Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 45
XLIV. Acordai, ó excelso...


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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O cristal era enorme, maior até do que o cristal azul de Eel. A sua pálida luz esverdeada mergulhava a sala numa aura misteriosa, quase fantasmagórica. Era lindo… tão bonito que me dava vontade de tocá-lo!

— O que é que estamos a fazer aqui, Rubih? — perguntei com a voz trémula. Ela trouxera-me até ali para consumir o cristal…?

— Precisamos de baixar o escudo — disse a menina vermelha, esvoaçando junto aos cantos da sala — Ama, vinde comigo. Eu mostrar-vos-ei os símbolos…

— Baixar o escudo?

— Sim, só assim o Amo Ashkore conseguirá entrar.

Esperem lá… Ela queria que eu ajudasse o titã a chegar ao cristal? Ele iria consumi-lo?!

— Não foi isto que nós combinamos, Rubih! — revoltei-me — Eu concordei em libertar a titânide, não destruir o cristal!

— Hum? — fez Rubih, confusa, erguendo-se um pouco mais no ar — Do que estais a falar, Ama?

— Eu não vou deixar o titã consumir o cristal! Não o vou deixar destruir este mundo!

— Consumir? — repetiu a menina vermelha, confusa — Oh, é verdade! Já me tinha esquecido… Os faeries inventaram que os titãs querem consumir os cristais, não foi? — Rubih soltou uma pequena gargalhada — Está tudo bem, Ama… Nós estamos aqui só e apenas para libertar a Ama Ihlini. Isso, no entanto, envolve partir o cristal…

— Porquê?

— Aproximai-vos do cristal e vede vós mesma, Ama…

Rubih fez-me um gesto com a mão, convidando-me a aproximar da pedra. Eu não estava muito segura quanto a isso, mas avancei. Não faria mal enquanto estivesse no controlo de mim mesma, certo? Se sentisse o mais leve indício de fome, sairia dali a correr e jamais voltaria! O titã que se amanhasse sozinho!

Aproximei-me até ficar a um braço de distância do cristal. Fixei-o, mas além da vontade de tocar-lhe e sentir o seu calor, não sentia absolutamente nada. Nada que se parecesse com uma fome avassaladora e incontrolável. Até aí, tudo bem… mas o que queria Rubih que eu visse?

— Olhai através do cristal, Ama — disse a pequena — Olhai e dizei-me… o que vedes?

Semicerrei os olhos devido à força do brilho do cristal e olhei as suas profundezas. No início, não vi nada além da sua imensidade verde, mas, eventualmente… comecei a distinguir os contornos de uma perna. Ao seu lado, como seria de espera, estava outra perna. Estavam dobradas e recolhidas contra um tronco e, no espaço entre eles, cobrindo os seios nus, estavam uns braços encolhidos contra o peito. Distingui a linha delicada dos ombros e, mais acima… uma cabeça. Um rosto feminino adormecido.

— O que é isto? — perguntei, cilindrada — Quem é ela?

— É a Ama Ihlini, Ama…

— Não pode ser…

— É exatamente como estais a ver — disse Rubih — Os titãs não querem consumir os cristais, Ama… Essa foi a mentira que os faeries inventaram para esconder a verdade e, ao mesmo tempo, garantir que todos os faeries lutariam para impedir os titãs de chegar aos cristais… e libertar os irmãos que estão presos lá dentro!

— N-não pode ser!

— Não pode ser o quê, Ama?

— Os cristais são os pilares deste mundo — lembrei — Eles produzem Maana para manter este mundo habitável e dar vida aos faeries e, por isso, os titãs…!

— Não, Ama. O cristal é só uma prisão.

— Eu não… entendo…

— O Amo Ashkore explicar-vos-á tudo assim que estiverdes em segurança — disse Rubih — Agora, temos de baixar o escudo, Ama. Não há tempo a perder!

A menina vermelha fez-me sinal para a seguir e eu fui, demasiado atordoada com tudo aquilo para conseguir reagir. Eu não estava a entender nada, nem conseguia pensar devidamente. O que eram os titãs, afinal? O que eram os cristais? O que era a Maana? O que é que eu estava a fazer?

— Rubih… — chamei com um murmúrio.

— Os símbolos estão escondidos com magia… Se vos lhes tocardes com a mão direita, devereis conseguir revelá-los…

— Rubih, o que é que nós estamos a fazer? — perguntei, ignorando o que ela dissera.

