Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 47
XLV


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]
...para o dia errado. Sorte eu ter vindo verificar se o capítulo tinha sido postado >.< Quando vi que não tinha, fui verificar a data e... 'tava agendado para a data do próximo. Desgraça... Enfim, está aqui, umas horas atrasado, mas no dia certo :P

Espero que gostem :D



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A gruta era fria, dura e apertada. Estava cheia de saliências pontiagudas que arranhavam a minha pele sempre que tentava mexer-me, por isso fazia um esforço para me manter na mesma posição. Não tinha espaço para me levantar, esticar as pernas ou abrir a maior parte das minhas asas. Os únicos membros que eu conseguia mexer com um mínimo de conforto eram os braços. Era bom não ser claustrofóbica ou já teria dado em doida…

Estava deitada de lado, tentando ignorar as rochas afiadas que se espetavam nas minhas costelas, quando Ashkore entrou com um tabuleiro com comida. Poisou-o na frente do meu rosto e a minha boca encheu-se de água quando o cheiro me chegou ao nariz. Estava cheia de fome. Eu recebia todos os dias a mesma porção de comida que os restantes habitantes daqueles túneis, mas isso estava muito longe de ser suficiente para o meu estômago. Um prato cheio cabia-me na cova de um dente. Literalmente…

— Não te vou ajudar a comer, desta vez — disse Ashkore — Recupera a forma humana e come sozinha.

— Eu não consigo — queixei-me com a voz espectral da minha forma titã — É difícil…

— Vai ser muito mais difícil viver neste cubículo o resto da tua vida — disse o titã num tom mordaz — Não vais conseguir sair daqui nesse estado, nem consegues passar pela porta!

— Tu podes teletransportar-me para fora daqui, como fizeste para nos tirar de Ryss.

— Eu jamais conseguiria teletransportar esse teu corpanzil, mesmo que quisesse!

Eu fiz um beicinho amuado. Não era culpa minha que os titãs fossem tão grandes! Se soubesse que seria assim, teria dormido do lado de fora dos túneis na noite em que a minha transformação ficou concluída. Eu devia estar com uns cinco metros de altura e o dobro da envergadura. Tinha três pares de asas nas costas, dois na cabeça e dois nos tornozelos. Como se asas nos tornozelos servissem para alguma coisa…! A minha cauda tinha a grossura das minhas coxas na sua zona mais larga e não vamos esquecer os dois chifres que roçam no teto da gruta sempre que me tento sentar.

— Falas muito para quem não consegue manter a forma humana sem essa armadura — lembrei-o num tom resmungão.

Ashkore soltou uma gargalhada.

— Eu vivi milhares de anos dentro dum cristal a ter a minha Maana drenada de dentro do meu corpo — defendeu-se — Se alguém tivesse erguido um escudo à volta do cristal vermelho como eu ergui para o cristal verde, para manter a Maana ao meu redor e impedi-la de explodir com tudo, a minha situação seria muito diferente. Eu teria conseguido absorver a minha Maana…

— E muitas vidas teriam sido poupadas — constatei com um murmúrio.

— Não me importo com as vidas que se perderam — disse ele num tom que quase conseguia parecer desprendido — Estou mais preocupado com a minha condição. Neste momento, não sou muito mais forte do que tu… e isso é um problema quando a questão é controlar a Ihlini. Felizmente, ela ainda se está a ressentir do despertar, mas quando isto lhe passar… teremos de unir forças para a impedir de fazer uma estupidez! Por isso não posso desperdiçar Maana a manter uma forma humana. Preciso dela para lutar…

— Que estupidez faria a Ihlini?

— Matar-nos aos dois? Ou pior: entregar-nos aos faeries. Eles não podem dar-se ao luxo de nos matar ou correrão o risco de não ter Maana suficiente para manter Eldarya de pé, mas, para mim, voltar a ser encarcerado naquele cristal seria um destino pior do que a morte.

— É assim tão mau? — perguntei, curiosa.

— É — disse o titã, baixando a cabeça — É como se estivesses morto com a consciência de que estás morto. Não consegues mexer-te, não consegues respirar… Só consegues ouvir e, às vezes, durante ou logo após as Honras, consegues ver através da Chama. Tirando isso… só ficas lá, sentindo que te estão a arrancar o que te mantém vivo de dentro do corpo.

