaomi soltou mais um suspiro e estendeu-me a trouxa que trouxera com uma certa hesitação. Curiosa, apressei-me a abrir o embrulho vermelho, encontrando uma pequena pilha de roupa preta, cuidadosamente dobrada. Havia uma blusa de seda, umas calças de couro e, finalmente… um pesado colete couraçado, negro e vermelho. Um colete muito semelhante à armadura de Ashkore…

— O Amo Ashkore iniciará a sua busca por justiça esta noite — anunciou Masaomi, confirmando as minhas suspeitas — e gostaria muito de ter-vos a caminhar ao seu lado…

Um arrepio subiu-me pela espinha, enregelando-me até aos ossos. Apertei a roupa entre os dedos com mais força para que as mãos não me tremessem.

Estava a começar… A guerra… estava mesmo a começar…

— Ama Eduarda — disse Masaomi, num tom mais baixo e meio conspiratório — Perdoai o meu atrevimento, mas… eu aconselho-vos a recusar o convite do Amo Ashkore. Os vossos níveis de Maana não estão no nível certo para participar numa batalha. Lamento dizê-lo, mas estais muito fraca… Eu tentei demover o Amo Ashkore dessa loucura, mas ele insistiu em chamar-vos, dizendo que a vossa ajuda seria indispensável ao sucesso da campanha… A questão é que não ireis conseguir realmente ajudá-lo nesse estado! Ama Eduarda, por favor, sede prudente…

Eu fechei momentaneamente os olhos. Não precisava que Masaomi me dissesse que não estava em condições de participar numa batalha. Eu sabia-o melhor do que ninguém. Não conseguia manter-me acordada durante mais de doze horas, era um verdadeiro desafio levantar-me da cama e só no dia anterior conseguira dispensar o apoio de uma muleta para dar os míseros trinta e cinco passos até à casa de banho mais próxima. Meter-me no meio de uma batalha naquele estado seria suicídio. Contudo… eu não podia deixar o meu irmão enfrentar, sozinho, uma cidade cheia de faeries. Não me conseguia imaginar a ficar ali, tranquila e segura, enquanto o homem que eu amava mais do que tudo arriscava a vida para construir um mundo melhor para nós e para os nossos irmãos. Não… Não havia outra hipótese… Eu tinha de ir. Mesmo que não pudesse ser realmente útil na hora de lutar, queria estar lá para apoiar o meu irmão tanto quanto pudesse.

— Ajuda-me a vestir, Masaomi — pedi com um murmúrio.

O curandeiro lançou-me um olhar incrédulo, parecendo até meio ofendido por os seus conselhos terem sido ignorados.

— Ama Eduarda, por favor, ponderai…

— Eu não vou deixar o meu irmão sozinho num momento tão importante como este — teimei — Sei perfeitamente que não estou em condições de lutar, mas não vou aguentar ficar aqui à espera de notícias. Quero estar lá para ajudar o Ashkore como puder.

— Ama Eduarda…

— Não insistas, Masaomi! — cortei num tom severo — As minhas decisões não te dizem respeito!

O curandeiro hesitou, cerrando os maxilares enquanto parecia ponderar se continuava a insistir ou não, mas o olhar firme que lhe lancei fê-lo desistir. Inclinou-se numa pequena vénia respeitosa, mas o desagrado estampado no seu rosto deixou-me a pensar se o gesto não seria uma despedida antes de ir embora como forma de protesto. Felizmente, não era. Quando se voltou a endireitar, Masaomi estendeu as mãos na minha direção e ajudou-me a sair da cama para poder vestir-me.

Meter-me dentro das calças e da blusa não foi complicado, mas o colete couraçado estava a incomodar-me tremendamente. Não me sentia nada confortável dentro daquela peça em particular, não só devido ao seu peso, mas também devido ao que ela representava. Era irónico, mas aquela couraça que tinha por função salvar-me a vida só me fazia pensar na morte. Afinal, eu não precisaria proteger-me daquela forma se estivesse a preparar-me para um encontro pacífico com os faeries. Agoniava-me pensar nas vidas que em breve se extinguiriam… mas estava convicta de que conseguiria lidar com isso enquanto nenhuma dessas vidas fosse a de Ashkore.

