Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 59
LVII




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Segurando o telemóvel na mão esquerda e uma lata de tinta spray na mão direita, comecei a desenhar o círculo junto dos graffitis que manchavam as paredes do edifício abandonado. De cinco em cinco segundos, fazia uma pequena pausa para ajustar o zoom da fotografia que tirara ao círculo no muro da minha casa no dia anterior, certificando-me de que estava a copiá-lo corretamente. Atrás de mim, Lithiel observava-me com os braços cruzados na frente do peito e o sobrolho levemente franzido. Aparentemente, a nossa breve conversa ao chegar ali não a deixara nada satisfeita…

— Porque é que estás a abrir um novo portal para a colónia? — perguntou ela — O nosso plano não era abrir um portal para Eel?

— Era, mas houve uma mudança de planos…

Não me virei para confirmar, mas tenho a certeza que a doppelganger fez uma careta muito desprazida.

— Não gosto de mudanças de plano. Acima de tudo, não gosto desse plano.

— Nem sequer sabes qual é — defendi-me.

— Se esse portal tem como destino a colónia, não pode ser um bom plano.

Eu soltei um pequeno suspiro, mas não desviei a atenção do que estava a fazer. Lithiel manteve-se em silêncio por alguns instantes, até voltar ao interrogatório:

— Eduarda?

— Hum?

— Não estás a pensar fazer exatamente o que o teu irmão te pediu para fazeres, pois não?

A minha mão direita deteve-se por um instante e a tinta começou a alastrar-se num pequeno círculo perfeito. Forcei-me a move-la antes que o desenho ficasse arruinado.

— O que te leva a pensar que faria uma coisa dessas?

Lithiel não respondeu de imediato. Senti-a mover-se atrás de mim e não tardou para que entrasse no meu campo de visão, colocando-se ao meu lado com um sorriso torto nos lábios.

— Não me respondas com perguntas, Eduarda — disse num tom baixo com algo de ameaçador — Podes despistar a minha habilidade de detetar mentiras com elas, mas não te safas das minhas suspeitas.

— E eu acho que tenho o direito de saber porque me estás a acusar de compactuar com os planos do meu irmão — volvi, parando de desenhar e virando-me para a enfrentar — O que fiz eu para pensares numa coisa dessas, afinal?

— Queres dizer, além de te recusares a fazer aquilo que combinámos e abrir um portal para Eel para levarmos o nosso tratado de paz à Miiko? — Lithiel encolheu os ombros, forjando uma expressão pensativa — Não sei, talvez… o facto de chamares pelo teu irmão enquanto dormes!

Senti o sangue colorir-me as faces e desviei rapidamente o olhar para o lado. Eu chamara Ashkore enquanto dormia? Como é que isso acontecera? Eu nunca antes tivera tendência a falar durante o sono! Por outro lado, também nunca antes tivera sonhos tão vívidos como os das últimas noites…

Céus… O que teria Lithiel ouvido? Os meus sonhos com Ashkore não eram o tipo de sonho que gostaria de tornar público!

— Há quanto tempo duram esses sonhos? — continuou a doppelganger, desconfiada.

Trinquei o lábio e não respondi. Não podia mentir, Lithiel sentiria logo o cheiro, mas também não me sentia à vontade para lhe dizer a verdade. Ela não entenderia…

Eu e Lithiel estávamos há dezoito dias na Terra e eu sonhara com Ashkore quase todas as noites. No início, os sonhos eram esparsos, curtos, banais, mas, gradualmente, tornaram-se mais vivos e intensos até… se tornarem insuportavelmente reais. Nos últimos seis dias, eu acordara sem saber onde estava, completamente desorientada entre o sonho e a realidade. As imagens do sonho pareciam gravadas na minha retina, sobrepondo-se a tudo o que estava diante do meu nariz. A voz de Ashkore, suspirando o meu nome, era um zumbido insistente nos meus ouvidos. E as sensações… as sensações poderiam perdurar por horas. O gosto dos seus beijos, a suavidade da sua pele, o peso do seu corpo eram tão claros como se o titã estivesse mesmo ali. A carícia das suas mãos era como um toque fantasma que me assombrava nos momentos mais inesperados, arrancando-me suspiros de deleite… e de profunda tristeza.