— Mas conseguem falar, não conseguem? Quero dizer, eu ouvia vozes…

— A telepatia só funciona entre nós — disse Ashkore — Nós não conseguimos falar com a mente com os faeries, mesmo com os que têm o dom.

— Porque não?

— A telepatia é uma via de dois sentidos. Se a pessoa consegue entrar na tua mente, tu também consegues entrar na dela. Nós não queríamos os nossos pequenos filhos a entrar na nossa cabeça…

Ainda me custava engolir a história entre faeries e titãs. Ashkore contara-me tudo logo após a nossa fuga de Ryss, já lá ia uma semana, mas eu ainda tinha dificuldade em aceitá-la.

Aparentemente, os titãs não eram monstros vindos de uma outra dimensão. Isso era só mais uma mentira dos faeries nas suas tentativas de esconder a verdade. Os titãs vieram da Terra… e eram filhos de Úrano e Gaia. Tinham sido moldados a partir de Maana pelas duas entidades divinas, cinco titãs e cinco titânides. Não muito tempo depois, surgiram os humanos, gerados através de uma das muitas formas físicas que Úrano e Gaia adotaram ao longo dos tempos. O nascimento dos humanos fascinou tanto os titãs, até então os únicos habitantes do planeta, que os motivou a tentar criar algo seu… e assim surgiram os faeries.

Os titãs começaram com criaturas pequenas, como as pixies e os pigmeus, mas continuaram com criaturas maiores, de tamanho humano, como as fadas e os elfos. Era divertido moldar seres a partir de Maana, por isso continuaram a criar, inventando combinações humano-animal, variando os tamanhos, concedendo poderes… e foi nessa altura que a inveja humana lhes bateu à porta.

Essa parte da história, pelo menos, permanecia quase inalterada nos registos dos faeries. Os humanos não conseguiam lidar com a beleza, a força e a magia dos filhos dos titãs e começaram a escorraçá-los das suas terras, recorrendo à violência se fosse necessário. Os titãs encararam a situação como birra de crianças, mas criaram faeries não tão bonitos para assustar os humanos e mantê-los afastados. No entanto, o medo que essas criaturas originaram nos humanos só atiçou ainda mais a sua vontade de erradicar os faeries das suas terras. Os humanos começaram a ataca-los sem razão aparente e os titãs foram forçados a intervir. No início, limitaram-se a reunir os faeries num único lugar e criaram os faeries sentinela para protege-lo: as hydras vigiavam o solo, os kraken vigiavam o mar e os sluagh vigiavam o céu. Mesmo assim, os humanos não desistiram. Os sentinelas não eram suficientes para pará-los e os titãs cansaram-se de tolerar as atitudes humanas. Querendo ensinar-lhes uma lição, os titãs moldaram o que viria a ser chamado a tríade da ruína: criaram os dragões, os vampiros e os daemon. Um predador da carne, um predador do sangue e um predador do espírito.

O conflito instaurou-se e, desta vez, os humanos eram as vítimas. A luta estava mais próxima do extermínio do que de uma verdadeira batalha e Úrano e Gaia não gostaram de ver a sua criação ser reduzida a cinzas. Furiosos, Céu e Terra uniram forças com os humanos contra os faeries e o fluxo do conflito voltou a inverter-se. Os titãs, temendo a extinção dos seus filhos e impotentes para fazer frente aos seus criadores, enveredaram pela única hipótese de salvação: a fuga. Com muita dificuldade e esforço, construíram uma pequena realidade paralela onde a sua criação poderia viver em paz e prosperar. Uma realidade a que chamaram Eldarya…

— Nós éramos mais do que criadores dos faeries — dizia Ashkore —Éramos os seus salvadores, os seus heróis. Verdadeiros deuses. Nós podíamos fazer qualquer coisa…