A menina vermelha olhou-me, confusa.

— Estamos a baixar o escudo para que o Amo Ashkore possa materializar-se aqui dentro…

— Não é disso que estou a falar… Nós devíamos mesmo soltar a titânide? Quais serão as consequências disso? O que vai acontecer com o cristal, com este mundo? O que vai acontecer com a titânide? Ela não estará melhor lá dentro? Ela disse que não precisa de ser salva… porque a Maana do cristal está a mantê-la viva, não está? Ela está a receber Maana, sem magoar ninguém. Isto é a prova — apontei para a gaiola que segurava nos braços — Isto é o espírito do cristal, mas a titânide consegue falar através dele porque está… misturada com ele, não é? Não é?

Rubih soltou um pequeno suspiro e explicou num tom brando:

— Não, Ama. Vós estais confusa porque continuais a pensar nos titãs e nos cristais como entidades distintas e opostas… mas não é bem assim.

— O que queres dizer…?

— Os cristais não produzem Maana, Ama. Eles armazenam-na, simplesmente. A Maana é produzida pelos titãs que estão presos lá dentro!

— O… quê?

— A Titanomaquia não aconteceu exatamente pelas razões que vós julgais, Ama… Os titãs são os criadores e senhores de Eldarya, mas foram atraiçoados e encarcerados nos cristais. Foram condenados a uma eternidade de escravidão inconsciente para que continuassem a produzir a Maana necessária à nossa sobrevivência, mas sem conseguirem rebelar-se contra a sua condição! O que vós tendes nas vossas mãos é o Espírito da Ama Ihlini, a Ama encarcerada dentro do cristal verde de Ryss. Os faeries separaram o Espírito da Ama do seu corpo para garantir que permaneceria inábil e, ao mesmo tempo, continuasse a receber o amor dos faeries… Chamaram-lhe o Espírito do cristal para não levantar suspeitas…

— Espera, então… Os faeries, na verdade… veneram os titãs?! E os titãs é que convertem os seus sentimentos em Maana?!

— Sim, Ama — confirmou Rubih, sorrindo, antes de ficar séria — Falaremos sobre isso mais tarde. A nossa missão agora é libertar a Ama Ihlini! Tudo será devidamente explicado uma vez que a missão esteja cumprida! Tirai a luva da mão direita, por favor…

Eu aquiesci e poisei a gaiola aos meus pés para conseguir tirar a luva. A minha cabeça estalava com perguntas e eu ainda não conseguia raciocinar direito, mas uma coisa era clara na minha cabeça: os titãs tinham sido atraiçoados pelos faeries e estavam presos e a ser escravizados. Eu conseguia identificar-me com o que eles estavam a sentir, pois acabara de passar pelo mesmo! Atraiçoada pelos meus “namorados”…

Rubih pediu-me para poisar a mão branca iridescente num ponto específico do chão e eu obedeci. Dezenas ou centenas de linhas luminosas correram pelo chão, desenhando um complexo círculo protetor. Um arabesco estranho estava mesmo por baixo da minha mão, brilhando intensamente, e Rubih disse-me para esfregá-lo até o apagar. A luz do círculo tremeluziu, enfraquecendo.

— Este símbolo agora, Ama — continuou Rubih, apontando para um arabesco a poucos metros de distância do primeiro. No entanto, antes de conseguir ir até lá, um urro irado fez-me olhar para as escadas. Tive somente alguns milésimos de segundo para perceber o que estava a acontecer e desviar-me da lâmina afiada que desceu na minha direção.

— Ama! — guinchou Rubih, apavorada.

O guarda de armadura que investira contra mim endireitou-se ao ver que falhara o alvo. Eu recuei até conseguir colocar uma distância segura entre nós.

— Malditas criaturas — rosnou ele, seguindo-me — Vou exterminar-vos nem que seja a última coisa que faça!

Assumi, pelas amolgadelas na sua armadura, que aquele era o guarda que eu atirara escadas abaixo. Parecia estar em mau estado, coxeando um pouco, mas nem por isso desistira de vir atrás de mim… e nem assim eu tinha uma hipótese de lhe fazer frente! Estava fraca, confusa, desorientada… e desarmada. Não tinha nada que pudesse usar para atacar ou defender-me. A única coisa que podia fazer era fugir…

— Usai a camuflagem, Ama! — aconselhou-me Rubih — Já!

