Como acabar com o amor da sua vida escrita por Ana Carolina Marquês


Capítulo 1
I Anuário I


Notas iniciais do capítulo

- Me aventurando mais uma vez por aqui. Espero que gostem.



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Ash

 

Estou terminando de passar rímel quando escuto os passos apressados da minha mãe, olho pro relógio em cima da penteadeira, rezando por um milagre. Droga. Atrasada, de novo!

As batidas na porta são firmes e rápidas. Três depois duas, nosso código. Escuto sua respiração mais alta que o normal e ela funga um pouco. Esteve chorando mais uma vez.

— Se você não sair em cinco minutos eu entro aí.

— Já ‘tô quase pronta, mãe — grito de volta, mentindo.

Ela fica alguns segundos ali, consigo ver sua sombra pela fresta em baixo da porta e imagino que esteja com a testa encostada na porta. Depois de um tempo acompanho quando ela começa se distanciar e solto a respiração. Estou tensa e meu coração acelera sem motivo, algo não está certo aqui.  Engulo em seco e volto a atenção pro meu reflexo, sempre me atraso e não seria diferente no primeiro dia. Ainda mais depois das maravilhosas férias de verão. Pelo menos ainda terei a festa de boas-vindas para ir e curtir antes que as provas e trabalhos acabem com toda minha alegria.

 Meu celular começa a vibrar me dando um susto. Espero o início da música do Coldplay começar antes de pegar o aparelho, meu sorriso é instantâneo quando encaro os olhos castanhos-esverdeados na foto que aparece na tela.

— Quase pronta — digo nem esperando o “oi” do outro lado e escuto seu suspiro.

— Já estou aqui, noivinha.

Reviro os olhos com o apelido, não é só noivas que se atrasam. Estou prestes a dizer isso quando uma buzina me assusta mais uma vez. Vou até a janela afastando a cortina e tenho que tapar os olhos com as mãos por casa da claridade. O sol está forte e reluz na lateria azul do carro de Prince e mesmo de longe já consigo ver que ele passou gel demais no cabelo.

— Estou indo — desligo antes de ter que ouvir outro sermão, não sei porque ele ainda tenta.

Termino de passar gloss e amarro o cabelo com a fitinha azul que sempre me dá sorte, com o frio na barriga que estou sentido é melhor usar tudo que possa me ajudar a encarar essa segunda. Pego a mochila e chuto algumas roupas que estão jogadas no chão, meu quarto está uma bagunça. É estranho ver as coisas jogadas assim, sempre deixo tudo no devido lugar. Olhando ao redor sinto um aperto no peito e não entendo o motivo, balanço a cabeça tentando afastar qualquer energia negativa e coloco um sorriso no rosto. Repito um mantra na cabeça e pego o celular, saindo do quarto apressada.

 Nem preciso chegar no meio do corredor para ouvir meus pais gritarem um com o outro, suspiro apertando a alça da mochila com mais força. Tem meses que os dois começaram a se tratarem dessa maneira e isso só aumentou gradativamente. O pior é eles não se separarem logo e piorarem a situação, não dá para serem amigos?

Meu rosto começa a esquentar conforme desço as escadas e os xingamentos vão diminuindo, puxo o ar com força. Estou tão cansada disso. Fico parada um pouco reunindo coragem para descer tudo de uma vez, mordo a boca com tanta força que sinto o gosto de sangue. É agora ou nunca, fecho os olhos por alguns segundos antes de pular os dois últimos degraus. Olho de relance para trás, daqui dá para ver um pouco do outro cômodo e vejo meu pai bater a porta da cozinha que dá direto pro quintal, deixando minha mãe estática olhando para onde ele estava. Sinto um nó se formar na minha garganta e saio o mais rápido possível de casa.

O ar quente me faz prender a respiração e engasgar um pouco. Droga, esqueci de passar protetor solar, já prevejo minha pele ficando toda vermelha e…

— Ash — Prince grita e buzina, me fazendo dar um pulo.

Atravesso a rua correndo, quase ficando cega com o reflexo do carro e do cabelo duro dele. Entro no carro dando um selinho rápido, meu coração continua acelerado e não sei se é pelo susto ou por ter visto meus pais. Coloco o cinto, ainda repetindo a cena na cabeça, consigo perceber que ele me encara com a testa franzida e os óculos de sol no topo da cabeça.

— O que foi? — pergunto passando mais uma camada de gloss e meu lábio arde, tento segurar a careta.

— ´Tá tudo bem?

Merda. Ele me conhece bem demais. Dou de ombros, fingindo estar concentrada e pego seu óculos, dando um beijo grudento na sua bochecha. Prince sorri pra mim, o aparelho nos dentes de baixo dão um charme a mais e sinto meu coração  acelerar mais uma vez, mas dessa vez é de amor.

— É melhor a gente ir, não quero me atrasar logo no primeiro dia — digo ignorando a pergunta, mas sei que mais tarde não vou conseguir escapar dela.