— Podíamos fazer qualquer coisa enquanto tivéssemos Maana —intrometeu-se Ihlini, algemada a uma cadeira — E Eldarya não tinha… A Maana é como o sangue de Úrano e Gaia. Só existe onde eles existem. Em Eldarya, só existíamos nós. Tínhamos Maana suficiente nos nossos corpos para manter Eldarya estável durante cinquenta anos, mas depois… as coisas complicaram-se…

— Eldarya começou a entrar em colapso — continuou Ashkore — Os rios secaram, a terra morreu, o vento não soprava… Não sabíamos o que nos mataria primeiro, se a sede, a fome ou a falta de ar. Os faeries vieram até nós e imploraram por uma solução. “Eles já nos salvaram uma vez, podem salvar outra”, era o que eles pensavam, mas nós não sabíamos o que fazer. Podíamos ir à Terra recarregar a nossa Maana, mas tínhamos a certeza que Úrano e Gaia nos matariam assim que nos vissem chegar. No fim, tudo ficaria na mesma… Até que…

— A confiança dos faeries em nós estimulou a nossa criação de Maana — disse Ihlini — Nós não precisávamos da Maana de Úrano e Gaia… Podíamos ter a nossa! Não era exatamente a mesma coisa, mas serviria o seu propósito!

— A vossa Maana é diferente? — perguntei, curiosa.

— Sim — disse Ashkore — A Maana de Úrano e Gaia é negra e branca, respetivamente; a nossa é colorida. Por isso é que os cristais têm cores diferentes. A minha Maana é vermelha, a da Ihlini é verde… a tua é violeta.

— Como as cores dos nossos olhos — constatei.

Os meus “irmãos” acenaram uma concordância.

— Nós não conseguimos absorver a Maana uns dos outros — disse Ihlini — Elas tocam-se, mas não se misturam, então cada um de nós precisava de um grupo de adoradores para sobreviver. Afinal, a Maana é tão essencial para nós como para os faeries… Para facilitar, decidimos separar-nos. Erguemos dez cidades iguais em pontos estratégicos deste mundo e cada titã e titânide vivia na sua, com o seu grupo de adoradores.

— Adoradores — repeti, fulminada por uma ideia — Espera aí… Era isso o que o Leiftan estava a tentar fazer comigo? Ele disse que tinha de me beijar para me dar Maana… mas ele não estava a dar-me Maana, pois não? Ele estava a fazer-me criar a minha própria Maana! Era isso, não era?! Ele estava a “adorar-me”!

— Sim, isso mesmo — confirmou a titânide.

— O teu neto enerva-me imenso, Ihlini — disse Ashkore à irmã — Bem, mas acho que não podia esperar outra coisa de um descendente teu… É parecido contigo!

— O Leiftan é meu bisneto, na verdade, e é um excelente menino — defendeu a titânide.

— Talvez para ti…!

— Esperem um instante — intrometi-me, erguendo as mãos no ar — Ihlini, o Leiftan é teu bisneto? É teu… parente de sangue?

— Sim.

— A Ihlini foi a única de nós que procriou no sentido… convencional — acrescentou Ashkore.

— E eu sou mesmo vossa irmã? — perguntei, começando a sentir um friozinho na barriga. Eu já ouvira antes falar no parentesco de Leiftan e Ashkore, mas na altura estava em profundo estado de negação e, entretanto, esquecera-me completamente desse detalhe!

— Tu és um mistério — disse Ihlini — És a primeira titânide a ser moldada desde que nós fomos criados e isso foi há milénios atrás! Eu nem consegui acreditar no que eras quando apareceste à minha frente nas Honras.

— O queres dizer com isso?

— Tu és uma de nós, uma titânide, mas ligeiramente diferente — disse Ashkore — Os nossos Pais envolveram-te numa casca humana, vá-se lá saber porquê… Mas é daí que vem o teu poder de camuflagem.

— Por Pais, queres dizer Úrano e Gaia? — inquiri.

— Sim.

— Então… eu sou mesmo vossa irmã?

— Estás preocupada com isso por te teres envolvido com o Leiftan? — perguntou Ihlini, divertida.

— Sim!

Ela soltou uma gargalhada.