O guarda lançou-se a mim com um novo urro ameaçador e eu desviei-me enquanto invocava a camuflagem. Não resultou à primeira tentativa e o guarda brandiu mais uma vez a espada na minha direção, arranhando a minha garganta com a ponta da lâmina. O curativo foi cortado, mas não caiu, ganhando ainda uma pequena mancha de sangue. Felizmente, o susto e o ardor do corte deram um empurrãozinho na minha camuflagem, que se manifestou por fim. O guarda ficou a olhar em volta, desorientado e aos gritos, e eu recuei alguns passos cautelosos.

— Apagai os símbolos agora, Ama — sussurrou Rubih — Este aqui…

Fui lentamente até ao símbolo que Rubih apontara e comecei a esfregá-lo, vigiando o guarda sobre o ombro. Ele continuava a caminhar de um lado para o outro, brandindo a espada ao calhas e gritando insultos. Se não tivesse cuidado, um dos seus movimentos aleatórios acabaria por magoar-me…

O segundo símbolo apagou-se e a luz do círculo enfraqueceu mais um pouco. O guarda notou-o e começou a rosnar:

— Maldita criatura, estás a tentar desativar o círculo, não estás? Isso reduz bastante os sítios onde tenho de procurar…

E começou a correr sobre o círculo de símbolos, agitando violentamente a espada na sua frente. Antes de ter embarcado naquela aventura, eu teria ficado preocupada com a possibilidade dele tropeçar, cair e empalar-se com a própria lâmina. Agora, quase desejei que isso acontecesse. Como iria apagar o símbolo que Rubih apontava com aquele louco armado a passar por cima dele de quinze em quinze segundos?!

— Eu aviso-vos quando ele se aproximar — disse Rubih — Tentai apagar o símbolo no entretanto!

Parecia-me um péssimo plano, mas era o único que tínhamos. Assim, enquanto o guarda dava a sua volta ao cristal, eu esfregava o símbolo com quanta força tinha. Quando Rubih me dizia para recuar, eu recuava. Já tinha ido ao símbolo umas três ou quatro vezes quando o guarda parou subitamente diante dele. Perguntei-me o que o fizera estacar até notar que o símbolo estava esborratado… acusando os meus esforços para apagá-lo.

— Maldita! — gritou o guarda, desenhando uma curva ampla com a espada. Recuei, mas não fui rápida o suficiente e a lâmina mordeu-me o ombro esquerdo. Soltei um silvo de dor e levei a mão direita ao golpe, sentindo o sangue quente sujar-me os dedos. O guarda riu-se ao ver a lâmina manchada de sangue — Acertei-te, não foi, maldita? Porque não te revelas? Tens medo de mim? Os poderosos titãs têm medo de um simples guarda armado? Não admira que estejam extintos! Monstros nojentos como vocês não merecem mais do que apodrecer à tona da terra!

Senti o meu sangue ferver nas veias e amaldiçoei-me por não conseguir ainda usar magia. Teria incinerado aquele animal! Mas, como não conseguia, contentei-me em contorná-lo até ficar atrás dele e dei-lhe um pontapé nas costas com toda a minha força. O guarda caiu para a frente e eu passei-lhe por cima para pisar a sua mão e fazê-lo soltar a espada, mas ele era mais duro e resistente do que eu julgara. Não só manteve o punho cerrado no cabo da arma como conseguiu deduzir a posição da minha outra perna, empurrando-a com o braço. Acho que ele queria mesmo era cortá-la com a espada, mas, felizmente, o seu cálculo não foi preciso o suficiente para isso… Caí de costas com um grito e o guarda soltou uma gargalhada vitoriosa. Levantou-se e fixou-me de uma forma que me deu a entender que a camuflagem caíra.

— Lutas como uma menininha, titânide — disse num tom jocoso, aproximando-se com a espada apontada à minha cara.

— E tu tens as fraquezas de um homem — lembrei-lhe antes de atirar o pé direito contra as suas virilhas. Ele parecia ter uma proteção almofadada na zona, mas nem isso o salvou. Chutei-o com tanta força que ele nem teve voz para gritar. A única coisa que conseguiu fazer foi largar a espada e cair de joelhos, agarrado às suas preciosas pérolas.

