Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 27
XXVI. Prometes?


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742158/chapter/27

“Por favor… ajuda… me…”

Acordei lutando para respirar, sentindo o peito pesado como se tivesse um tanque de guerra estacionado nas costelas. O meu estômago revolveu-se e eu só tive tempo de rebolar para fora do colchão antes de um esguicho de bílis me sair disparado pela boca. Os vómitos eram tão violentos e prolongaram-se por tanto tempo que julguei que ia sufocar. Estava prestes a entrar em pânico quando o meu estômago finalmente parou de se contorcer e a minha garganta se abriu à passagem de ar. Caí para cima do colchão, suada e ofegante, tentando recuperar do susto.

O que fora aquilo? Um novo ataque de pânico? Qual teria sido o gatilho desta vez? Eu não vi nada de estranho ou traumatizante no dia anterior, não estava nervosa quando me deitei, não sonhei com o homem morto… ou, pelo menos, não me lembro de o ter feito. A única coisa de que me lembro é daquela voz a pedir-me ajuda. Estranho…

Uma pálida luz acinzentada entrava pela janela, sinal de que o sol nasceria em breve. Karenn chegaria dentro de algum tempo com uma nova luva para a minha mão iridescente e eu devia limpar aquela porcaria no chão se queria evitar perguntas. Uma toalha das dispostas na casa de banho haveria de servir… Podia aproveitar e tomar um banho para me livrar do suor peganhento que me cobria.

Ergui-me com dificuldade, sentindo os músculos trémulos e fracos. Recolhi a minha roupa e tentei calçar a luva na mão direita, mas a pele iridescente já se estendia para lá do pulso, cobrindo metade do meu antebraço. Um rápido olhar ao colchão esclareceu-me sobre o destino da pele em falta. Tinha de limpar aquilo também, antes que alguém contasse a Eweleïn. Podia usar os fósforos para queimar os restos de pele… ou podia oferece-los a Karenn…

Escondi a mão iridescente no meio da roupa dobrada e desci para a casa de banho das senhoras. Guardei os meus pertences num armário, peguei numa toalha de rosto húmida e regressei ao quarto para limpar o vomitado. Reuni os pedaços de pele azul espalhados pelo colchão e escondi-os num montinho debaixo do lençol. Decidiria o que fazer com eles mais tarde, depois de tomar um bom banho.

Não me demorei muito tempo sob o jato de água quente, temendo ser surpreendida por algum humanoide que estranhasse a cor da minha mão. Sequei-me e vesti-me mesmo a tempo de evitar cruzar-me com duas mulheres, saindo da casa de banho com a toalha húmida pendurada no antebraço para esconder a pele branca que a luva não tapava. Soltei um pequeno suspiro de alívio quando cheguei ao exterior… aspirando-o novamente para dentro quando vi o pequeno investigador do roubo das amostras entrar no dormitório. O rapazote estacou quando me viu, parecendo tão surpreendido pelo encontro como eu.

— Bom dia — acabou ele por murmurar — Eduarda, não é?

— Sim… e tu és o Chrome, certo?

— Certo — confirmou o rapaz.

— O que fazes aqui?

— Na verdade… estava à tua procura.

— Ah, sim? Porquê?

— Queria falar contigo… sobre o que aconteceu na enfermaria na outra noite — inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, dissecando-me com os amplos olhos alaranjados — Fiquei intrigado com a tua reação. Parecia que sabias o que estava a acontecer.

— Desculpa?

— Porque é que vieste atrás de mim quando eu disse que tinham apanhado o ladrão da enfermaria?

— Hã… — fiz, sem saber o que responder.

— Eu descobri que estavas a dormir na enfermaria na noite em que houve o assalto — continuou o rapazote — e eu não acredito em coincidências…

— O Nevra já me interrogou sobre o assalto, por isso podes poupar-me das tuas suspeitas — defendi-me — Eu não roubei as amostras, não sou cúmplice do ladrão, nem sequer conhecia o homem.

— Tens a certeza?

Eu limitei-me a lançar-lhe um olhar enfastiado. Ele ignorou-me e prosseguiu o interrogatório:

— Sabes o que foi roubado?

— Se ninguém te contou, não serei eu a fazê-lo.

— Vou tomar isso como um “sim”…

— Faz o que quiseres — suspirei, encaminhando-me para as escadas.

— Era algo teu? — inquiriu Chrome, seguindo-me.

— Não vou responder.

— Vou tomar isso como outro “sim”…

— Não tens mais nada para fazer além de me importunar? — perguntei, parando no meio dos degraus e voltando-me para o encarar.