— Não há problema, Eduarda. Nós dizemos que somos irmãos porque partilhamos os mesmos criadores, mas não há realmente uma relação de sangue entre nós. Nós não fomos gerados de maneira convencional, fomos fabricados, moldados como potes de barro. Eu poderia até procriar com um dos meus irmãos, se quisesse…

— Isso soa muito mal — murmurei.

— Mas é a verdade. É assim que nós somos… Respondi à tua dúvida?

— Sim — disse antes de mudar de assunto — Então, e a guerra? Como é que a guerra com os faeries começou?

Os dois titãs soltaram pequenos suspiros, mas explicaram-me.

A guerra fora o culminar de uma descoberta feita pelos faeries. Eles descobriram que também eles podiam produzir Maana e começaram a venerar-se uns aos outros para se tornarem mais fortes. Entretanto, quiseram também criar algo deles, uma raça que os pudesse venerar para que não tivessem de o fazer eles mesmo.

As suas primeiras tentativas não resultaram exatamente no que queriam porque os faeries não conseguiam criar uma consciência humana nos pequenos animais que moldavam. Eram meros… mascotes. Ainda assim, os faeries não pararam de tentar e acabaram por criar uma criatura com a inteligência de um humano, mas sem os seus sentimentos. Chamavam-lhes blackdogs, grandes cães feitos de sombra e fogo que, em vez de venerarem os seus criadores, atacavam-nos, matavam-nos e comiam-nos.

Os titãs tiveram de intervir para impedir uma verdadeira desgraça. Foram forçados a abandonar as suas cidades e a caçar os blackdogs por toda Eldarya, não sem antes convencer os seus filhos a prometer que iriam parar com os experimentos. Os constantes fracassos dos faeries provavam que eles não sabiam o que estavam a fazer e era perigoso continuar.

Erradicados os blackdogs, os titãs voltaram às suas cidades esperando ser novamente recebidos como heróis… em vez disso, os faeries esfregaram-lhes a sua mais recente criação na cara. Os filhos dos titãs aproveitaram a ausência dos seus senhores para quebrar a promessa e criaram uma nova raça pensante: os purrekos. Os titãs não gostaram nem um bocadinho da desobediência e aplicaram aos faeries o castigo que julgaram mais apropriado. Neste caso, retiraram-lhes a sua capacidade de gerar a própria Maana. Os faeries ficaram possessos… e revoltaram-se.

— Eles conspiraram durante anos — disse Ashkore — Pararam de nos venerar e nós começámos a enfraquecer… Não estranhámos no início, achámos que eles estavam ressentidos com o castigo e estavam a fazer birra. Quando finalmente percebemos o seu intento, já era tarde demais.

— Vocês exageraram no castigo — disse Ihlini — Devíamos ter feito outra coisa…

— Como o quê? Eles já nos tinham desobedecido antes! Matar os purrekos não seria justo porque eles não tinham culpa de ter sido criados…! O que querias que fizéssemos, Ihlini?!

— Os faeries que não participaram na criação dos purrekos também não tinham culpa e mesmo assim foram castigados!

— Engraçado dizeres isso! Se bem me lembro, os faeries que não participaram na criação dos purrekos foram os únicos que não se revoltaram contra nós! Pelo contrário, lutaram para nos defender!

— Lutaram, morreram e, mesmo assim, os outros faeries mataram cinco de nós! — lembrou Ihlini com lágrimas nos olhos — Eles mataram cinco de nós, Ash… e se eu não lhes tivesse ensinado a encarcerar-nos dentro dos cristais, teriam matado mais!

— Eles não nos podiam matar, Ihlini. Sem nós e sem conseguirem gerar Maana, Eldarya entraria em colapso. Eles trariam a extinção a eles mesmos!

— Eu não quis arriscar…

— Mesmo depois do que o Cael fez?

— Eu já estava no cristal nessa altura, os faeries já sabiam como prender-nos… e o Cael só piorou as coisas! Criar elementais para impedir os faeries de usar os elementos só os enfureceu ainda mais! Nem sei como é que eles resistiram a matar o Cael depois disso…

— Quem é o Cael? O que é que ele fez? — inquiri.