Não esperei para o ver recuperar. Desatei a gatinhar até ao símbolo meio apagado e continuei a esfrega-lo até o tornar um pequeno borrão de tinta. O círculo tremeluziu uma última vez e a luz das linhas apagou-se, reduzindo-as a meros riscos pretos no chão.

— Está feito! — festejou Rubih — Vou chamar o Amo!

Sem me dar tempo de dizer alguma coisa, a menina atravessou um vitral na parede, deixando um pequeno rasto de luz vermelha atrás de si. Notei, entretanto, o guarda a tentar levantar-se, apoiado na espada.

— Sua cabra — praguejou entredentes — Vou arrancar-te a pele…!

O guarda investiu contra mim e eu fugi, correndo à volta do cristal. Parei junto às escadas, perguntando-me se deveria esconder-me no escritório, mas as cortinas foram violentamente afastadas para revelar uma pequena multidão, encabeçada por Leiftan. Os seus olhares não eram amistosos, por isso, tentei recuar. No entanto, o guarda estava mesmo atrás de mim, correndo com a espada apontada ao meu estômago. Pensei que seria o meu fim… mas um milagre aconteceu. Os pés do guarda continuaram a avançar enquanto a cabeça era puxada para trás, fazendo-o perder o chão e cair sentado. Atrás dele, segurando-o pelo colarinho… estava o titã mascarado.

— Ashkore — balbuciei, aliviada e assustada ao mesmo tempo. Aliviada por estar viva… assustada por ele estar ali!

— Afasta-te — pediu-me.

Eu obedeci sem hesitar, saindo da frente das escadas que a pequena multidão estava já a subir. Ashkore avançou até ao topo dos degraus, levando o guarda consigo, e atirou-o contra o grupo. Ouvi o estrondo dos corpos a cair, as pragas e os queixumes de dor. Entretanto, o titã esticou os braços, apontando as mãos bem abertas para as paredes que ladeavam as escadas. O ar em seu redor crepitou com uma energia desconhecida… e as paredes começaram a rachar.

— Não, Ashkore! — gritou alguém, mas já era tarde. As paredes desmoronaram e, durante alguns segundos, só se ouviu o barulho dos pedregulhos a rolar, bloqueando as escadas.

— Isto não vai segurá-los por muito tempo — disse o titã, dando meia volta e agachando-se junto às linhas do círculo — Traz o Espírito da Ihlini e mete-o na frente do cristal.

Eu tornei a obedecer, correndo para a gaiola abandonada no canto e poisando-a diante do cristal, mesmo na frente do rosto congelado. Virei-me para o titã, aguardando novas instruções, mas ele estava muito concentrado a alterar os símbolos do círculo. O som de pedras a rolar levou-me a espreitar as escadas e vi mãos a escavar uma pequena abertura no topo do monte.

— Eles estão a chegar — avisei por cima do ombro.

— Vem — chamou-me ele, levantando-se e entrando no círculo. Eu corri a colocar-me ao seu lado — Rubih!

— Estou aqui, Amo — disse a menina vermelha, surgindo entre nós.

— Vou ativar o círculo. Depois disso, nenhuma das duas pode sair — avisou-nos o titã.

Eu acenei, compreendendo, e Ashkore começou a entoar um cântico. As linhas do círculo voltaram a acender-se e uma suave cúpula vermelha transparente formou-se sobre as nossas cabeças e o cristal. Quase ao mesmo tempo, os faeries conseguiram finalmente abrir uma passagem no amontoado de pedra e treparam para a sala. Por um instante, os dois grupos entreolharam-se através do escudo vermelho. De um lado estavam dois titãs e uma menina brilhante que eu ainda não sabia o que era. Do outro, uns nove ou dez faeries, entre os quais Leiftan, Nevra, Ezarel e Valkyon. Foi este último, aliás, o primeiro a mover-se, avançando para o escudo com o seu machado na mão. O Sacerdote travou-o, atravessando o seu cajado na frente do Comandante da Obsidiana.

— Não se aproxime, Comandante — avisou-o o Sacerdote — O círculo está armadilhado…

— Não vos incomodeis com o meu círculo — disse Ashkore num tom ligeiramente sarcástico — Estais à vontade para tentar atravessá-lo. Não me incomodo com um ou dois cadáveres no chão…

— O que fazes aqui, criatura? — perguntou Leiftan por entre os dentes cerrados.

— Não é óbvio? Vim buscar as minhas irmãs. E tu, Leiftan? Vieste mostrar a tua focinheira de traidor à Eduarda?