— Tenho, mas descobrir a verdade é mais importante.

— Sorte a minha — resmunguei, revirando os olhos e continuando a subir as escadas.

— O cheiro estranho na tua mão está mais forte — disse o rapaz de súbito.

Poisei a mão esquerda sobre o antebraço direito, certificando-me de que a toalha não saia do sítio.

— A minha mão não é problema teu — murmurei.

— Não, mas é muito estranho que a tua mão tenha um cheiro diferente do resto do corpo.

— Já te disse que me queimei…

— A tua mão não cheira a queimado — cortou o rapazote — Não cheira a qualquer ferimento que eu conheça. Cheira… a outra coisa…

— Muito específico — desdenhei.

— Nunca cheirei nada igual.

— E que tal parares de meter o nariz onde não és chamado?

Chrome soltou um risinho.

— Piada inteligente…

— Não foi uma piada, foi uma sugestão que devias ponderar seriamente.

— Eduarda! — guinchou a voz chilreante de Karenn, surgindo sabe-se lá de onde e saltando-me para cima — Onde estavas? Fiquei uns cinco minutos a bater na porta do teu quarto!

— Fui tomar um duche…

— Ah, Chrome! — reconheceu a vampira, notando o rapaz atrás de mim e soltando-me para abraçar o seu pescoço — O que fazes aqui?

Ele encolheu os ombros, desajeitado e muito corado.

— Nada de especial… O que fazes tu aqui?

— Vim buscar a Eduarda para o treino comum. Tu também tens treino hoje, não é? Queres fazer-nos companhia?

— Ah… S-sim, porquê não? — cedeu ele, voltando a encolher os ombros.

— Trouxe aquilo que me pediste — acrescentou Karenn na minha direção, entregando-me o que parecia ser uma pequena mochila — A roupa que está a mais é para vestires depois do treino. Vá, despacha-te ou não vamos ter tempo de tomar o pequeno-almoço!

— Okay, okay, estou no ir — murmurei, encaminhando-me para o quarto.

Atirei a toalha usada para um canto e verifiquei rapidamente o conteúdo da mochila, encontrando um novo par de calças de couro castanho, uma blusa de cetim azul e uma longa luva branca de algodão.

— Estou pronta — anunciei, saindo do quarto a puxar a luva que terminava um pouco acima do meu cotovelo.

— Vamos comer, então! — chamou Karenn, encaminhando-se para a saída.

O refeitório estava quase vazio, por isso pudemos tomar o pequeno-almoço com calma e sossego. Karenn aconselhou-me a não comer coisas muito pesadas ou poderia sentir-me agoniada durante o treino.

Terminada a refeição, encaminhámo-nos para a arena da Sombra. Broun já lá estava, dispondo alguns bonecos de serapilheira pelo círculo de areia. Não muito longe, um grupo de cerca de dez jovens humanoides esperava pelo início do treino. Foi, no entanto, nas arquibancadas que fixei o meu olhar. Não esperava que o treino tivesse plateia… muito menos esperava ver Nevra sentado no que parecia ser o lugar de honra do recinto, com uma rapariga risonha em cada perna. Um pouco mais abaixo, Lithiel observava-me com atenção.

— Não sabia que havia público nos treinos — comentei com Karenn.

— É raro, mas acontece.

— Eles estão aqui por tua causa — revelou Chrome.

— O quê?! Porquê?!

O rapazote abriu um pequeno sorriso trocista.

— Querem saber como é que a humana se vai sair no treino.

— Fantástico — resmunguei — Público para assistir ao meu falhanço e rir-se dele…

— E dar-te uma alcunha que te fará lembrar disso para o resto da vida — acrescentou Karenn, sem conseguir conter um sorriso.

Eu soltei um grunhido desagradado.

— Hora do treino, acabou a conversa! — anunciou Broun, aproximando-se do grupo de recrutas — Vamos dar uma pequena corrida para aquecer… Vinte voltas ao recinto!

Os recrutas começaram a correr e eu segui-os… ou, pelo menos, tentei. A maioria deles corria mais rápido do que qualquer humano, terminando a primeira volta quando eu só fizera metade. Karenn tentou acompanhar-me, aproveitando para tagarelar um pouco, mas o minotauro não tardou a aparecer para a calar e forçar a correr.

— Tu não és humana, nem aleijada, mexe essas pernas!

Lancei um olhar fulminante a Broun, ofendida pelas suas palavras, mas ele limitou-se a ignorar-me. Karenn fez um pequeno trejeito desprazido, mas obedeceu.