O tecido vermelho em que a roupa viera embrulhada era, na verdade, uma longa capa com capuz e, enquanto eu a prendia nos ombros do colete, Masaomi foi buscar umas botas negras com mais detalhes em vermelho vivo. Depois de as enfiar nos pés, estava pronta para partir… mas não me mexi. Aquilo era uma péssima ideia…

— Ama Eduarda? — chamou Masaomi — Está tudo bem?

Sorvi lentamente o ar, fechando os olhos. Eu não queria nada daquilo… não queria…

— Ama Eduarda, posso entrançar-vos o cabelo? — perguntou subitamente Masaomi, tocando cuidadosamente nos finos fios atravessados na frente do meu rosto – Será mais cómodo…

Eu confirmei com um aceno de cabeça, agradecida pela oportunidade de me demorar mais um pouco ali. Eu ainda não estava mentalmente preparada para enfrentar o futuro próximo… se é que alguma vez estaria. Enquanto sentia as mãos cuidadosas de Masaomi manusear o meu cabelo, concentrei-me em encher o peito com pequenos fôlegos de coragem. Sabia que iria precisar deles muito em breve…

Saí da enfermaria de braço dado com Masaomi. Quem não soubesse, talvez pensasse que era só mais uma maneira do curandeiro me adorar e mostrar o seu respeito, mas, na verdade, era pura prevenção. Nós nunca sabíamos quando as minhas pernas decidiriam virar manteiga e atirar-me de cara ao chão. Consegui chegar ao centro da colónia sem tropeçar uma única vez, mas o que vi lá meteu-me os joelhos a tremer.

Os habitantes da colónia estavam ali todos reunidos e aqueles que ficavam despediam-se dos que partiam. Homens e mulheres vestidos com pesadas armaduras negras e vermelhas diziam adeus aos filhos pequenos e aos familiares idosos por entre lágrimas ininterruptas e abraços sentidos. Não havia brados ou lamentos, mas o suave burburinho povoado por promessas vazias era, no meu ver, muito pior. Era um sinal alarmante de que todos ali já se tinham conformado com a ideia de que aquela poderia ser a última vez que viam os seus entes queridos com vida…

Não muito longe, três figuras altivas observavam os faeries e o meu queixo quase me caiu aos pés quando vi Ashkore no meio delas. O titã estava na sua forma humana, sem a máscara, vestido com uma armadura diferente daquela que habitualmente usava. Se a ocasião fosse outra, teria ficado muito feliz por ele se ter finalmente livrado daquela porcaria e por me premiar com uma visão desimpedida do seu rosto maravilhoso… mas, nas vésperas de uma batalha, aquilo só me deixava muito preocupada com a sua segurança! A nova armadura mantinha as cores da anterior, mas parecia ser mais leve e delicada, menos resistente, fazendo-me questionar sobre as razões que o levariam a trocar a sua antiga armadura por outra de qualidade inferior. Além disso, como poderia ele estar ali na forma humana, que, ao contrário da minha, demandava um fluxo constante de Maana, sem a armadura que o salvaguardava desse gasto desnecessário? Não iria aquilo enfraquece-lo?!