Eu estava a enlouquecer. Os sonhos acirravam as minhas saudades do meu irmão de tal forma que me estavam a conduzir à loucura. Eu precisava de ver Ashkore. Precisava de senti-lo, abraçá-lo e beijá-lo, desesperadamente. Não conseguiria aguentar nem mais um dia longe dele! Felizmente, não teria de o fazer…

— Eduarda — insistiu Lithiel — Há quanto tempo duram esses sonhos? Não vamos sair daqui enquanto não me deres uma resposta.

Eu soltei um pequeno suspiro derrotado, baixando o olhar para os meus próprios pés.

— Alguns dias…

— Quantos?

— Não sei…

— Mentes. Com o que sonhas?

— N-não tens nada a ver com isso! — retorqui, corada.

Lithiel fez um pequeno sorriso torto.

— Eu não sou parva, Eduarda… Sei perfeitamente que não andas a sonhar com o teu irmão a arrancar-te as tripas…

— Continuas a não ter nada a ver com isso!

— Foi com isso que ele te comprou? Sexo?

— O quê?! O Ashkore não me comprou…!

— Como não? Estás a fazer exatamente aquilo que ele te pediu para fazeres, não estás? Porque outra razão estaríamos aqui, com as malas feitas e a abrir um portal para a colónia, se não tivesses encontrado aquilo que o teu irmão te pediu para procurar?

— Eu não…

— Podes parar por aí, Eduarda. Não precisas de dizer mais nada. O fedor a mentira que já te sai da boca fala por si — Lithiel sacudiu ligeiramente a cabeça — Nunca pensei que te fosses juntar ao teu irmão para destruir Eldarya…

— O Ashkore não vai destruir Eldarya. Ele só quer libertar os nossos irmãos!

— E liquidar os faeries no processo.

— Para com isso! — ralhei — O Ashkore não é uma besta sanguinária, ao contrário do que tu pensas! Ele fará apenas o necessário para se defender!

— Achas? Eu não acredito muito nisso…

— Porque é que estás tão preocupada se ele vai ou não matar uns quantos faeries? — repliquei — Não eras tu quem queria soltar um titã furioso no meio de Eel, arriscando centenas de vidas inocentes?!

— Isso era diferente…

— Era?! Como?! Tu não conheces a titânide dentro do cristal azul, não sabes quais são os seus planos para quando estiver livre! Se ela tiver exatamente a mesma mentalidade que o Ashkore e quiser punir os faeries pelo que lhes aconteceu, como é que libertá-la no meio da cidade seria diferente de levar o Ashkore até lá?!

— Eu tinha plena consciência do risco que estava a correr e estava pronta para aceitar as consequências — defendeu-se Lithiel — Não me parece que seja esse o teu caso… mas acho que é normal, atendendo ao que o teu irmão te fez.

— E o que é que o meu irmão me fez, diz lá — desafiei-a, cruzando os braços.

— Não vale a pena explicar-te.

— Porque não?

— Porque a maneira como estás a defender o teu irmão mostra que a contaminação está consolidada e não há maneira de combate-la agora. E mesmo que tivesse notado mais cedo…

— Espera aí, contaminação? Do que é que estás a falar?

— Estou a falar da poção do amor que ele te fez beber.

Eu limitei-me a fixar Lithiel até não aguentar mais e atirar a cabeça para trás, rindo à gargalhada.

— Ai, não acredito! A sério, Lithiel? É essa a tua conclusão? — soltei mais uma gargalhada — Nunca ouvi nada tão estúpido na minha vida!