— Os traidores aqui são vocês — acusou o investigador — Ela já vos disse que não quer nada disto! Deixem-na em paz!

— Estás a falar da Ihlini? — Ashkore soltou uma gargalhada seca antes de fazer uma voz chorona — Oh, coitadinha da Ihlini, os seus irmãos não estão a respeitar a sua vontade, buh-uh-uh… Azar o dela! — exclamou, desta vez irritado — Ela também não respeitou a nossa vontade quando vos ensinou a escravizar-nos!

— Tu não estás a entender…!

— Nem quero! — cortou o titã — Não há justificativa que me faça perdoar o que ela nos fez! Vou libertá-la, acordá-la e matá-la se for preciso! E tu vais a seguir…

— Não, Ashkore! Ashkore!

O titã vermelho ignorou os gritos de Leiftan e virou costas, indo até à gaiola. Abriu os braços e começou a entoar:

— Acordai, ó excelso… Despertai do sono imposto que vos consome. Abri os olhos e vede ao que a vossa própria criação vos reduziu…

— Partam o círculo! — ouvi o Sacerdote ordenar — Partam-no já!

Um minotauro avançou para cumprir a ordem, com o seu martelo de guerra na mão. Ele tentou dar uma marretada nos símbolos no chão, mas o escudo repeliu violentamente a arma assim que esta tocou a sua superfície, arrancando-a das mãos do humanoide.

Ashkore continuava o seu cântico, imperturbável:

— Erguei-vos, ó sublime… Refrescai a memória dos infames mortais, adulterada e tratada para esquecer os apreços que vos devem…

Os guardas e os seus chefes continuaram a tentar quebrar o círculo, mas não tiveram mais sucesso do que o minotauro. Pelo contrário, a maior parte deles terminou ferida ao tocar no escudo por descuido, recebendo queimaduras de segundo grau nas mãos e nos braços. Eu desviei o olhar, sem querer assistir ao seu suplício. Preferi observar Ashkore.

— Vinde, ó admirável… Trazei o castigo àqueles que vos macularam e abençoai com mão divina aqueles que por amor vos acudiram…

— Eduarda! — gritou Nevra atrás de mim — Eduarda, por favor, não o deixes fazer isto…! Eduarda!

— Tu prometeste, Eduarda! — gritou também Leiftan — Prometeste que não compactuarias com a destruição deste mundo!

— Não nos faças odiar-te, Eduarda!

Eu fechei os olhos e ignorei-os. Eu não estava a compactuar com a destruição do mundo… Não ainda…

— Contemplai, ó grande senhor… os fiéis servos que vos saúdam!

Ashkore fez um gesto brusco com a mão, como se estivesse a atirar alguma coisa ao ar… e uma fenda com a largura da minha coxa rasgou o cristal verde de cima a baixo. A chama dentro da gaiola animou-se, ardendo com o triplo da força e soltando um guincho arrepiante. As finas grades da jaula derreteram ou simplesmente desapareceram e a chama disparou na direção da fenda no cristal, desaparecendo no seu interior.

A sala mergulhou em silêncio por uns segundos. Ninguém falou, ninguém se mexeu. Os faeries observavam o cristal rachado ao meio, horrorizados, derrotados. Ashkore e eu esperávamos, apenas.

Ouviu-se um estalo e novas rachas começaram a surgir na pedra, alastrando-se rapidamente em todas as direções. Ashkore recuou e abraçou-me contra o peito.

— O que é que se passa? — perguntei, nervosa.

Ashkore não teve tempo de responder. Nesse momento, o cristal explodiu. Fragmentos verdes voaram por todo o lado, batendo no escudo vermelho e no escudo invisível que Ashkore ergueu em nosso redor. As pedras já não eram um perigo, mas a energia que redemoinhava descontroladamente à nossa frente e em nosso redor foi-nos lentamente empurrando para trás, na direção do escudo vermelho. Não importava a força com que fincávamos os pés no chão, a energia fazia-os deslizar inexoravelmente para trás. Perguntei-me vagamente se o escudo vermelho teria do lado de dentro o mesmo efeito que tinha do lado de fora… Se nós o tocássemos, terminaríamos também queimados?