Os faeries terminaram as vinte voltas ao recinto sem qualquer esforço e começaram a alongar os músculos. Eu continuei a correr, sentindo as pernas fracas e os pulmões a arder ao terminar a décima volta. Nunca fui uma pessoa atlética, mas aquilo era demais para qualquer ser humano…

— Podes parar, humana — autorizou-me Broun, um sorriso transparecendo no seu tom de voz — Não quero que caias para o lado antes de o verdadeiro treino começar…

Eu deixei-me cair de joelhos, enterrando as mãos na areia. Gostaria de o ter mandado para um sítio bem desagradável, mas não tinha ar suficiente para isso.

— Alonga bem os músculos se quiseres mexer-te amanhã — aconselhou antes de se afastar para instruir os restantes recrutas.

A minha vontade era marchar dali para fora e nunca mais voltar, mas as minhas pernas não queriam colaborar comigo. Parecia-me que ia ficar ali caída durante algum tempo, por isso mais valia seguir as instruções do minotauro e alongar os músculos.

— Vai tornar-se cada vez mais fácil.

A voz de Nevra sobressaltou-me, fazendo-me virar bruscamente a cabeça na sua direção. O vampiro passou por mim e agarrou-me nos tornozelos, ajudando-me a alongar.

— Duvido — resmunguei, esticando bem os músculos.

Nevra abriu um pequeno sorriso, mas voltou logo a ficar sério.

— Eu gostaria de falar contigo no final do treino.

— Sobre quê?

— Um assunto sério — disse, sem se estender — Posso contar com a tua companhia para o almoço?

— Estás a convidar-me a ser o teu almoço? — perguntei, erguendo uma sobrancelha.

— Não, estou a convidar-te para partilhares uma refeição perfeitamente normal comigo.

— De certeza? É que eu vi o teu “almoço” ontem e…

— Estou a falar a sério, Eduarda — cortou-me num tom severo.

Fiquei um pouco desconcertada com a expressão no seu rosto, mas não tardei a recuperar a compostura.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, começando a sentir-me preocupada.

— Não. Nós só… vamos conversar — levantou-se, alisando a roupa — Encontramo-nos no meu escritório, pode ser?

Hesitante, limitei-me a aquiescer com um aceno de cabeça. Nevra dirigiu-me um pequeno sorriso, despenteou carinhosamente o meu cabelo e afastou-se. Vi, entretanto, Broun aproximar-se.

— Pareces recuperada! — notou ele — Levanta-te.

Soltei um suspiro cansado, mas obedeci.

Broun passou os vinte minutos seguintes a ensinar-me movimentos básicos de combate, murros e pontapés. Treinei os primeiros golpes contra as palmas do minotauro e, quando ele se deu por satisfeito, encaminhou-me para os bonecos de serapilheira.

O treino durou a manhã toda e, quando terminou, estava completamente anestesiada. Não havia músculo no meu corpo que não estivesse dormente devido ao esforço que fizera. Tomei um banho gelado no balneário, ignorando os murmúrios das raparigas que se questionavam porque não tirava a luva da mão direita, e vesti o novo conjunto de roupa emprestado por Karenn.

— Eu vi o meu irmão falar contigo durante o treino — comentou a vampira quando já estávamos a sair do balneário — O que queria ele?

— Não sei, ele só disse que precisava de falar comigo depois do treino e que era um assunto sério.

— Ah… estou a ver…

— Sabes do que se trata? — perguntei, desconfiada.

— Talvez…

— O que é que se passa, Karenn?

— O Nevra irá explicar-te tudo — disse a pequena vampira, abrindo um pequeno sorriso tenso antes de se despedir — Bem, eu tenho de ir… Encontramo-nos mais logo!

Fiquei a vê-la afastar-se, lançando um olhar desconfiado às suas costas. O que raio andavam aqueles dois vampiros a tramar? Talvez devesse apressar-me ao encontro de Nevra e esperar que ele me desse as respostas!

Encontrei o Mestre da Sombra no seu escritório, mas não foi aí que ficámos. Nevra levou-me até uma pequena sala de estar dentro da ala da Sombra, trancando a porta antes de se sentar diante de uma pequena mesa redonda recheada de comida.

— Serve-te — convidou-me enquanto eu me sentava na sua frente — Imagino que o treino te tenha deixado esfomeada…

Deixara, de facto. A dor no meu estômago era quase debilitante e a vontade de comer era tanta que até a mesa de madeira me parecia apetitosa. Enchi o prato sem cerimónias e comecei a comer, quase me esquecendo da razão por que estava ali. Nevra observava-me com um pequeno sorriso divertido enquanto petiscava um ou outro pedaço de carne.