Lithiel fez um pequeno sorriso.

— Imaginei que seria essa a tua reação…

— Porque iria o Ashkore dar-me uma poção do amor? — perguntei, ainda a rir — Aliás, existem sequer poções do amor em Eldarya? Isso é tão conto de fadas…!

— Existem, sim, mas é proibido fabricá-las e usá-las. As poções do amor retorcem a mente de quem as bebe, criando uma obsessão doentia e um servilismo nocivo que só responde àquele que administrou a poção. O teu irmão jamais te conseguiria convencer a ajudá-lo se estivesses no teu perfeito juízo, por isso, arranjou uma maneira de reverter a situação…

— Isso é completamente ridículo — defendi, mais calma — Eu não estou a servir o Ashkore. Estou a fazer o que acredito ser melhor para a nossa família!

— E fazer o melhor para a tua família envolve ires contra tudo aquilo em que acreditas e contra uma promessa assinada com sangue? A poção deve ser mesmo forte para anular até o teu instinto de sobrevivência! Tu nunca quiseste lutar a guerra do Ashkore, Eduarda, tu eras totalmente contra a morte dos faeries e até contra o sacrifício dos Sacerdotes. Tu não querias levar aquilo-que-nós-sabemos para Eldarya, nem sequer para os juntares à nossa causa, porque não querias envolver inocentes na guerra… porém, aqui estás tu, prestes a dar ao teu irmão os meios para iniciar um autêntico extermínio.

Eu franzi o sobrolho e soltei um estalido irritado com a língua. Como seria de esperar, Lithiel não entendia nada do que se estava a passar…

— Eu não estou a ir contra aquilo em que acredito — neguei — Não ouviste o que eu disse? Eu estou a fazer o que acredito ser melhor para a minha família! Eu era contra os planos do Ashkore, sim, mas, graças a ele, entendi que os titãs jamais serão capazes de viver em paz com os faeries por causa das mentiras dos Sacerdotes! E se a guerra é inevitável, quero pelo menos garantir que o homem que amo lhe irá sobreviver!

Lithiel ergueu as mãos no ar, rendendo-se.

— Como quiseres. Não vou insistir mais contigo. Estás demasiado contaminada, é completamente inútil tentar chamar-te à razão. Deixa lá. Vamos continuar a trabalhar para o extermínio dos faeries e para a tua própria morte, como tens feito até agora. Só não digas que não te avisei.

Eu lancei-lhe um olhar fulminante, mas não disse nada. Limitei a virar costas e regressar ao desenho do círculo. Não tinha tempo ou paciência para as tolices de Lithiel. Ashkore dera-me uma poção de amor? Ridículo! Ele seria incapaz de me fazer algo assim e nem teria a necessidade disso! Eu amava-o profundamente, sempre amara!

Terminado o desenho, dei uma última olhada à fotografia no telemóvel para confirmar se estava tudo certo e fui arrumar a lata de tinta spray ao lado da nossa gorda mala de viagem. Entretanto, Lithiel perguntou:

— Qual é o nosso próximo passo?

— O próximo passo é ir buscar aquilo-que-nós-sabemos. E teremos de ser rápidas se queremos evitar problemas com Úrano e Gaia.

— Como é que vamos fazer isso?

Eu torci levemente a boca e estiquei a mão para a minha bolsa, equilibrada em cima da mala de viagem.

— Vamos ter de tomar algumas medidas drásticas…

Tirei um frasco de sonífero da bolsa e Lithiel abriu um pequeno sorriso.

— Estou a ver… mas como faremos isso sem que ninguém nos veja?

— Não sei, vamos observá-lo primeiro e decidir depois.

— Ah, é um “ele”?

— Sim.