Estava pronta para marchar até Ashkore e exigir-lhe uma explicação quando notei a figura à sua esquerda… a qual vestia a armadura e a máscara que antes foram dele. Demorei alguns segundos a entender o que aquilo, provavelmente, significava: Tadeu não conseguira recuperar a forma humana a tempo do ataque a Eel, por isso, Ashkore entregara-lhe a sua armadura, sacrificando a sua própria força em prol do irmão mais novo. Fora um gesto bonito e atencioso… mas também muito irresponsável! Ashkore era o mais forte de todos nós e deveria preservar as suas forças. Além disso, não fazia qualquer sentido levar Tadeu para a batalha, com ou sem armadura. O rapaz só estava naquele mundo há cinco dias, não tinha qualquer tipo de treino de combate ou de magia, ele não entendia sequer aquilo que realmente era… Levá-lo para Eel não seria diferente de atirá-lo de mãos e pés atados para o meio de uma matilha de lobos! Talvez Tadeu estivesse ali apenas para se despedir de nós? Era o mais provável…

Por fim, o meu olhar poisou na figura do outro lado de Ashkore e, por instantes, julguei estar a alucinar. Era Ihlini! O que estaria ela a fazer ali? Na última vez que vira a titânide, ela estava dentro do círculo vermelho de Ashkore, demasiado fraca para se suster nas pernas, mas cheia de vontade de conspirar contra o irmão. Agora, ela não só parecia completamente recuperada dos suplícios por que passara, estando bem alimentada e sustendo a sua forma humana sem dificuldade, como se erguia orgulhosamente ao lado do titã vermelho! O sorriso que ela lhe dirigia de tempos a tempos dava a entender que não lhe guardava ressentimentos… e isso era muito estranho e suspeito! Eu conhecia bem o ódio que a titânide nutria por Ashkore, assim como as suas convicções sobre qual deveria ser o destino dos titãs, e não acreditava que ela tivesse mudado de ideias. Teria ela mentido a Ashkore apenas para poder sair da sua prisão, estando na verdade à espera do momento certo para o atacar…? Era muito difícil acreditar que alguém conseguiria enganar o titã, tão desconfiado que ele era, mas… aquilo não fazia sentido… Tinha de falar com Ashkore e alertá-lo, mas quando? Estávamos prestes a partir para a guerra e eu não faria aquilo onde Ihlini me pudesse ouvir!

O meu irmão mais velho apercebeu-se finalmente da minha presença e chamou-me com um gesto da mão e um sorriso. Eu avancei até ao trio de titãs com a ajuda de Masaomi.

— Alegra-me ver que aceitaste o meu convite, irmãzinha — disse Ashkore — A tua ajuda é-nos preciosa…

— Jamais te deixaria sozinho — afiancei de imediato.

O sorriso de Ashkore alargou-se.

— Obrigado… É bom saber que posso sempre contar contigo. Por outro lado, jamais estarei sozinho — poisou as mãos nos ombros de Tadeu e Ihlini — Os nossos irmãos acompanhar-nos-ão nesta provação.

— Vais levar o Tadeu? — admirei-me.

— Ele não irá lutar — Ashkore tranquilizou-me rapidamente —Será somente uma distração…

— Mesmo assim… não será demasiado perigoso?

— Não te preocupes, Eduarda — intrometeu-se Ihlini, sorrindo — Eu serei a guarda do Tadeu durante a batalha. Tomarei bem conta dele…

Eu fiz um pequeno sorriso, embora não me sentisse muito mais tranquila. Pelo contrário! Como poderia ter a certeza de que Ihlini não se voltaria também contra Tadeu…?

— Eduarda, tenho um presente para ti — disse subitamente Ashkore, desviando-me das minhas desconfianças. Olhei na direção do titã, curiosa, e vi-o estender-me uma longa adaga negra e vermelha, guardada dentro de uma bainha com as mesmas cores — Sei que não tens armas próprias, por isso, pedi aos nossos melhores ferreiros que fizessem esta lâmina para ti. Por favor, usa-a durante a batalha…

— Ah… é verdade… Obrigada — murmurei, forçando um sorriso enquanto aceitava a arma. Na verdade, sentia vontade de vomitar e quase não resisti ao impulso de atirar a lâmina ao chão assim que lhe senti o peso. Eu não sabia se seria capaz de usar aquela adaga para tirar a vida de alguém, mesmo em caso de legítima defesa. Eu não queria usar aquela adaga para tirar a vida de alguém… 

— Amos?