— O Cael é nosso irmão, o titã aprisionado no cristal cinzento, em Vaan — explicou Ashkore — Ele criou os seres elementais, como a Rubih, para cortar o acesso dos faeries aos elementos e diminuir a sua força. É por isso que os faeries só conseguem controlar um elemento; antes, eles conseguiam controlar e combinar os quatro, tal como nós.

— E ele sobreviveu depois dessa proeza? — admirei-me.

Ashkore riu-se.

— Sobreviveu, sim. Desfizeram-lhe o rosto à pancada e arrancaram-lhe um olho, mas deixaram-no viver. Precisavam dele vivo para criar mais um cristal.

— Mesmo assim, ele teve muita sorte em ser só um olho!

Ashkore voltou a rir-se e eu virei-me para Ihlini.

— E tu ensinaste os faeries a prender os titãs nos cristais? Porquê?

— Eu não queria mais mortes, em nenhum dos lados — murmurou ela — Achei que essa seria a melhor solução… Pedi aos meus descendentes para me prenderem, mas o meu filho não quis sequer pensar nisso. Partiu para a guerra para me defender… e nunca mais regressou. Foi a minha filha quem acedeu ao meu pedido. Ela disse aos outros faeries que também estava revoltada com o castigo e decidira aprisionar-me para me ensinar uma lição. Eu não só ficaria encarcerada para o resto da eternidade como seria obrigada a produzir a Maana de que os faeries precisavam. Pensei que eles a veriam como uma heroína… mas os que nos defendiam acusaram-na de traição e os que nos combatiam não confiaram nela. No final, também ela teve de fugir para conseguir sobreviver.

— Foi por causa dos faeries que continuaram a apoiar-vos durante a guerra que surgiram estas mentiras todas? — indaguei.

— Sim — disse Ashkore — Houve muitas tentativas por parte dos nossos apoiantes de nos libertar depois da guerra. A maior parte deles foi morta… Os outros tiveram a sua memória alterada. Foram poucos os que escaparam. A história foi deturpada para nos tornar os vilões e garantir que não haveria ninguém entre as gerações futuras que nos apoiasse ou quisesse libertar… E foi assim que chegámos aos dias de hoje.

— Se os faeries fizeram tudo isso para garantir que vocês não teriam apoiantes, como é que tu te soltaste? — perguntei a Ashkore.

— Eu disse que houve sobreviventes, não disse? — lembrou o titã com um sorriso a transparecer na voz — Eram poucos, mas fizeram questão de transmitir a sua lealdade para connosco à sua prole e, eventualmente, o nosso número de adoradores voltou a crescer. Um deles, inclusive, conseguiu chegar à posição de Sacerdote em Darr. Foi ele quem me libertou do cristal vermelho… Pena não ter resultado como ambos gostaríamos!

Tivemos de terminar a nossa conversa nessa altura porque a minha transformação estava demasiado avançada e eu precisava de me recolher no meu quarto. Percorrera os túneis do esconderijo de Ahskore com as asas das minhas costas a rastejar atrás de mim e deitara-me no colchão no canto da pequena câmara onde estava entalada desde então. Há sete dias que eu não saia dali. Só me mexia para alternar entre duas posições e só comia o prato que o titã me trazia a cada refeição. Um prato com comida suficiente para rebentar o meu estômago humano, mas que eu nem sequer sentia no meu estômago titã. 

— Não posso levar-te para a Terra enquanto não recuperares a tua forma humana — lembrou-me Ashkore pela enésima vez — Tens de te esforçar mais…

— Eu estou a tentar, mas não é fácil — defendi-me.

— Não é muito diferente da tua camuflagem. Fecha os olhos e concentra-te em desejar regressar à forma humana. Visualiza-a na tua cabeça com o máximo de precisão que conseguires… e, eventualmente, irá resultar.

— Eventualmente — mastiguei para mim mesma.

Ashkore soltou um risinho e encaminhou-se para a porta da gruta, uma passagem em arco com uma cortina esfarrapada.

— Bom, eu vou indo. Tenho uns assuntos para tratar. Boa sorte com o teu jantar — disse em jeito de despedida, acenando por cima do ombro.

— Palhaço!