— Será fácil, então. Só temos de atraí-lo para um canto mais resguardado — disse Lithiel, baixando sensualmente a voz enquanto se transformava numa beldade loira de olhos azuis. Mandou-me um beijo e piscou-me um olho enquanto a outra mão enrolava uma madeixa de cabelo no dedo indicador. Eu fiz um pequeno trejeito enojado.

— Talvez resulte… Se ele gostar de bonecas de plástico.

— Hey! — protestou a doppelganger com uma voz fina como a de uma criança. Eu ignorei-a.

— Só preciso de uns minutos para confirmar a localização dele. E volta ao normal enquanto faço isso, okay?

Lithiel fez beicinho com os seus novos lábios carnudos e vermelhos como morangos, mas começou a reverter a transformação. Eu encostei-me de costas à parede e fechei os olhos. Estendi a minha perceção em todas as direções e analisei, um a um, os corpos que estavam ao meu alcance.

Eu aprendera bastante sobre o meu radar mental durante a busca pelos titãs e sabia agora que a minha perceção era tal e qual um elástico de borracha: ficava mais difícil de esticar à medida que se aproximava do seu limite e começava a perder elasticidade ao fim de algum uso, ficando frouxa e larga. A minha perceção nunca mais ficou restringida ao meu corpo depois daquela primeira tentativa de estender os meus sentidos. Havia sempre uma parte da minha mente que permanecia fora do meu corpo, analisando instintivamente tudo o que se encontrava mais próximo de mim, e eu não conseguia puxá-la de volta, independentemente do muito que tentasse. Era como tentar meter um ovo novamente dentro da casca depois de parti-la.

Graças a esse alargamento da minha perceção, eu já não precisava de me concentrar para inspecionar presenças próximas, mas o transe continuava a ser necessário para estender o meu radar até ao limite. Não só porque era difícil controlar a minha perceção enquanto parte do meu cérebro comandava outras atividades, até mesmo andar, mas também porque a quantidade de informação recebida podia ser mentalmente debilitante. Eu conseguia cobrir vários quilómetros de distância com a minha mente, recolhendo de uma só vez informação de milhares de corpos, e precisava de tempo e sossego para processar a montanha de dados. Precisava, sobretudo, de tempo para penetrar através da falsa essência humana dos meus irmãos e encontrar a sua verdadeira natureza.

Não fora fácil encontrar o titã. Após descobrir o limite da minha perceção, eu e Lithiel tivéramos de começar a viajar pelo país para que eu pudesse continuar a minha sondagem mental. Geralmente, escolhíamos um parque no meio de uma cidade e eu mergulhava num transe profundo, tentando cobrir a maior extensão possível. Nós já tínhamos percorrido mais de metade do país e eu estava a discutir com Andreia formas de passar a fronteira sem ser reconhecida quando, finalmente, encontrei o que procurava: um titã da segunda geração adormecido dentro de um corpo humano.

O sentimento de sucesso, porém, durou pouco. O titã vivia a quase duas horas de distância do portal no muro da minha casa e eu não tinha maneira de o levar até lá. A minha cabeça fumegara durante dias, em busca de uma solução, até perceber: eu não podia levar o titã até ao portal, mas podia levar o portal até ele! E assim inventara o plano que nos trouxera até ali. O círculo estava feito e estava tudo pronto para o nosso regresso a Eldarya. Só faltava o meu “irmãozinho”.

Ao contrário das outras vezes, não demorei muito tempo a encontrar o titã. Eu já conhecia a sua essência e reconheci-a facilmente no meio das outras. Ele estava nos edifícios da universidade da cidade, possivelmente a assistir a uma aula. Se me apressasse, poderia chegar lá antes do horário de saída…

— Encontrei-o — anunciei a Lithiel, emergindo do transe e pegando na minha bolsa — Vamos?