Virei-me ao som da nova voz para encontrar os faeries de armadura alinhados em várias filas diante de nós. Assim que eu e os outros titãs os fixámos, todos levaram um joelho ao chão com um único movimento, espalhando as suas capas vermelhas pelo chão. Os restantes faeries imitaram-nos rapidamente.

— O mero vislumbre da vossa reunião é o suficiente para nos encher de coragem, Amos, mas, por favor… dai-nos também a vossa bênção — rogou um dos faeries na primeira fila.

Eu lancei um olhar aflito na direção dos outros titãs, atrapalhada com o pedido, mas, felizmente, Ashkore decidiu tomar as rédeas da situação. Endireitando os ombros, o titã avançou um passo na direção dos faeries.

— Queridos filhos, deveis saber que o vosso pedido é completamente desnecessário… Vós tendes a nossa bênção eterna desde o momento em que perseverastes em manter a nossa memória viva, desde o momento em que estendestes as vossas mãos em nosso auxílio e nos libertastes da tirania daqueles que nos traíram. Nós nunca vos poderemos agradecer o suficiente por tudo aquilo que fizestes pelo nosso bem e é com o coração pesado que vos peço um último favor — Ashkore ergueu uma espada quase tão longa como a minha perna — Lutai mais uma vez ao nosso lado! Lutai pela liberdade dos nossos irmãos encarcerados! Lutei pela ordem natural deste mundo! Lutai por justiça!

Os soldados soltaram um estrondoso clamor de concordância. Ihlini avançou, colocando-se ao lado de Ashkore.

— Não temais a contenda que se aproxima, bravos faeries. Nós somos poucos e estamos mais fracos do que gostaríamos de admitir, mas jamais deixaremos aqueles que nos são leais desamparados. No passado, eu submeti-me voluntariamente à tortura do cristal pelo vosso bem, meus adorados filhos. Do mesmo modo, darei a minha vida para vos proteger no campo de batalha e morrerei com um sorriso nos lábios para vos dar a oportunidade de regressar aos braços das vossas famílias…

— A vossa vida é muito mais preciosa do que a nossa, Ama Ihlini! — defendeu um dos soldados.

— Mas é dever dos mais fortes proteger os mais fracos — retrucou a titânide — Nós não poderemos ser os senhores deste mundo se não soubermos proteger as suas gentes, nossa própria criação, nem poderemos pedir-vos que arrisquem a vossa vida por nós se não estivermos dispostos a fazer o mesmo. Interajuda e confiança mútua são essenciais para superar os momentos de tormenta e será isso que nos trará a vitória. Juntos, tornamo-nos mais fortes!

Os soldados soltaram mais um grito de concordância. Ashkore rodou ligeiramente na minha direção e estendeu-me a mão com um pequeno sorriso, convidando-me a fazer também um discurso. Eu engoli em seco, não tendo sequer uma pálida ideia do que dizer, mas soltei-me do braço de Masaomi para pegar na mão do titã. Avancei um passo hesitante e mirei as cabeças curvadas diante de mim. Só nesse momento tive uma perceção clara do tamanho do exército dos titãs e senti o meu coração cair-me aos pés. O nosso exército era constituído por apenas quarenta e dois soldados, sem contar com os quatro titãs… Se bem me lembrava, Kero dissera-me num dos meus primeiros dias em Eldarya que a Guarda de Eel era constituída por cerca de cinco mil faeries, ou seja… seríamos quarenta e seis contra cinco mil! Era loucura… Era certo que os titãs eram tão poderosos que compensavam umas quantas centenas de soldados, e era com certeza nisso que todos ali estavam a pensar, mas mesmo assim… era loucura…

— Eduarda? — chamou Ashkore, quando permaneci em silêncio — Não queres dar uma palavra de apoio aos nossos guerreiros?

Eu humedeci nervosamente os lábios. Como poderia transmitir-lhes apoio quando eu mesma só conseguia imaginar o pior? A minha vontade era virar-me para Ashkore e pedir-lhe para parar com aquela loucura, mas não podia… O que diria? O que diria…?