Ouvi um grito feminino de agonia e devolvi a minha atenção ao sítio onde antes estivera o cristal. A mulher encarcerada estava bem no centro do redemoinho com um halo de luz verde em seu redor. Desenrolara o corpo e atirara a cabeça para trás, gritando com quanta força tinha, e não era para menos. Os fragmentos de cristal que rodopiavam em seu redor estavam a derreter, transformando-se em finos fios brilhantes de cor verde, e estes estavam a convergir para ela e a cravar-se na sua pele. Literalmente. Era como ver alguém ligado a dezenas de sacos de soro, com agulhas espetadas nos braços, nas pernas, no pescoço, nas costelas… As veias da mulher inchavam e palpitavam enquanto a energia do cristal continuava a entrar no seu corpo e ela gritava como se estivessem a arrancar-lhe as entranhas.

Lentamente, a explosão de energia começou a sossegar. Parou de nos empurrar e Ashkore pode até baixar o escudo invisível. O que restava da energia concentrava-se em torno da mulher que reduzira os berros a pequenos queixumes. Os últimos fios verdes deslizaram por baixo da sua pele e a energia indomável desapareceu. A mulher caiu de joelhos com os ombros curvados e a cabeça baixa. Os seus longos cabelos loiros derramaram-se em seu redor como ouro líquido.

— Ihlini? — chamou Ashkore.

A mulher ergueu lentamente o rosto, fixando os olhos verdes ardentes de ódio no titã ao meu lado.

— Ashkore — rosnou, começando a levantar-se como se pretendesse atirar-se ao pescoço do irmão. No entanto, as pernas falharam-lhe e ela voltou a cair de joelhos. De súbito, começou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos — Porquê, Ash? Porquê…?

— Podia fazer-te a mesma pergunta — volveu o titã — Porquê, Ihlini? Porquê?

— Eu só queria salvar toda a gente… — soluçou a titânide.

— Condenando-nos a ser escravizados, violados para o resto da eternidade?

— Hum… Amo? — murmurou Rubih, fazendo um sinal para os faeries que nos observavam com os olhos esbugalhados do outro lado do escudo vermelho, lembrando-o dos mirones.

Ashkore soltou um pequeno suspiro.

— Vamos conversar num sítio mais apropriado — decidiu e baixou o rosto para mim, ainda presa entre os seus braços — Vens connosco, certo?

Eu trinquei nervosamente o lábio e dirigi um breve olhar para o exterior do círculo. Fixei-o nos homens que conhecia… exceto Leiftan. Não tinha a certeza de conseguir olhar para a cara dele…

O Comandante da Obsidiana tinha um olhar vazio, mas eu conseguia sentir o seu desapontamento. O Diretor da Absinto tinha cara de quem não estava ainda a acreditar no que estava a acontecer. E o Mestre da Sombra… Nevra estava com a expressão mais atormentada que alguma vez lhe vira. Ele olhava-me como se estivesse a implorar-me para não ir. Julgo até que o vi abanar levemente a cabeça e que os seus lábios tremeram, como se quisesse chamar o meu nome. Ele estava disposto a perdoar-me e a aceitar-me como era… Porém, os olhares de ódio dos membros das Guardas de Ryss não me passaram despercebidos. Eles não me deixariam viver depois daquilo, nem a Nevra, se ele tentasse defender-me de alguma forma. O aviso que ouvira Leiftan fazer-lhe ainda troava nos meus ouvidos…

Eu já estava condenada. Assinara a minha própria sentença de morte a partir do momento em que aceitara ajudar Ashkore. Tinha, no entanto, uma hipótese de sobrevivência. Uma hipótese de regressar a casa. Uma hipótese de poupar os faeries que sabia estarem do meu lado… Lithiel, Karenn… Adonis também aceitaria a minha raça, era essa a sua natureza: ser demasiado amável para o seu próprio bem… E Nevra…

Senti as lágrimas subirem-me aos olhos, mas trinquei o lábio com mais força para as segurar. Olhei Ashkore e, com a decisão tomada… assenti.

 

Fim da Parte 1


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 24/6/18]

E pronto... a primeira parte da "Titanomaquia" chegou ao fim :3 O próximo capítulo será um interlúdio muito curtinho e logo a seguir virá a segunda parte. Vou postá-la aqui e continuar com a contagem dos capítulos da primeira parte, então, não será uma grande diferença para vocês, mas achei que devia explicar para não se assustarem com aquele "Fim da Parte 1" :P

Vejo vocês na Parte 2 :D



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