A doppelganger acenou e nós saímos do edifício abandonado. Uma caminhada de vinte minutos levou-nos ao nosso destino, mesmo a tempo de ver os corredores da faculdade encher-se de alunos que saiam das suas aulas. Eu e Lithiel ficámos junto à porta, fingindo ser só mais duas alunas, enquanto eu seguia mentalmente o percurso do titã. Ele estava a percorrer o corredor, seguido por três humanos… a descer as escadas… alguns passos até ao átrio… e lá estava ele.

Era um rapaz alto, com um corpo esguio e um rosto muito jovem e jovial. O seu grande sorriso enquanto conversava com os amigos era o que saltava de imediato à vista. Só depois prestávamos atenção aos espessos cabelos castanhos com caracóis gordos e largos e aos intensos olhos azuis-escuros. Quando ele passou junto a mim, a caminho da porta para o exterior, consegui ouvir a sua voz com pronúncia brasileira. Obrigada, Programa de Mobilidade, por o teres trazido até mim. Jamais o teria encontrado se ele estivesse a estudar no seu país…

Apontei o rapaz a Lithiel com um discreto gesto de cabeça e iniciámos a nossa perseguição. Não foi muito longa, felizmente. Era uma da tarde e o titã, aparentemente, iria almoçar em casa. Despediu-se dos amigos num cruzamento e caminhou sozinho por mais alguns minutos até entrar num pequeno prédio. Lithiel abriu a porta com um encantamento e subimos as escadas até ao apartamento do titã. Usei o meu radar mental para verificar se ele estava sozinho e, antes de entrarmos, tirei o sonífero e um lenço da minha bolsa e molhei o tecido com o conteúdo do frasco.

— Espera aí — sussurrou Lithiel — Tu queres metê-lo já a dormir?

— Sim. Porquê?

Lithiel revirou levemente os olhos.

— Como é que vais levar uma pessoa desmaiada pelo meio da cidade, em plena luz do dia, sem levantar suspeitas?

— Ah… Pois, não tinha pensado nisso…

— A sério? Essa é a parte mais importante do plano!

— Eu estava mais preocupada com o portal! — defendi-me — Como é que fazemos agora?

Lithiel sacudiu levemente a cabeça.

— Há uma maneira, mas não vai ser bonito…

— O que queres fazer?

Lithiel poisou a mão na porta e murmurou o encantamento para a destrancar.

— Deixa-me tratar de tudo — sussurrou antes de entrar no apartamento.

O vestíbulo dava acesso a uma data de portas diferentes, mas todas estavam fechadas, com excepção daquela que levava à cozinha. Tive tempo de ver uma pequena panela no fogão antes de o titã se colocar na sua frente, de costas para nós, e começar a despejar o que parecia ser arroz lá dentro.

Lithiel não perdeu tempo. Correu na direção do titã, agarrou o colarinho da sua camisola e puxou-o para trás com tanta força que ele caiu de costas sobre a mesa. O pacote de arroz caiu no chão e espalhou os pequenos grãos por todo o lado. O grito surpreendido do rapaz foi rapidamente interrompido pela picada de uma faca abaixo do seu queixo, uma faca que nem sei de onde Lithiel tirou.

— Um som ou movimento que seja e eu abro-te até ao umbigo — murmurou a rapariga num tom muito ameaçador — Estamos entendidos?

O rapaz fixou-a com os olhos tão arregalados que pareciam prestes a saltar-lhe das órbitas. As mãos dele, mesmo apoiadas no tampo da mesa, tremiam como varas verdes. Eu soltei um pequeno suspiro.

— Lithiel… Isso era mesmo necessário?

— Se queres que ele vá pelo próprio pé até ao portal, sim.

Eu soltei um novo suspiro e aproximei-me. O rapaz virou os olhos para mim o mais que podia sem mexer a cabeça e eu abri um sorriso amarelo.

— Olá. Eu sou a Eduarda. Sei que isto é tudo muito estranho e assustador, mas… eu preciso que venhas comigo.