— Eu… — comecei hesitantemente — Eu teria preferido libertar os meus irmãos e irmãs sem derramamento de sangue, mas sei que as mentiras e a arrogância dos Sacerdotes tornaram isso impossível. Na ausência de outras opções, só me resta marchar convosco e… desejar boa sorte a todos. Por favor… tenham cuidado.

Os soldados soltaram um berro de aquiescência que quase me fez estremecer e, finalmente, foi a vez de Tadeu fazer o seu discurso, a convite de Ihlini. Ao contrário de mim, ele parecia saber o que dizer:

— Vou falar muito francamente com vocês… Neste momento, eu devo ser a pessoa mais assustada da sala. Afinal, eu cheguei nesse mundo há cinco dias atrás, estou completamente perdido no meio de tudo o que está acontecendo, não tive um único treinamento de luta ou magia, mas, mesmo assim, estou indo para a batalha. Não estou indo para lutar, estou indo para distrair os faeries, mas, se for atacado… não conseguirei me defender. Mesmo assim, estou indo… e sabem porquê? Porque o Ashkore me fez ver quão útil posso ser, mesmo quando não sei fazer nada. Porque confio na Ihlini para me proteger enquanto eu não aprender a me defender sozinho. E vocês devem acreditar e confiar neles tanto como eu! Se tem alguém nesse mundo capaz de concretizar esse plano que qualquer outra pessoa chamaria de ridículo… são esses dois. Enquanto o Ashkore e a Ihlini estiverem connosco… somos invencíveis!

O chão estremeceu com a força dos gritos dos faeries e os soldados desembainharam os punhais que traziam nas coxas para bater com o lado achatado da lâmina nas suas caneleiras metálicas, intensificando a cacofonia. Ashkore e Ihlini ergueram as suas espadas com gritos de guerra. Tadeu ergueu um punho cerrado, também a gritar. Eu ergui também o meu punho no ar, mas não juntei a minha voz aos gritos aguerridos. Não conseguia… Sentia o peito tão apertado que quase não conseguia respirar! E o aperto só piorou quando ouvi Ashkore anunciar o início da viagem até Eel. Eu e os outros titãs liderámos o caminho até ao exterior dos túneis e invocámos um sluagh cada um. Entretanto, os faeries montavam o que pareciam ser robustas avestruzes amarelas, chamadas shau’kobow.

O sol tinha acabado de desaparecer no horizonte quando nos colocámos finalmente a caminho de Eel. A corrida dos shau’kobows não era tão rápida quanto o voo dos sluagh, mas as avestruzes eram bastante resistentes e avançavam a uma velocidade constante durante várias horas. A viagem durou a noite toda e, mesmo assim, não precisámos parar uma única vez.

O sol estava prestes a nascer de novo quando chegámos à floresta que precedia o quartel general dos faeries. Rubih e outras três elementais estavam lá à nossa espera, prontas para nos atualizar sobre a situação da cidade.

— Não houve qualquer alteração na proteção da cidade desde o meu último relatório, Amos. O decagrama continua ativo — dizia a elemental da água, chamada Safihra — Todos os escudos estão levantados e todos os encantamentos estão em execução. Nada nem ninguém consegue atravessar a barreira que cobre a cidade, nem sequer nós, seres elementais. A única abertura na barreira… é o portão da frente.

— E ninguém atravessa o portão sem ser revistado e devidamente identificado — acrescentou Rubih.

— Portanto, as nossas únicas opções seriam derrubar a barreira pelo lado de fora… ou encontrar uma maneira de nos infiltrarmos no seu interior — ponderou Ihlini.

— Nós não temos força física ou mística para derrubar a barreira — constatou Ashkore antes de fazer um pequeno sorriso enigmático —, mas temos alguém capaz de se infiltrar em qualquer lado sem qualquer dificuldade… não é verdade, Eduarda?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Titanomaquia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.