Prince demora alguns segundos antes de ligar o carro, ele me dá uma olhada com as sobrancelhas erguidas e acelera.

♡ ♡ ♡ ❤ ♡ ♡ ♡

— Princeton!

Trevor aparece do nada dando tapinhas nas costas de Prince. Reviro os olhos e mando uma mensagem para Cristal, ela precisa chegar logo. Não suporto ficar perto desses dois juntos. Trevor usa a mesma roupa de sempre: a jaqueta vermelha com mangas azuis e o leão rugindo bordado junto com as iniciais da escola. Sério, acho que ele só tem essa roupa.

— Por que demorou tanto, cara? — ele continua e só então parece perceber minha presença, abre um sorriso mostrando todos os dentes — nem precisa responder. Ash sempre te atrasa, não é?

Ele dá uma piscada e me abraça. É impossível sair do seu aperto, me levanta do chão fazendo minha coluna estalar, já estou ficando sem ar quando me solta e volta sua atenção pro meu namorado. Começo ajeitar minha regata que agora está toda amassada e abro a boca para protestar, mas percebo que ninguém liga pra isso. Na verdade quase ninguém, além de Prince que está guardando alguns livros no armário, está olhando pra mim. Me viro e vejo Cristal, ela cortou os cabelos na altura dos ombros e os pintou de preto, uma tiara vermelha com um laço da mesma cor enfeita os fios. Ela passa por mim e Trevor e puxa o braço de Prince, é um gesto estranho e fico observando os dois com a boca entreaberta. Eu não sou de sentir ciúmes, mas sinto um frio na barriga de ver os dois tão perto.

Cristal termina todo o teatrinho e se vira pra mim. Seus olhos analisam toda minha roupa e já sei o que está pensando: estou desarrumada demais.

— Ash, a gente pode ir no banheiro? — sua voz é doce, mas consigo ver um brilho diferente em seus olhos.

Assinto e ela me puxa pelo cotovelo, me arrastando pelo corredor. Sinto seus dedos afundando na minha pele e tenho certeza que ficarei com a marca de suas unhas, ela ignora todas minhas perguntas e as pessoas ao nosso redor olham assustadas e saem da nossa frente. Chegamos no banheiro e Cristal expulsa as poucas garotas que estão lá dentro, puxo meu braço de volta e ela fica de costas pra mim, mexendo na bolsa.

— Dá pra me dizer o que tá acontecendo? — tento me aproximar, mas paro antes de chegar nela.

Ela tira um livro grosso e laranja lá de dentro, consigo ver manchas de gordura e marcas de dedo nele. É um anuário e sei disso porque eu queimei um idêntico a esse meses atrás.

 Minha garganta fica seca e sinto minhas mãos começarem a tremer, ela não percebe isso de tão concentrada que está. Penso em sair dali, mas Cristal volta a olhar pra mim e pega minhas mãos virando elas pra cima, me obrigando segurar o anuário. Ela aponta, com as unhas afiadas perfeitamente pintadas de preto, pro nome em baixo da foto que ocupa toda a página.

Cora Ashley Grave, meu nome completo soava tão estranho junto com a foto irreconhecível de mim. Meu rosto redondo está marcado pelas espinhas, tenho um sorriso forçado e o aparelho amarelo faz meus dentes parecessem podres, há olheiras fundas em baixo dos meus olhos e ainda uso um óculos redondo, quase não me reconheço sem as lentes azuis. No lugar onde os amigos deveriam assinar tem vários xingamentos e piadinhas com meu nome. Dou um passo para trás, jogando aquilo pra longe de mim.

—  Onde você achou isso? — engasgo e minha voz sai falha.

Cristal pega o livro do chão e volta a guardar em sua bolsa, ela sorri pra mim, o que me deixa ainda mais nervosa. Eu já vi aquele olhar dela antes, é um brilho inconfundível de diversão e maldade. Não posso deixar ela ganhar, então fecho os olhos respirando fundo e afasto um pouco a vontade de chorar. Ela é minha melhor amiga e melhores amigos não devem fazer isso. Enquanto estou com os olhos fechados sinto Cristal chegar um pouco mais perto de mim, seu hálito é quente e sua voz sai baixinha, fazendo meu corpo se arrepiar.

— Então é isso que você tanto esconde do seu namorado? Por que nunca me contou?

Não consigo mais aguentar. Ela continua se aproximando, fazendo perguntas que não raciocino mais, meu cérebro entra em pane. Abro os olhos com força, sentindo o ar paralisar no meu pulmão. Estou tendo um ataque de pânico. Minhas mãos suam e meus olhos se arregalam, não consigo respirar, não consigo gritar. Dou meu máximo para fazer minhas pernas se mexerem e dou alguns passos me afastando dela e quando percebo estou correndo pra fora do banheiro.