— O que querias conversar comigo? — perguntei por fim, servindo-me pela segunda vez.

O sorriso de Nevra vacilou.

— Termina a tua refeição, conversamos no fim…

— Nem penses, quero saber o que diabos andam vocês a tramar.

— Vocês? — repetiu o vampiro, erguendo uma sobrancelha.

— A Karenn parecia saber o assunto da nossa conversa.

Nevra soltou um pequeno suspiro.

— Seria estranho se não soubesse…

— Porquê? — perguntei, confusa.

Nevra soltou um novo suspiro.

— Ela falou comigo, Eduarda… sobre… usar-te como isca para atrair o titã.

— Ah… estou a ver — murmurei, poisando lentamente os talheres — E… concordaste com ela?

Nevra fixou-me por alguns instantes, talvez tentando prever a minha reação às suas próximas palavras.

— Sim — murmurou — O plano da Karenn é arriscado, mas… viável.

— Imagino que para vocês seja aceitável arriscar uma simples vida humana para salvar a vossa gloriosa espécie — ponderei com azedume.

— Vais dizer que a tua espécie não faria o mesmo?

Eu abri a boca para responder, mas não havia nada que pudesse dizer. Ele tinha razão, por muito que me custasse admitir.

— E nós não vamos sacrificar-te — acrescentou o vampiro — Não vamos entregar-te ao titã deitada numa bandeja de prata, muito pelo contrário… a nossa principal prioridade será matar o titã antes que possa aproximar-se de ti.

— Pois, mas e o que será de mim de vocês falharem?

Nevra fez um pequeno trejeito.

— Ficaremos todos em maus lençóis…

— Bem me pareceu.

— Mas…

— Esquece! Não vou arriscar!

— Não tens escolha.

Eu gelei na cadeira, perguntando-me se teria ouvido bem.

— Não tenho escolha? — repeti num murmúrio enraivecido — O que queres dizer com isso?

Nevra soltou um pequeno suspiro, esfregando a têmpora com a ponta dos dedos.

— O plano seria atrair o titã durante a tua viagem para recolher os ingredientes da poção. Assim, não só poderíamos proteger-te e ajudar-te na tua demanda, como também estaríamos a levar o titã para longe da cidade e do cristal. Poderíamos preparar a emboscada num lugar bem longe daqui, livre do risco de magoar inocentes ou ameaçar o cristal.

— Isso não responde à minha pergunta…

— Nós não te vamos deixar fazer essa viagem sem uma escolta apropriada… mas só te concederemos essa escolta se aceitares participar no nosso plano.

Tive de morder a ponta da língua até quase sangrar para me impedir de o insultar. Ele encontrara uma maneira muito inteligente de me forçar a participar no seu plano… mas eu não pretendia desistir tão cedo! Eu só precisava de algum tempo para descobrir uma maneira de contornar o assunto e…

— Desculpa, Eduarda — murmurou Nevra, baixando tristemente a cabeça e distraindo-me dos meus pensamentos — Eu nunca quis impedir-te de regressar a casa, não queria ter usado isso para te persuadir. Só… pensa bem — pediu, chegando-se à frente — O titã quer algo de ti e não está na sua natureza desistir. Ele fará o que for preciso para chegar a ti, arriscará entrar de novo no quartel, arrastar-te-á para o seu covil, matar-te-á se tiver de ser… Eduarda… — esticou uma mão para me segurar o queixo, forçando-me a fixar o seu brilhante olho prateado — Lamento dizer-te isto, mas… tu já és uma isca do titã. Ele virá atrás de ti, faças o que fizeres. Sendo assim, não será melhor permitir que ele te encontre num momento planeado e consciente do que apanhar-te de surpresa, sozinha e desprotegida?

Eu desviei o olhar para o lado, engolindo ruidosamente em seco.

— Tenho medo, Nevra — admiti.

— Eu sei… e não faz mal. Medo é bom. Só tens de aprender a controlá-lo…

— Eu só quero voltar para casa — gemi, enterrando o rosto nas mãos.

Nevra levantou-se e veio ajoelhar-se ao meu lado, acariciando ternamente o meu cabelo.

— Não chores — pediu num murmúrio — Tu vais conseguir voltar para casa… Eu vou certificar-me disso. Ajuda-me a salvar a minha casa e eu mesmo te levarei de volta à Terra, sã e salva.

— Prometes? — balbuciei, espreitando-o por entre os dedos.

Nevra fez um pequeno sorriso.

— Prometo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

[Próximo: 18/2/18]



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Titanomaquia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.