O rapaz limitou-se a piscar os olhos. Assumi que estivesse demasiado assustado para falar…

— Porque é que estás a tentar ser simpática com ele? — perguntou Lithiel — Não há espaço para simpatia durante um rapto! Nem tempo! — ela agarrou a camisola do rapaz e puxou-o de cima da mesa, mantendo a faca no seu queixo. Fez um sorriso sinistro ao encará-lo — Vamos fazer uma pequena viagem, nós os três. Sem perguntas, sem fugas e sem tentar alertar alguém, pode ser? Eu vou caminhar pendurada no teu braço, como se fossemos namorados, mas a minha mão vai estar a segurar esta faca contra as tuas costelas. Faz algo que eu não goste e furo-te um pulmão. Entendes o que estou a dizer? Fala!

Os lábios do rapaz estremeceram e um fraco “sim” saiu de entre eles. O sorriso de Lithiel alargou-se, deliciada com o seu medo.

— Ótimo. Vamos fazer-nos ao caminho, então.

Lithiel puxou-o para fora do apartamento e eu fiz um pequeno desvio para desligar o fogão antes de ir atrás deles. Raptar alguém já era mau o suficiente, não queria ser também a culpada por um incêndio…

Percorremos a cidade pelas ruas menos movimentadas que conseguíssemos encontrar, com o titã a tremelicar e tropeçar entre nós. Ele caminhava com a cabeça baixa e o olhar fixo no chão, como Lithiel lhe ordenara, mas eu conseguia ver uma lágrima brilhar no canto do seu olho. Pobrezinho…

— Como é que te chamas? — perguntei num tom suave e afável.

Ele espreitou-me pelo canto do olho, mas antes que pudesse responder, Lithiel rosnou entredentes do outro lado:

— Agora não, Eduarda. Deixa as perguntas para depois.

— Só quero saber o nome dele — defendi, arreliada.

— Pergunta-lhe quando chegarmos ao portal!

Eu revirei os olhos, mas não insisti. Fizemos o restante caminho em silêncio, conseguindo chegar ao edifício abandonado sem as sirenes da polícia nas nossas costas.

— Já posso saber o nome dele? — perguntei com azedume enquanto contornávamos o edifício até à entrada.

— Podes, podes… se ele conseguir falar — disse Lithiel com um sorriso maldoso.

— Não tenhas medo — pedi ao rapaz, poisando uma mão tranquilizadora no seu braço — Nós não vamos fazer-te mal, apesar do que a Lithiel disse sobre cortar-te ao meio e furar-te um pulmão.

— Sim, eu só estava a brincar. Nós precisamos de ti vivo – acrescentou a doppelganger.

O rapaz engoliu em seco e olhou de mim para Lithiel até murmurar, muito baixinho:

— T-Tadeu.

— Eu sou a Eduarda, como já disse, e a rezingona desse lado é a Lithiel.

Tadeu dirigiu um rápido olhar a Lithiel antes de regressar a mim, humedecendo nervosamente os lábios.

— Porque… — hesitou, como se não soubesse se tinha permissão para continuar. Eu incitei-o com um sorriso — Porque vocês estão fazendo isso comigo?

Eu soltei um pequeno suspiro.

— É uma longa história… Vamos contar-te tudo assim que estivermos em Eldarya, okay? Há uma razão para tudo isto.

Tadeu acenou levemente com a cabeça e não fez mais perguntas. Não teria tempo de fazê-las mesmo que quisesse porque, nesse momento, nós entrámos no edifício abandonado… e não estávamos sozinhos. O sítio onde eu desenhara o círculo do portal estava reduzido a um monte de entulho no chão, deixando uma grande cratera na parede. Diante dessa cratera, estavam duas silhuetas luminescentes. Eram como manequins carecas e sem rosto, feitos de luz. Tinham a mesma altura, mas uma tinha formas masculinas e a outra, femininas. Uma era negra e a outra, branca. Uma era o meu pai e a outra, a minha mãe.

Úrano e Gaia.


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