Assim que saio o sinal toca. Levo as mãos instintivamente aos ouvidos, querendo fazer aquele barulho parar e meus ouvidos começam a latejar. A respiração ainda continua difícil pra mim e só penso em me jogar no chão, mas escuto quando a porta se abre atrás de mim e sei que é Cristal.  Volto a correr, sentindo meu coração tão acelerado que acho que ele vai estourar a qualquer momento, esbarro em várias pessoas que andam de um lado pro outro com pressa para entrarem nas salas.

Quando vejo as portas duplas mais próximas, estendo as mãos pra frente e as abro com um empurrão. Puxo o ar com força e meus olhos se fecham pela intensidade que respiro e pela claridade do lado de fora, sinto o vento passar por mim e… algo molha meu rosto e minha roupa, sinto o cheiro adocicado e antes  de ver o que aconteceu alguém grita perto demais de mim.

— Meu deus, me desculpa é que você apareceu do nada e...

Abro os olhos e automaticamente olho para baixo, minha blusa branca tem uma enorme mancha vermelha e o garoto parado na minha frente tem o mesmo líquido nas lentes do óculos de grau. Ele continua falando, mas não presto atenção, apenas corro esbarrando em seu ombro sem olhar para trás.

♡ ♡ ♡ ❤ ♡ ♡ ♡

Ando automaticamente por várias ruas, seguindo o meu instinto. Meu coração continua acelerado e minhas vistas escurecem de vez em quando, o sol faz meu corpo suar e me sinto suja. Meu cabelo gruda na minha testa e as lágrimas no meu rosto secaram e incomodam quando pisco, falo algumas frases em voz alta aleatoriamente e algumas pessoas olham estranho pra mim.

Sento em um banco na praça perto do meu bairro. Apesar do horário muitas crianças brincam por ali, os outros bancos estão ocupados de mães e pais que não tiram os olhos dos filhos. O vento fica frio por causa das várias árvores e me abraço, tentando esquentar meu corpo, mas sei que o frio é interno. Sinto mais uma onda de choro vindo, apoio o cotovelo no joelho e afundo minhas cabeça no vão entre minhas mãos.

Sinto uma cutucada no meu braço e ergo os olhos, uma menina que deve ter uns seis anos me encara. Seus olhos grandes e curiosos são pretos igual os cabelos longos, ela segura uma florzinha amarela toda amassada em uma das mãos e estende em minha direção. Arrumo minha postura e um pouco mais lenta de que costume pego a flor, a menina sorri e sai correndo em direção ao parquinho.

Fico encarando o nada e me levanto. É hora de encarar a realidade, guardo o presente com todo cuidado no bolso e começo a andar de novo, cantarolando minha música favorita, já sentindo o mal estar indo embora.

Quando vejo já estou na minha rua, meus pés doem e minha nuca queima por causa do sol. Cumprimento algumas crianças que brincam na calçada da minha casa e quando chego perto da porta consigo ouvir a gritaria lá dentro, respiro fundo. É só entrar e subir direto pro meu quarto, murmuro baixinho. Seguro a maçaneta com força, meus olhos ardem e doem, sei que devem estar inchados. Respiro fundo tentando tomar coragem e entro. Tropeço em algo e quase caio, me equilibro na porta ainda aberta e vejo as duas malas na entrada. São escuras e empoeiradas, elas ficaram anos em cima do guarda-roupas porque não usamos em viagens. São do meu pai. Meu rosto arde e meus olhos se enchem mais uma vez.

Sigo a gritaria que vem da cozinha e ele quase tropeça em mim enquanto anda de costas gritando. Seus olhos escuros se arregalam quando me vê, minha mãe para logo atrás dele e olha pra mim querendo dizer alguma coisa. Minha cabeça dói e dessa vez não seguro as lágrimas, então é isso, finalmente chegaram ao fim. E ele está nos deixando.

— Você ia embora sem nem se despedir? — minha voz sai alta e rouca, estou quase gritando.

Meu pai dá um passo em minha direção e eu vou pra trás. Não quero que me toque, já esperava isso, mas eu merecia pelo menos uma despedida.

— Ashe, posso explicar…

Antes que ele termine sua frase eu corro mais uma vez, quase caio subindo as escadas e sei que ninguém vem atrás de mim. Bato a porta do quarto e a tranco, me jogando na cama. Pego um dos meus bichinhos de pelúcia e afundo meu rosto nele gritando o mais alto que posso, minha voz é abafada, mas ainda sai alta. Grito até minha garganta doer. Grito até não ouvir mais conversas no andar de baixo.

As lágrimas não param de vir e minha cabeça dói como nunca antes. É o pior dia da minha vida. Repito isso várias e várias vezes, as cenas se repetindo como um filme.

Meu celular toca e deixo a ligação ir pra caixa postal, não quero conversar com mais ninguém. Ao meu redor a bagunça parece fazer todo sentido, é uma zona de guerra assim como os sentimentos dentro de mim. Volto a chorar, sabendo que no outro dia preciso estar pronta para mais uma batalha, com um sorriso no rosto e maquiagem impecável para esconder o desastre que sou.


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Notas finais do capítulo

- A opinião de vocês é muito importante.