Ouvi-o rir-se lá fora e os seus passos a afastar-se. Soltei um pequeno suspiro e fechei os olhos. Não valia a pena tentar comer, já o tentara antes e só conseguira esmagar o prato e a comida entre os dedos. A única coisa que podia fazer era tentar, mais uma vez, recuperar a minha forma humana.

Ashkore explicara-me que era difícil para os titãs assumir forma humana porque essa não era a sua forma base. Era uma mera construção feita com magia e, por isso, exigia um fluxo constante de Maana, como acontecia com a minha camuflagem. Eu, porém, era ligeiramente diferente dos outros titãs nesse aspeto. Eu nascera com um corpo humano, por isso, havia a possibilidade (embora não a certeza) de poder usá-lo como uma segunda base. Assim, a minha forma humana sustentar-se-ia sozinha sem precisar de um fluxo constante de Maana. Entretanto, eu só poderia descobrir se isso era verdade ou não se conseguisse reconstruir o meu corpo humano.

— Ama?

Abri rapidamente os olhos, encontrando uma bola de luz vermelha a flutuar a poucos centímetros de distância.

— Rubih — reconheci o ser elemental do fogo — Olá…

— Boa noite, Ama Eduarda. Como estais?

— Na mesma. E tu?

— Cheguei agora mesmo, Ama. Estive em Ryss estes últimos dias, a espiar a Guarda a pedido do Amo Ashkore…

— Sério? E descobriste alguma coisa interessante?

— A Guarda de Ryss vai ser desmantelada e dividida pelas Grandes Cidades que restam. Os seus recrutas partirão amanhã cedo em direção à cidade que lhes foi indicada. O vosso grupo de viagem partirá com eles…

Senti uma fisgada de dor no peito ao recordar o meu grupo de viagem. Como estariam? Odiar-me-iam agora? Iriam caçar-me? Tentariam matar-me…?

— Ama? — chamou Rubih, arrancando-me dos meus pensamentos — Quem é o elfo de cabelo azul?

— Ezarel? — perguntei, confusa.

— Não, não, o outro. O de cabelo curto.

— Lee?

— Donde é que ele é?

— Não sei… Porque perguntas?

Rubih voltou a hesitar.

— Eu… não tenho a certeza, mas… acho que ele me viu.

Demorei uns dois segundos a perceber o que Rubih queria dizer.

— Viu-te? Mas tu não és invisível para os faeries?

— Invisível, inaudível e intocável. Sou um ser que só os meus criadores ou pares podem ver, ouvir e tocar… C-como disse, não tenho a certeza se ele realmente me viu. Pode ter sido só impressão minha…

— O que aconteceu? — inquiri, curiosa.

— Eu estava a inspecionar os quartos dos vossos companheiros de viagem e o elfo estava sentado à janela quando entrei, a olhar para o exterior. Não lhe prestei muita atenção, pois estava concentrada na minha missão, mas, entretanto, vi-o olhar para mim. Ou através de mim… Eu não sei… Entreolhámo-nos durante alguns segundos e, como ele não desviou o olhar, experimentei voar um pouco para o lado… e podia jurar que os olhos dele me seguiram!

— Há alguma possibilidade de ele realmente conseguir ver-te? Alguma exceção há regra que permita aos faeries ver os elementais?

— Não, Ama… Só os titãs e os outros elementais conseguem ver-me. Quero dizer… os descendentes da Ama Ihlini também conseguem ver alguns de nós. O Amo Leiftan consegue ver os elementais do fogo e da terra, pois são os elementos que domina…

— O Leiftan tem duas afinidades? — admirei-me.

— Não exatamente, Ama… O fogo é a sua verdadeira afinidade, mas ele também consegue invocar a terra graças ao sangue que partilha com a Ama Ihlini.

— Hum… Há alguma possibilidade de o Lee ter sangue titã?

— Não, Ama… A Ama Ihlini foi a única entre os seus irmãos e irmãs que gerou descendência e os seus descendentes foram todos assassinados com exceção do Amo Leiftan.

— Contaste isso ao Ashkore?

— Não, Ama, ainda não…

— Conta-lhe. Ele conhece a história dos titãs e da vossa criação melhor do que eu. Poderá saber alguma coisa…


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 2/7/18]



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